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Diego Pablo Simeone, 50 anos de um caudilho

Ordem por raça e vibração após o hino na estreia da Copa de 1998. Simeone foi o primeiro capitão da Argentina do ciclo pós-Maradona

“O que é um caudilho?”, pergunta-se. A resposta: “um cara que não tem que falar muito, mas no momento que fala é escutado. O importante dentro dos grupos não é gritar nem falar sempre, e sim ser escutado”. Adiante, a indagação: “tudo bem ganhar um jogo com uma deslealdade? Por exemplo: que expulsem um rival que não merece ser expulso“. A resposta: “Dentro da hipocrisia estão os que dizem que não, mas depois desfrutam se for favorável. E jamais vão dizer ao árbitro em uma final mundial: não apite esse pênalti, que não foi. Porque tens que chegar a uma final mundial para te dar conta de que todos querem ganhar? Esta polêmica se resume com uma frase: ‘isto é futebol’. E no futebol os bonzinhos, normalmente, perdem“.

Ame-o ou deixe-o, Diego Pablo Simeone chega hoje aos 50 anos como um técnico consagrado por recolocar o sofrido Atlético de Madrid em patamar de grandeza. Apesar de certo desgaste no estilo, o seu característico estilo aguerrido transmitido aos colchoneros fez sucesso e até revisionou quem resumia El Cholo a um mero malandro violento dos tempos de jogador. Primeiro jogador a passar de cem jogos pela seleção e outrora recordista em aparições pela Albiceleste, vamos relembrar a trajetória do volante/líbero/zagueiro com ênfase na parte argentina de uma carreira tão vitoriosa na Europa, usando em especial aspas dele em entrevista dada em 2003 à El Gráfico – como as que abrem acima a matéria.

Na virada dos anos 50 para os 60, o Vélez e a seleção tiveram um volante chamado Carmelo Simeone, apelidado de El Cholo, gíria para mestiços. Sem nenhum parentesco com ele, mas também surgido no Vélez embora sempre tenha torcido pelo Racing por conta do pai (“quando eu não jogava, me levava sempre a campo, fomos na série B também. Meu ídolo era Falcão e do Racing eu gostava de Zavagno e Berta. Olhava os volantes. Quando o Racing foi campeão em 2001, estava em Mar del Plata e segui com tudo a definição. Depois, Chatruc me presenteou a camisa, uma alegria”), acabou recebendo o mesmo apelido em referência ao xará: “Oscar Nessi, nos infantis do Vélez. Um dia, começou a me gritar Cholo, Cholo, pelo outro Simeone. E ficou”.

Na verdade, o diminutivo Cholito era mais empregado inicialmente, até ele peitar a imprensa já na Copa de 1998 e ser desde então apenas Cholo. No Vélez, o segundo Simeone teve uma ascensão meteórica. Com 15 anos de idade, o lendário Victorio Spinetto (a quem elegemos no início do ano como técnico do time dos sonhos do clube, ao qual defendera como jogador nos anos 30 e 40 antes de treina-lo por mais de dez anos seguidos até meados da década de 50) já previa que o jovem estrearia no time adulto quando tivesse 17 (“eu pensei ‘o que essa cara está dizendo?’. E acertou em cheio”). Em 1987, o Fortín despediu-se do volante Omar Larraquy, jogador com mais partidas por La V Azulada no século XX – e também eleito ao nosso time velezano dos sonhos. Outro eleito foi o armador Daniel Willington, ídolo dos anos 60 que àquela altura era o treinador. Simeone não tinha nem passado pelos times sub-20 ou sub-19 e foi promovido diretamente da equipe sub-16.

Vélez quase vice de 1989-90, cheio de caras conhecidas no Brasil: Osvaldo Coloccini (pai de Fabricio), Simeone, Carlos Ischia, Alejandro Mancuso, Ubaldo Fillol e Mario Lucca; Claudio Morresi, Juan Funes, Ricardo Gareca, Raúl Cardozo e José Gallego

Na temporada 1987-88, o Vélez (que só tinha um título na primeira divisão, orquestrado em 1968 pelo tal Willington) foi sexto na liga e semifinalista na liguilla, o extinto torneio-repescagem que dava a outra vaga na Libertadores. Escalado ocasionalmente mais avançado, como meia-direita, o adolescente até marcou quatro gols e ao fim da temporada já virava um dos mais jovens estreantes da seleção argentina. Foi em 14 de julho de 1988, pelo Torneio Bicentenário da Austrália, contra a seleção anfitriã em Sydney. Seu tornozelo não estava bem após um treino, mas ele escondeu as dores para participar. “No fim, joguei, e perdemos de 4-1. Como nunca fui de me baquear, sabia que depois viria outra partida. E nessa meti um gol e ganhamos”, gabou-se em referência ao 2-0 sobre a Arábia Saudita, em Canberra. Ele estava na expectativa de ir em seguida às Olimpíadas de Seul, mas a lesão se estendeu a um dos mindinhos do pé e terminou de fora.

Na temporada 1988-89, Simeone demonstrou seu profissionalismo ao converter um pênalti no empate em 1-1 com o Racing em Avellaneda, mas o Vélez despencou para o 15º lugar – embora o jovem seguisse com certa regularidade na seleção, ainda que normalmente empregado na meia-esquerda por Carlos Bilardo (foram três jogos em 1989, entre março e abril: derrota de 1-0 para a Colômbia em Barranquilla, 2-2 com o Equador em Guayaquil e 1-1 com o Chile em Santiago) e sem terminar chamado à Copa América. O clube tratou de reforçar-se no próprio Racing para a temporada seguinte, incorporando-se com o veterano goleiro Ubaldo Fillol e o treinador Alfio Basile, líderes do elenco racinguista vencedor da Supercopa de 1988. Os fortineros então chegaram a um quinto lugar enganoso na temporada 1989-90, pois ficaram a só quatro pontos do vice.

Simeone marcou oito vezes na campanha, incluindo em outro 1-1 com o Racing. El Cholo foi em paralelo usado pela seleção duas vezes em janeiro de 1990, no 0-0 com um combinado da Guatemala na América Central e na derrota de 2-0 para o México em Los Angeles. A Itália seria o seu destino ao fim da temporada, mas não pela convocação final, perdida pelo terceiro torneio seguido (“queria chegar, embora soubesse que era jovem. Meu pai foi me preparando para o ‘não’. Mas isso me fortaleceu, me fez entender a tristeza que te gera ficar fora da seleção. A partir de então, esperei cada chamado como o último”). E sim pela transferência ao Pisa, em tempos onde o limite a três não-italianos em tempos pré-Lei Bosman fazia até os pequenos times da Bota mais atraentes que muitos gigantes de outros países europeus. O volante aceitou por impulso, conforme contou naquela entrevista em 2003:

“Em 1990, era dificílimo chegar à Itália e queria testar. Se deu algo curioso: estava para começar a pré-temporada com o Vélez e [o empresário Settimio] Aloisio me disse que tinha meia hora para decidir se queria jogar no Pisa. Eu estava em sua oficina e meus pais andavam por Mar del Plata. E Settembrini, meu representante, estava na Itália. Não havia telefone celular, um caralho. Estava só. E agora, que faço? Olhava as fotos de Troglio, Caniggia, Balbo, Sensini, todos com camisas do calcio. E disse: vou. Creio que foi uma boa decisão, me ajudou a amadurecer. Pelas ganas de triunfar em um futebol onde todos sonhávamos jogar. Nos levantávamos aos domingos de manhã na concentração para ver o futebol italiano. Quando fui ao Pisa, acreditava que ia por dois anos, fazia o pé de meia e voltava, mas em 1995 acabava de chegar em Madrid e em 1999 estava ganhando meu primeiro título na Itália. Tudo foi me mantendo na Europa”.

Antes do entrevero com Beckham em 1998, já exibia cinismo contra Lineker em outro clássico com a Inglaterra, em 1991. Os outros argentinos são Antonio Mohamed, Ariel Boldrini (camisa 11), Fernando Gamboa, Oscar Ruggeri, Carlos Enrique (de costas), Fabián Basualdo e Darío Franco

Ele marcou quatro gols na Serie A, inclusive em cada partida contra a Juventus, mas não evitou a antepenúltima colocação e o rebaixamento. Mas se o Vélez de 1989-90 levou El Cholo à Itália, também levou o técnico Coco Basile à seleção no pós-Copa. E nem o descenso tiraria Simeone do novo ciclo: ele inicialmente figurou na amistosa Copa Stanley Rous, em empates contra a URSS no Old Trafford (1-1) e Inglaterra em Wembley (2-2 após sair perdendo de 2-0) e outro amistoso, agora contra o Brasil – 1-1 em Curitiba, entre maio e junho de 1991. E foi enfim confirmado em um grande torneio, participando ativamente da Copa América de 1991, onde a Albiceleste encerrou seu maior jejum na competição: eram 32 anos sem a taça, com Simeone se dando ao gosto de inclusive marcar um gol no jogo do título (2-1 na Colômbia), além de outro na campanha, vazando Chilavert no 4-1 sobre o Paraguai. Mas ainda viriam amarguras. Ainda com idade para os Jogos de Barcelona, ele e juvenis argentinos caíram no pré-Olímpico.

“Eu queria me matar: começamos ganhando dois jogos e contra o Peru, o penúltimo do grupo, ganhávamos de 1-0. E estávamos quase dentro das finais. Como eu tinha um amarelo, queria limpar com outro para começar a fase final. Fiz isso faltando 5 minutos, mas nos empataram no finzinho. E não pude jogar contra o Uruguai. Nos bastava o empate, mas perdemos de 2-1 e fora”. Quanto ao Pisa, ele esclareceu que os locais não viram o rebaixamento como uma grande frustração, “mas para mim foi doloroso. O pior foi o segundo ano, onde não pudemos subir: me machuquei, e diziam que estava de chinelinho. As idiotices que se dizem quando alguém não joga”. O volante foi assim um dos raros jogadores a permanecerem na seleção mesmo em uma segunda divisão europeia, participando em outubro de 1992 do título da Argentina na primeira Copa das Confederações antes de enfim fazer sua estreia pela Albiceleste em Buenos Aires.

Já com quase vinte jogos pela seleção, enfim a defendeu no Monumental de Núñez em um 2-0 sobre a Polônia recém-prata olímpica em 26 de novembro. Àquela altura, já pertencia ao Sevilla de Maradona e do técnico Carlos Bilardo: “foi meu trampolim: comecei a ser Simeone na Europa, a ganhar um nome, e várias equipes prestaram atenção em mim: Real, Atlético, Roma”. Maradona vinha ausente do ciclo Basile por conta da suspensão de um ano e meio ao ser flagrado com cocaína em antidoping em 1991, mas ganhou duas chance em fevereiro de 1993: a Argentina ia celebrar os cem anos da AFA em amistoso contra o Brasil e enfrentar a Dinamarca pela Copa Artemio Franchi, tira-teima entre os campeões da América e da Eurocopa. Simeone recordou como o Sevilla tentou prejudica-los: “o presidente não nos deixava ir, nos haviam roubado o carro para que não fôssemos, então pegamos um táxi, viajamos e Diego arrebentou. Assim te marcava com feitos o que era para ele a seleção, nunca um ‘não'”.

Ainda em 1993, veio o bi na Copa América, até hoje a última taça da seleção principal, mesmo sem Maradona; na campanha, Simeone novamente marcou contra a Colômbia, no 1-1 pela fase de grupos. Colômbia que semanas depois encerrou com um 2-1 em Barranquilla uma invencibilidade de 32 jogos da Argentina – um recorde na época, no qual volante esteve em 21. A derrota veio já pelas eliminatórias, antes dos cafeteros aplicarem em Buenos Aires o famoso 5-0. A vergonha também sujeitou a bicampeã continental subitamente a uma repescagem contra a Austrália, para a qual Basile mudou substancialmente o time-base, o que incluiu a pronta volta de Maradona. Simeone foi um dos goleados mantidos e seguiu regularmente na equipe na trajetória até os EUA, cavando ainda a transferência ao clube onde mais ficaria associado. O insucesso na Copa de 1994 não o tirou de novo ciclo pós-Copa, ao contrário.

Erguendo o último troféu da seleção principal, a Copa América de 1993, acompanhado por Néstor Gorosito, Fabián Basualdo, Oscar Ruggeri, Alejandro Mancuso, Leo Rodríguez, Claudio García, Luis Islas (de boné), Jorge Borelli e Ramón Medina Bello

Sucessor de Basile, Daniel Passarella bancou El Cholo como volante armador ao invés do Fernando Redondo (“em minha carreira joguei de tudo, menos de centroavante e de goleiro”). Não poderia ser mais contrastante. Se Redondo, apelidado de El Príncipe exatamente por uma zombaria de Simeone, era a classe e figura do Real Madrid que em 1995 reconquistou La Liga após o tetra do Barcelona de Cruijff, El Cholo era um brigador pelo vizinho Atleti que escandalizava pelos excessos. A entrevista de 2003 mencionou declaração do próprio Cruijff, segundo a qual “ao ver jogadores como Simeone, tenho vontade de entrar em campo e fazer justiça”, aprovando um soco que o argentino (ainda pelo Sevilla) levou de Romário em 1994; bem como um pisão dele em Julen Guerrero já em 1996. Simeone deu sua visão de mundo:

“Romário vinha esquentadinho e aconteceu o que aconteceu. Depois, o que ocorre no campo deve ficar aí. Romário andou bem e não disse nada, então declarei que Cruijff se julgava Deus. [O pisão em Guerrero] foi um erro, isso não se faz. Em nenhum momento pensei em machuca-lo; quando vi o sangue, me assustei. A partir daí, me assassinaram todos. E eu, como sempre, em vez de ficar cabisbaixo, queria brigar, discutir. Agora, quando [Fernando] Couto fez o mesmo a mim, ninguém disse nada. O cuspe de Antônio Carlos… o pior que podem fazer contigo em um campo é cuspir em você, pior do que o soco. De todo modo, depois pedi que não o punissem: o que acontece em campo deve ficar aí”. O tri na Copa América escapou em 1995, mas Simeone brilharia na temporada que se seguiu, até com gols – com doze, foi o vice-artilheiro do Atlético na histórica temporada 1995-96, onde os rojiblancos ganharam sua única dobradinha nacional, somando a Copa do Rei com a única edição de La Liga vencida entre 1977 e 2014.

“Ganhou-se após 19 anos, e ver o pessoal do Atlético zombando ao menos uma vez o do Real foi fabuloso”, exaltou ele naquela entrevista. A moral foi tamanha que Simeone foi bancado por Passarella como um dos três veteranos admitidos na convocação aos Jogos de Atlanta, enfim sendo recompensado após ausentar-se das duas Olimpíadas anteriores, embora o sabor tenha sido agridoce, com a prata contra a Nigéria no minuto final. Foi também na Espanha que ele passou a adotar um corte mais baixo de cabelo, menos por vaidade ou por imposição do técnico Passarella e mais como ritual pré-jogo: “é uma sensação de estar preparando-me para algo”. Voltou à Itália após a temporada 1996-97 para vestir outra camisa nerazzurra. Já não era a do minúscula Pisa e sim a da Internazionale. Dois seis gols do argentino, metade se distribuiu nos dois clássicos com o Milan, incluindo dois em um 3-0 no returno, mas o scudetto se perdeu em outro dérbi, no famoso episódio entre Ronaldo e Mark Iuliano contra a Juventus. Restou a Copa da UEFA contra a Lazio.

A temporada 1998-99 foi mais morna à Inter, mas El Cholo foi um dos raros “europeus” chamados por Marcelo Bielsa para a seleção essencialmente caseira que El Loco testou na Copa América de 1999. Na entrevista, além de destacar que seu lema “o que acontece no campo, fica no campo” foi respeitado até por Beckham (“é um jogador extraordinário. Uma vez, em Manchester, quando fomos jogar pela Champions, ele veio depois do jogo e me pediu a camisa. Mas não houve comentário sobre a famosa expulsão”), falou mais de uma vez de sua eterna disposição pela Albiceleste: “no futebol é muito difícil ter continuidade e saber adaptar-se. E eu creio que soube me adaptar a várias funções. Alguns dirão que tenho o recorde porque sou um cara com sorte. Não creio. Me considero sortudo por viver do que gosto, nada mais. Pensar que tenho mais jogos que Maradona até me dá vergonha, embora nessa época se jogasse menos. Também é verdade que os 106 que tenho fiz jogando na Europa, e isso dá maior valor a mim, porque vivi tendo de viajar”.

Em seu primeiro ciclo no Atlético de Madrid, conhecendo Pep Guardiola e Luis Enrique de outros carnavais contra o Barcelona

A entrevista de 2003 inclusive o indagou como reagiria a alguma impressão negativa de saturação dos argentinos em caso de nova convocação – pois ele se despediu no Mundial da Ásia: “se isso acontece, a alegria de pertencer ao grupo será tão especial que o resto não importará. Jamais fui de jogar na seleção pensando no que dirão. Há pouco vi El Cabezón [Oscar Ruggeri, antigo recordista de jogos] em Madrid e lhe lembrei de uma anedota, que nem ele se recordava, mas eu sim, porque não me esqueço de nada. Estávamos com a seleção em Mendoza e me perguntou quantos jogos eu tinha. Eu rondava os 70. Quando o respondi, me disse, bem a seu estilo: ‘você não me alcança mais’. Cada vez que joguei na seleção, fiz pensando que poderia ser o último jogo. Me cultivaram Bilardo, Diego, Ruggeri. Essa leitura me serviu para que pouco a pouco jogasse um montão. No dia que deixe de afrontar cada jogo e cada treino como o último, não serei eu”.

Se El Cholo já havia encerrado com dobradinha uma seca de 19 anos do Atleti em La Liga, foi ainda na temporada 1999-2000 com seu novo clube, a Lazio. Cheio de argentinos (além dos presentes na foto seguinte, havia ainda Néstor Sensini), o time romano comemorou seu centenário em 2000 em altíssimo estilo, faturando não só a Copa da Itália como a segunda e última Serie A de sua história, após 26 anos da outra. E Simeone não se limitava a destruir pelo meio-campo: “meti quatro gols nos últimos quatro jogos dessa liga”, exaltou. Na verdade, foram quatro nos últimos sete, mas importantíssimos: o único no duelo direto contra a concorrente Juventus dentro de Turim (vice apenas pelos critérios de desempate) e o último no 3-0 sobre o Reggina na rodada final estiveram entre eles. A conquista também igualava Lazio e Roma em número de scudetti, embora os rivais, também com boa panelinha hermana, respondessem de imediato com a conquista da edição seguinte da liga.

O ponto de bala dos argentinos da capital italiana terminou não aproveitado na Copa América de 2001, onde a Albiceleste, receosa com as FARC, preferiu ausentar-se da Colômbia. O erro histórico pode ter impedido que o jejum pendente desde 1993 fosse atenuado, mas não evitou que El Cholo somasse ainda em 28 de março o seu 100º jogo pelo país – no 5-0 sobre a Venezuela pelas eliminatórias, marca então inédita que rendeu-lhe homenagem solene da AFA. O ano ainda rendeu a alegria de uma virada sobre o Brasil nas eliminatórias em setembro, partida que quase foi a despedida involuntária de Simeone. Ele rompeu pouco depois os ligamentos do joelho e só voltaria a defender a Argentina já no Japão, após ser aguardado até o último minuto por Bielsa. “Escutei um ruído muito forte e em seguida a sensação de que ficava sem o Mundial. Mas tão logo me deram o diagnóstico, o fogo veio, as ganhas de lutar. Eu sempre corto o cabelo antes dos momentos especiais, como um jogo decisivo. E dessa vez foi à barbearia antes de me operar”.

“Estive 57 dias com muletas. Na escada da minha casa havia uma cartolina feita por minha mulher e pela de Zanetti com os dias previstos para a recuperação. Quando ia apanhar o carro, passava e riscava um. No vestiário da Lazio, escrevia traços na parede, como os presos: traço, traço e no sétimo o riscava. Tinha que entrar em campo antes de abril, como fosse. E entrei”. Voltou a tempo até de ser carrasco de sua ex-Inter, marcando o gol que em maio colocou a Lazio à frente na vitória por 4-2 (os nerazzurri haviam aberto 1-0 e depois 2-1), impedindo que o time de Milão se sagrasse campeão após treze anos. Mas, embora se garantisse na Copa de 2002, não estava no melhor ritmo e terminou preterido em favor de Matías Almeyda para o jogo decisivo contra os suecos. “Essa tarde vi que além da fama e do dinheiro, eu estava igual a meus companheiros: feito merda. Creio ter rendido nos dois jogos anteriores, mas com a Suécia tinha que jogar gente fisicamente 100%, e eu não estava. Marcelo leu isso e optou por Matías, que jogou um partidaço”.

A Lazio “argentina” celebra a Supercopa Europeia contra o Manchester United em 1999. Além de Simeone agachado à esquerda, é possível distinguir ao centro Juan Sebastián Verón (em pé) e Matías Almeyda (sentado), além do chileno Marcelo Salas sentado à direita

O argentino ficou por mais uma temporada na Lazio, somando inclusive sete gols por um clube que já se esfacelava da bonança financeira dos tempos de Cirio. Em 2003, acertou seu retorno ao Atlético para jogar mais recuado, agora como zagueiro central: “foi uma carta difícil: estreei quando estávamos em penúltimo e marcando Eto’o, que é rapidíssimo. Sempre quis voltar e sempre me quiseram trazer. Me está passando algo fenomenal, porque jogo no time que quero jogar. O pessoal me respeita muito”. El Cholo inclusive não descartava ir à Copa seguinte: “tenho contrato até 2005 com o Atlético. Terei 35 anos. Adoraria aguentar até os 36. Quando comece a Copa, vamos ver como estamos”. Não deu. Voltando há pouco tempo de dois anos na segundona, o Atleti não lutava pelas cabeças e o argentino gradualmente começou a ficar mais tempo no banco. Restando seis meses de contrato, acertou então uma transferência ao “seu” Racing. No primeiro semestre de 2005, enfim defenderia o time do coração.

O impacto do astro foi logo sentido em Avellaneda. O título do clube no Apertura 2001 não vinha servindo para mantê-lo nos páreos seguintes, sem chegar nenhuma vez entre os cinco primeiros desde então – e rondando normalmente o 10º lugar nos torneios que precederam a vinda do Cholo. Mas naquele Clausura 2005 a sofrida torcida racinguista se permitiu sonhar com seu caudilho atrás e Lisandro López na frente, especialmente com um 3-1 de gala no Clásico de Avellaneda contra o Independiente de Agüero e do técnico César Menotti. Mas o Vélez dos irmãos Zárate emendou doze jogos seguidamente invicto e garantiu na penúltima rodada um título que não vencia desde 1998. Desmotivada, a Academia foi derrotada na última e perdeu também a segunda colocação para o Banfield. Simeone se resignou, satisfeito que ao menos o campeão tenha sido o ex-clube. Para o clube, foi mais difícil: o time terminou em 11º no Apertura 2005 e em antepenúltimo no Clausura 2006 – em meio a esse crise, o veterano pendurou as chuteiras para improvisar-se como treinador dos colegas, sem êxito: já estreou na prancheta levando em pleno Cilindro um 4-0 do arquirrival, no famoso dérbi de Agüero.

Simeone deixou a bagunça institucional do Racing para ser o técnico do Estudiantes no segundo semestre. E, em um clube menos pressionado por resultados, teve estrela: com ele à beira-campo e Verón retornando para conduzir a orquestra no gramado, o time de La Plata reconquistou o país após 23 anos, com direito a um 7-0 no dérbi com o Gimnasia (maior goleada do Clásico Platense, onde o rival ainda tinha mais vitórias, mas que desde então só pôde somar um único triunfo) e reviravoltas das maiores contra o então líder Boca para ser campeão – o que incluiu virada no jogo-extra finalizando também jejum de dez anos sem vencer os auriazuis. No Clausura 2007, o Pincha permaneceu no pódio e ao fim de dezembro seu treinador acertou com o River. O Millo não era campeão desde o Clausura 2004 e a espera já era sentida a uma torcida mal acostumada com troféus quase anuais entre 1990 e 2004. El Cholo parecia ter toque de Midas: a pequena seca caiu já no torneio seguinte, o único erguido em Núñez entre 2004 e 2014.

O problema é que o título no Clausura 2008 sob a maestria de Ortega e Buonanotte em ataque que tinha ainda Loco Abreu, Falcao García e Alexis Sánchez foi seguido por uma inacreditável lanterna no Apertura 2008 – e enquanto o Boca era campeão. Ninguém imaginava que aquela colocação pesaria tanto para um rebaixamento pelos promedios em 2011, mas já era o suficiente para Simeone, ainda respaldado pela diretoria, pedir o boné ainda na 14ª rodada. Em meados do Clausura 2009, ele então foi socorrer o San Lorenzo, que não se recuperava do seu próprio baque no Apertura 2008 (no ano do centenário, foi um dos líderes, mas levou a pior no triangular-desempate com Boca e Tigre). Já não deu certo, o que se escancarou com o 15º lugar no Clausura 2010, indo à rua. Naquele ano, publicou-se o livro Quién es Quién en la Selección Argentina, e o perfil dele concluía de modo sombrio: “como treinador, pareceu repetir seu êxito de futebolista, (…) mas logo depois sua estrela pareceu perder brilho”.

Os gigantes argentinos onde brilhou, ainda que com altos e baixos: vice-campeão como jogador e como técnico no Racing, treinou o River campeão em 2008

Mas o Catania, recentemente destroçado por Javier Pastore, autor de três gols em um clássico siciliano no fim de 2010, apostou em Simeone para salvar-se do rebaixamento na Serie A de 2010-11. Comandando uma panelinha argentina (Maxi López, Papu Gómez, Mariano Andújar, Matías Silvestre, Ezequiel Schelotto, Pablo Ledesma e vários outros), a missão foi cumprida com segurança, com dez pontos de diferença para o rebaixamento. O Racing, por sua vez, vinha de um 15º no Clausura 2011 que lhe colocava em um perigoso 12º lugar na tabela de promedios. Foi assim se socorrer no seu famoso torcedor. Embora incapaz de concorrer com um Boca feio mas eficiente, o efeito Simeone sentiu-se depressa: naquele Apertura 2011, a Academia foi vice-campeã. A diferença para o título foi de doze pontos, mas melhor colocação desde o já distante título logrado dez anos antes seduziu o Atlético de Madrid. Ainda em dezembro de 2011, El Cholo acertou o retorno ao Vicente Calderón.

Embora recentemente campeão da Liga Europa em 2010, o Atleti estava longe de mares tranquilos: vinha com apenas quatro pontos de diferença para o rebaixado mais bem colocado e de uma eliminação na Copa do Rei para o Albacete, da terceirona. Com o ídolo, os colchoneros saltaram para um 5º lugar e para um novo título na Liga Europa, com um 3-0 na sensação Athletic de Bilbao de Marcelo Bielsa seguido de um 4-1 na Supercopa Europeia com o Chelsea. Sucedeu-se o 3º lugar em La Liga de 2012-13 com a pontuação mais alta que um bronze teve em 15 anos junto com título na Copa do Rei dentro do Santiago Bernabéu desfazendo tabu de outros 14 anos sem vitórias contra o Real Madrid. O resto é a história conhecida, com a reconquista espanhola na temporada 2013-14 encerrando seca de 18 anos e contínuas aparições nas instâncias decisivas da Liga dos Campeões. As aspas a seguir já são de entrevista que El Cholo concedeu em 2013 à El Gráfico, em reportagem de capa na edição de julho, e retratam bem uma época em que ainda havia certa transição de patamar – que teve turbulências internas:

“Há um sentimento incondicional das pessoas, uma necessidade de ser campeão, historicamente sempre nos custou, o torcedor é parecido [ao do Racing], o Atlético sente que pode ganhar como o Barcelona. O torcedor, hein! Na final contra o Madrid, nos diziam: ‘Cholo, tem que ganhar sim ou sim’, e fazia 14 anos que não ganhavam! Ou te dizem: ‘tem que entrar na Champions’. E em 110 anos de história, o Atlético entrou oito vezes na Champions’. [Na Liga Europa] nós fomos campeões ganhando todos os jogos, que te dá mais grana do que se avanças pelos pênaltis, e no total o clube recebeu 8 milhões. Na Champions são 20 milhões de entrada e depois, se avanças, vão te dando mais. Nós íamos avançando na Liga Europa e ao mesmo tempo subíamos em La Liga com chances de entrar na Champions seguinte. Estávamos nas semifinais e os jogadores queriam ganha-la, mas o clube te pressionava todos os dias, te dizia que o único que interessava era entrar na Champions. Pelos 20 contos. Do meu lado não era fácil, porque lutavas contra o clube, que te exigia uma coisa, com teus desejos de ganhar como treinador e em convencer os jogadores de que podiam fazer as duas coisas”.

As oito participações na Liga dos Campeões em todas as décadas anteriores se somaram a sete participações seguidas desde então, com muitos avanços às fases decisivas. Aquela reportagem de 2013 iniciava inclusive com a reprodução de diálogo de Simeone com o filhinho Giuliano, então com 9 anos (Giovanni, que tinha 16, faria a família virar em 2018 o sexto caso de pai & filho pela seleção argentina), ao comunicar-lhe em 2011 que teria de ir morar na Espanha para treinar o Atlético. A introdução termina assim: “É sério? Vais dirigir contra Messi e contra Cristiano Ronaldo? Vamos poder ir assistir alguma partida, não? Mas então, se ganhares, não vais voltar mais”.

Sem aliviar contra o filho Giovanni em recreação na Lazio em 2000. Dezoito anos depois, viraram o sexto caso de pai & filho que defenderam a seleção argentina

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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