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Didi e o River Plate: uma real história de legado

Ontem, a própria FIFA destacou os vinte anos da partida de Didi, eternizado como cérebro do Brasil campeão pelas primeiras duas vezes nas Copas do Mundo. Ele soube ainda ser ídolo na dupla Fluminense e Botafogo antes de ganhar admiração de outros rivais, os argentinos. O “Príncipe Etíope” teve uma recordada passagem como treinador do River no início dos anos 70, em meio ao pior jejum que o clube já enfrentou: os dezoito anos vividos entre 1957 e 1975. A quem torce o nariz para a expressão “legado”, ao menos ali houve bastante verdade no termo, pois o grande mérito de Didi foi exatamente o de promover e polir exatamente peças-chaves que protagonizaram o fim da longa seca. Não é exagero colocar o brasileiro como o mais querido técnico em Núñez dentre os que não conseguiram títulos. Vale recordar os dias millonarios do pai da folha-seca.

Prólogo

A faixa diagonal vermelha já caía bem a Didi antes e a língua espanhola não seria maior entrave: é que ele vinha bastante credenciado por seu trabalho à frente da seleção peruana, classificando-a pela primeira vez a uma Copa do Mundo, a de 1970 – além de fazer bonito com a Blanquirroja no México, oferecendo jogo duro contra o próprio Brasil nas quartas-de-final. O reconhecimento na Argentina do feito era ainda maior porque a classificação ao Mundial se dera eliminando justamente os argentinos, calando a Bombonera. Até hoje, aquela foi a única vez em que a Albiceleste foi desclassificada em campo nas eliminatórias; as ausências anteriores foram todas por fatores políticos, que fizeram o país sequer participar da fase de qualificação.

Técnicos brasileiros estavam prestigiados na Argentina desde antes daquela hecatombe, vale ressaltar. Em 1967, Osvaldo Brandão terminou carregado na volta olímpica após seu Independiente carimbar a recente faixa de campeão mundial do rival Racing vencendo-o por 4-0, cereja de um título com um recorde ainda vigente de aproveitamento no profissionalismo argentino. E já no campeonato seguinte, foi a vez de Tim conduzir o San Lorenzo ao primeiro título invicto que a era profissional (oficializada em 1931) vira de qualquer clube.

De outro lado, se os argentinos estavam traumatizados com a desclassificação ao Mundial de 1970, havia um numeroso segmento com traumas extras: os torcedores do River, que encerravam em 1970 uma década perdida a despeito de esquadrões poderosos, marcados pela sina de morrerem na praia. Em jejum desde 1957, o Millo vinha de nada menos que um tetravice-campeonato seguido, cada um com seus próprios requintes particulares de crueldade.

No Nacional de 1968, o River teria sido campeão se um gol nos minutos finais contra o Vélez não fosse impedido pela mão do lateral velezano Luis Gallo, que ainda por cima viu sua infração não ser convertida em pênalti – com o resultado, o Fortín, que ainda tinha uma partida a mais para jogar, faturou o torneio (seu primeiro título argentino) ao garantir saldo maior de gols em duelo contra o Racing. No Metropolitano de 1969, o River se deu ao gosto de eliminar o Boca nas semifinais, mas para levar de 4-1 na decisão contra outro virgem de títulos na elite, o Chacarita (até hoje, a única conquista funebrera na elite).

No Nacional de 1969, uma arrancada final, com seguidas vitórias no Monumental, permitiu ao elenco treinado por Ángel Labruna chegar à rodada final com chances de título. Bastava vencer em casa o Boca para forçar um jogo-extra. Mas justamente ali a série de triunfos parou, com o arquirrival – curiosamente treinado por Alfredo Di Stéfano – garantindo uma volta olímpica em pleno templo riverplatense, algo então inédito. No Metropolitano de 1970, então, o time sentiu por uns dias o gosto do título. Concorria com o Independiente, que teve seu último jogo adiado por chuvas. Para ser campeão, o Rojo precisava vencer seu compromisso por dois gols de diferença ou então por um gol, desde que marcasse três ou mais. E conseguiu, com o gol da vitória saindo a dez minutos do fim… de um histórico clássico contra o Racing em plena casa rival.

O tetravice se juntava a uma série de desventuras, que incluíram a queda nas semifinais do Metropolitano de 1968 para aquele San Lorenzo de Tim, o infame vice-campeonato na Libertadores de 1966 e ainda a uma série de derrotas em rodadas finais contra o Boca que custaram a perda da liderança (e depois o título) em 1962 (em disputa direta contra o próprio rival, algo mais raro do que parece), 1963 (onde a concorrência também era contra o Independiente, ao passo que a derrota se deu em pleno Monumental) e 1965 – onde o carrasco havia sido um ídolo em Núñez na década anterior, Norberto Menéndez. Marcado exatamente pelo pênalti perdido naquele Superclásico decisivo de 1962, outro brasileiro marcante em Núñez foi designado para auxiliar Didi: era Delém, ex-colega do craque na seleção.

1970

Esse contexto acima já criava um pessimismo natural mesmo contra alguém aparentemente tão preparado: “os milhões que o River Plate está pagando todo mês ao seu novo técnico serão um bom empreendimento ou as ideias e todos os planos revolucionários não passam de um conto de fadas, onde a figura de Valdir Pereira, o Didi, entra como o príncipe encantado? Os Cr$ 16.275,00 mensais que recebe fazem de Didi o técnico mais bem pago da América do Sul. Suas declarações e seu método de trabalho, apesar de assustarem um pouco a Argentina, são ainda a grande esperança do River Plate para ter um futebol melhor. (…) Ou tudo não passará de uma grande farsa de um falso milagreiro do futebol?”, começava uma reportagem já de outubro daquele 1970 feita pela revista brasileira Placar.

A foto é de 1970, mas a cara mais parece de poucos amigos do que de respeitosa atenção: César Laraignée, Daniel Onega e Oscar Más, já veteranos, acabariam exilados mesmo depois que o brasileiro deixou o River

Era mesmo essa a mesma linha inserida em outra reportagem de 1970, da revista argentina El Gráfico, onde o personagem na verdade era o ardil Carlos Bilardo, ainda um jogador do Estudiantes recém-tricampeão seguido da Libertadores. O futuro técnico da seleção campeã de 1986 já desconfiava do futuro de Didi: “Pelé, que é o jogador a quem mais admiro, não é o melhor do mundo só porque sabe mais que os outros. É craque porque é homem do gramado. Porque é vivo. Porque conhece todas as malandragens. Uma vez, você lhe fez uma reportagem onde el negro mesmo lhe confessa que ‘o futebol lindo terminou’. E isso diz Pelé, que é o melhor jogador do mundo… por isso, não sei se Didi terá êxito, mas eu não creio que se possa fazer futebol lindo… não creio que os triunfos cheguem pelo feito solitário de jogar melhor… há muitos outros fatores e então você tem que ter uma equipe bem balanceada…”

Bem, Didi não tardou a realizar suas reformas. Naquela referida matéria de outubro, a Placar que o brasileiro “treina todas as tardes, das 2 às 4 horas, três times formados por garotos entre dezesseis e dezenove anos. Nesse treinos, o mestre ensina desde o comportamento tático de todo o time até o comportamento moral de cada jogador”, com o brasileiro até declarando que “para o ano que vem, preciso de, pelo menos, seis desses garotos jogando no time titular”. O prata-da-casa Carlos Morete até já havia estreado antes, mas foi bancado como nunca pelo novo treinador, mesmo que naquele Nacional ainda fosse um atacante muito vaiado, e com razão: quatorze vezes titular, só marcou um golzinho na campanha, distante de ser justamente o artilheiro do desjejum de 1975. A principal novidade da garotada para aquele Nacional foi promovida na 10ª rodada, que marcou a estreia profissional do talentoso meia-direita Juan José López, no 2-1 sobre o Gimnasia de Mendoza.

O brasileiro ainda não tinha pressa: aquela mesma reportagem da Placar constava a estimativa sem afobações de que o brasileiro preparava um time “para o ano que vem”. A preocupação mais imediata era retirar exatamente a mentalidade ansiosa que vinha caracterizando o time: “o gol chega mais rápido quando a gente o procura com mais calma. Não adianta nada tentar marcar na base de contra-ataques desesperados, como River vinha fazendo. O negócio é tocar a bola, com calma, nem que seja para trás”. A reportagem fazia coro a essas declarações pré-Cruijff e pré-Guardiola: “seus jogadores, quando pegam a bola, já não saem em disparada para o gol. Agora já pensam duas vezes antes de dar um passe, fazendo como o mestre lhes ensinou: tocar a bola, todo o time tocando a bola e participando de todas as jogadas, atacando e defendendo”.

Aquela nota também já noticiava um problema, a necessidade local de Didi concluir o curso argentino de técnico: “acontece que a lei aqui na Argentina não permite que técnicos sem diploma entrem em campo. Por isso estou fazendo o curso. Estou cansado de dirigir o time lá das numeradas”. Esse entrave não impediu um grande começo, com quatro triunfos nas quatro primeiras rodadas, incluindo no Superclásico (2-0). A invencibilidade se manteve por mais uma rodada, no empate em 1-1 com o Racing, até o San Lorenzo bater por 3-1 na sétima.

Naquele Nacional, enquanto o Boca integrava o grupo B, o trio de gigantes Boca, Racing e San Lorenzo se perfilava no grupo A. Todos os times se enfrentavam em turno e returno no interior das chaves, com duas partidas intergrupais extras, reservadas exatamente aos clássicos. Os dois melhores avançariam para as semifinais. E o trio de grandes do grupo A terminou surpreendido: além da grande fase daquele Chacarita, o Gimnasia buscava sair em La Plata da sombra do Estudiantes: os alviazuis montavam um de seus elencos mais celebrados, apelidado de La Barredora, com o folclórico Hugo Gatti no gol e o superartilheiro Delio Onnis (até hoje o maior goleador do Monaco e da própria Ligue 1) no ataque.

A chave se embolou ainda com o outro Gimnasia, o de Mendoza, também fazendo bonito, a ponto de despertar interesse no Real Madrid pelo grande craque dos mendoncinos, Víctor Legrotaglie. A equipe de Didi até fazia sua parte defensivamente: só a do Chacarita sofreu menos gols na fase de grupos. Nas 18 primeiras rodadas, o Millo sofrera somente três derrotas e parecia tranquilo para avançar. Mas, nas duas restantes, calhou de ser derrotado em ambas: em pleno Monumental, reviveu o trauma com o Chaca ao levar de 2-1 em um confronto direto. E depois, na visita a Mendoza, caiu pelo mesmo placar para o Gimnasia local – permitindo a classificação do outro Gimnasia, que em paralelo triunfou no seu duelo direto com o San Lorenzo e terminou ultrapassando em um ponto o River para ficar com a segunda vaga.

1971

Se no Nacional de 1970 o River ao menos dera bons presságios, o torneio seguinte foi um banho de realidade de que a consolidação da mescla entre juventude e experiência demoraria além do imaginado e tolerável. Nas dez primeiras rodadas, o time venceu sete (inclusive o Superclásico e um 4-1 no Estudiantes novamente finalista da Libertadores); seis delas, seguidas. A imagem que abre a matéria, usada como capa da revista El Gráfico de 30 de março, data dessa boa fase. Mas, ainda na metade final do primeiro turno, os triunfos caíram pela metade. E o trabalho do brasileiro, embora se mantivesse invicto contra o arquirrival (3-3 no returno), simplesmente não venceu uma sequer nas sete rodadas finais: a equipe de Núñez terminou a onze pontos do campeão Independiente, em tempos onde vitórias só valiam dois.

Osvaldo Pérez, Atilio Herrera, Carlos Morete, René Daulte, Pablo Zucarini, Juan José López, o massagista José Gozza, Didi, Joaquín Martínez, Reinaldo Merlo, Alfredo Granato e Jorge Ghiso: furando a greve de 1971

Foi justamente nessa complicada série final que foi promovida uma futura lenda: Norberto Alonso, espécie de Zico da história riverplatense como um camisa 10 habilidosíssimo a brilhar nos anos 70 e 80 e terminar injustiçado na seleção (embora vencesse a Copa de 1978). El Beto até já havia sido utilizado por Didi no ano anterior, em amistoso na província do Chaco vencido por 2-1, mas para efeitos oficiais sua estreia se deu em derrota pelo mesmo placar contra o Atlanta, pela 26ª rodada. Como Jota Jota López, Alonso sempre se mostraria devoto do brasileiro: “Didi foi tudo. Foi um mestre. Promoveu garotos sem lhe importar quantos anos tinham, nos cultivou uma maneira de sentir o futebol, nos respaldou contra o vento e a maré” é um dos depoimentos elogiosos presente naquela enciclopédia oficial do centenário do Millo.

Outro foi do próprio López: “tinha um poder de transmissão único. Sua ideia era bárbara: puro toque, muita soltura, toda liberdade. A equipe de Didi foi grandiosa, ia sempre ao ataque e essa insistência nos permitia chegar fácil ao gol. Sua influência me serviu muitíssimo para desenvolver-me como jogador. Ainda hoje me pergunto o que teria passado com Alonso, comigo e com tantos outros garotos se ao estrear na primeira outro técnico nos houvesse cultivado primeiro a obrigação de ganhar antes que dar uma caneta, ou de marcar antes de ensaiar um drible… nos teria cortado as asas. Por isso, sempre estarei reconhecendo Didi, quem me deixou ter uma ‘irresponsabilidade’ que me fez muito bem”.

No Nacional, parecia, enfim, que o Jogo Bonito (como os próprios argentinos, em português mesmo, se referiam às ideias de Didi) daria liga. Como em 1970, o torneio dividiu os times em dois grupos, dessa vez para turno único interno além de uma rodada extra intergrupal – reservada normalmente aos clássicos. E o River, que começou vencendo seguidamente nas três primeiras rodadas, manteve-se invicto até a penúltima delas. Engatou outra sequência de vitórias, quatro, entre a 6ª e a 9ª rodadas. Após a 7ª, uma greve do sindicato dos jogadores profissionais sacudiu o futebol argentino, que não parou: os times cumpriram tabela usando seus juvenis.

Embora alguns dos garotos do River já houvessem estreado profissionalmente, era preciso aguardar dois anos de primeira divisão para serem considerados profissionais e assim, estavam livres para seguir em campo – diferentemente, por outro lado, de gente mais experiente feito Daniel Onega, até hoje o maior artilheiro de uma única edição na Libertadores (na de 1966). Seu depoimento àquela enciclopédia do centenário foi justamente uma rara declaração contra o brasileiro: “a greve de 1971 me fez entrar em conflito com o clube e Didi, que era o técnico, decidiu separar do plantel os grevistas. Nos pagavam tudo, mas nos tinham licenciados e não podíamos jogar. Emigrei ao Racing e estive um ano emprestado”. Embora até voltasse ao River depois que o empréstimo ao Racing (onde, ironia, foi vice-campeão no Metropolitano 1972) se encerrou, Onega só disputou mais seis jogos oficiais em 1973, rumando ao futebol espanhol.

Outras baixas sensíveis seriam a do competente defensor César Laraignée (exilado ao futebol francês em 1972) e a de Oscar Más, até hoje o segundo maior artilheiro da história do clube. A diretoria riverplatense, em misto de rancor com os grevistas e de respaldo à boa fase, vetou-os para 11ª rodada, a primeira após a “insubordinação” ter se encerrado. Era exatamente o compromisso intergrupal… e os cartolas do Boca não abriram mão de seu elenco principal para a partida, realizada no campo neutro do Racing (os clássicos foram todos em campo neutro naquela rodada).

O resto é a história contada em detalhes por Alexandre Anibal nesse texto de 2010: com um Superclásico tendo o condimento extra do revanchismo dos grevistas do Boca contra os “traidores” do River, logo aos três minutos Orlando Medina fez uma falta violenta em Jota Jota López, acirrando ainda mais os ânimos. Mas os juvenis pareceram não se incomodar com as intimidações, criando várias chances de gol. Aos 21 minutos, Alonso recebeu um passe na intermediária do ataque e lança em profundidade o ponta Joaquín Martínez – sobrinho de um jogador de mesmo nome que integrara o forte River dos anos 40… e por sua vez futuro tio do ex-corintiano José Manuel Martínez (que muito ironicamente defenderia o Boca: é que ele é sobrinho também do citado Laraignée e filho de Carlos Martínez, outro daquele River setentista).

Martínez se livrou do veterano Silvio Marzolini e de Roberto Rogel e tocou suavemente para as redes na saída do goleiro Rubén Sánchez – todos os três, com passagens pela seleção argentina (Marzolini inclusive havia sido eleito o melhor lateral da Copa de 1966). O River saiu na frente. Após o gol, Martínez passou por Marzolini e murmurou: “cara, você terá uma péssima noite e mal sabe o que te espera”.

Tio de ex-corintiano, Joaquín Martínez abre o lendário 3-1 dos garotos do River sobre o Boca em 1971

Mal o jogo recomeçou e o ataque do Boca obrigou o goleiro Carlos Barisio (futuro dono de um recorde de tempo sem tomar gols ainda vigente na liga argentina) a realizar duas ótimas defesas. E dois minutos após o gol de Martínez, Ramón Ponce empatou a partida cobrando pênalti. Os meninos do River levaram um golpe que poderia deixá-los sem moral. Mas, ao contrário do que se poderia supor, o Boca não pressionou o River e o primeiro tempo terminou empatado. No vestiário, fumando um cigarro atrás do outro, Didi chamou seus jogadores:

– Merlo, você vai sair…
– Joaquín, você vai sair…
– Alonso e Juan José, vocês também…

Martínez se levantou e questionou: “Por que, professor? Fiz um gol, deixei o Marzolini para trás”. Didi respondeu calmamente: “vocês todos vão sair para que entrem Davicce, Kent e todos os cartolas. Este jogo está muito fácil…”.

Didi brincou com seus jogadores para tirar-lhes a pressão. Sabia do potencial deles e esperava que no segundo tempo eles pudessem mostrar tudo o que sabiam. E o River voltou para o segundo tempo com o domínio total do jogo: Jota Jota distribuía o jogo como um veterano, Alonso passava como queria pelos marcadores e Morete sempre levava perigo ao gol adversário com seus chutes fortes. Já aos seis minutos da etapa final, falta para o River: Alonso levantou a bola e López pegou de primeira, fazendo a bola subir por cima da barreira e morrer no fundo do gol do Boca.

Mesmo após o gol a equipe de Didi seguiu mandando no jogo. E chegou ao terceiro gol aos 31 minutos, após uma falha do goleiro Sánchez: dominou uma bola que veio de um arremesso lateral e quis sair jogando. Porém, errou fantasticamente e entregou a bola nos pés de Morete. El Puma, que começara a enfim deslanchar a fazer gols (marcara apenas dois no Metropolitano, mas já somava seis somente nas cinco rodadas anteriores), empurrou a bola mansamente para dentro da meta. O River fazia 3-1 e dava muitos motivos para a comemoração de sua torcida no Cilindro.

Até o final da partida, a equipe de Didi controlou o ritmo e esperou o apito final para dar início a uma grande festa no gramado. Os meninos do River derrotaram os profissionais do Boca e entraram para a história. Morete chorava sem parar, Alonso ia ao banco se abraçar com os companheiros de juvenis e o jornalista Diego Chavo Fucks relataria que “foi uma vitória histórica. Foi um dos jogos que se todos que disseram que estiveram lá de fato estivessem, teria sido o clássico com maior presença de gente. Foi um jogo em que os jogadores contarão a seus netos que estavam lá”. Mais poética ainda foi a pena de Osvaldo Ardizzone na revista El Gráfico: “os garotos do River… os duendes, as fadas, os magos… pena que Walt Disney não estava!”.

A festa foi tanta que a garotada, porém, não venceu mais. Empatou na 12ª rodada em 1-1 com o Huracán e na 13ª fez o famoso “jogo de seis pontos” (ou melhor, de quatro, pois vitórias valiam dois) contra o Independiente. E, mesmo no Monumental, um Rojo liderado por um dos caudilhos da greve, José Omar Pastoriza, venceu por 3-2 com direito a gol do próprio Pastoriza, um volante. Na 14ª e última rodada, 1-1 com o Ferro Carril Oeste e adeus classificação: o time de Didi, outrora líder de um grupo embolado, ficou em quarto, a dois pontos do Newell’s e a três do Independiente.

1972

Apesar do desfecho amargo, em janeiro de 1972 o treinador era só otimismo em nova nota à Placar: “acabei no River com essa mania de só tentarem o gol debaixo da baliza. Bola sobrando perto da área, patada para o gol. Advirto sempre aos meus volantes e atacantes: quero, ao menos, cinco chutes de cada um para o gol. Que a bola vá para fora, que bata nos beques, que o chute pegue errado. Mas uma, ao menos, entra. Quem não chuta, não faz gol. E o pior: acaba levando”.

Sondado para voltar ao Brasil, ele jurou que “eu não sairia agora do River de jeito nenhum. Comecei um trabalho difícil, enfrentei o diabo. Tinha advertido os homens quando eles foram me buscar no Peru: não faço milagres. Queria pelo menos dois anos para preparar um time à minha moda: um para plantar, outro para colher. A coisa saiu como eu sonhava: este é o ano quente do River. Por que iria entregar tudo mastigadinho na hora de comer o bolo?”.

Por fim, ele também agradecia aquela greve: “aproveitei e lancei meu time do futuro. Foi um sucesso. Os meninos estão jogando aquele futebol que os antigos recordam com emoção: tocado, brilhante, rápido para o gol. O mundo quase veio abaixo. Os profissionais não em entenderam. Acharam que meu processo era uma bofetada na escala de ascensão. Fui obrigado a agir com rigor. Chamei os mais enfurecidos e falei sério: aqui mando eu. Eles deram azar. O time engrenou. O Poder Jovem restabeleceu a beleza e a força do verdadeiro futebol argentino. A torcida voltou a aplaudir o time, a encher os estádios. Venci”.

Juan José López, autor do segundo gol dos 3-1, é carregado na imagem da esquerda. À direita, a capa pós-jogo da El Gráfico, com o Morete (autor do terceiro gol) de costas ainda celebrando com Osvaldo Pérez (ainda em pé) o primeiro, de Martínez

Mas o brasileiro pagaria pela boca. Se Onega passou ao Racing, outros medalhões foram gradualmente reincorporados, como Más, o goleiro José Alberto Pérez e o defensor Jorge Dominichi. Se a rodada inicial parecia dar mostras de arestas apartadas entre os jovens e os grevistas, com um 5-3 no Vélez com dois gols de Más e três de Alonso, logo na segunda o Rosario Central aplicou um 4-0. Na terceira, era a vez de um Superclásico… e, mesmo em Núñez, Didi perdeu sua marcante série invicta contra o Boca. Pior: levou outro 4-0 seguido.

Um 2-0 em Avellaneda sobre o Independiente (que naquele semestre começaria sua série de quatro títulos seguidos na Libertadores) foi logo revertido por um 1-0 do Gimnasia dentro do Monumental. Veio então uma série de três jogos sem perder, mas contra quadros pequenos: 1-1 na visita ao Argentinos Jrs, 3-1 no Banfield e 3-1 fora de casa sobre um Chacarita ainda bem forte. O problema é que, no reencontro com um gigante, o Millo levou o terceiro 4-0 em apenas nove rodadas, para o San Lorenzo. E, de novo, em pleno Monumental…. Sem mais respaldo, o brasileiro renunciou. Aquela matéria de 1977 da Placar relatou assim:

“Ao final do jogo, vieram as vaias. Os insultos. No dia seguinte, uma segunda-feira, à noite, pediu demissão. Na quarta-feira, 12 de abril de 1972, Valdir Pereira, conhecido por Didi, voltou ao Brasil. Chegou a foi embora da Argentina num dia cinzento, triste. Mas sua passagem deixou um caminho onde existia a saudável intenção de colocar um futebol alegre em campo. Esta foi, certamente, a maior contribuição de Didi ao futebol argentino. Mesmo assim, não foi suficiente para levar o River ao título”. Ele não tardou a recuperar toque de Midas, faturando em 1974 com o Fenerbahçe a dobradinha turca (liga e copa nacionais), encerrando um tricampeonato do Galatasaray que foi a maior série rival até os dourados anos 90 dos vizinhos. Voltou então ao Brasil para ganhar três estaduais seguidos: 1975 com o Fluminense, 1976 e 1977 com o Cruzeiro.

Quanto ao período em Núñez, em 1977 uma detalhista retrospectiva da Placar analisou com certa profundidade, destacando que Didi já era motivo de suspeitas mesmo no início promissor: “era uma verdadeira revolução. E como todos os revolucionários, ainda que seja no futebol, começaram a critica-lo, a persegui-lo, inclusive dentro do próprio River. Alguns jogadores que foram afastados iniciam a guerra. Das divisões inferiores, Didi começa a promover jogadores. Bem a seu estilo, lançando juvenis no time de cima. E surgem Juan José López, Reinaldo Merlo, Carlos Morete, Osvaldo Pérez, Joaquín Martínez, Norberto Alonso… junto com as promoções, vêm algumas derrotas. As vozes, até então tímidas, que o criticavam, passam a soar mais forte. O River fica fora das finais, mas desta vez o fato não preocupa muito, pois o que importa é o futuro”.

El Mostaza Merlo, até hoje o recordista de partidas no River, na verdade já havia estreado em 1969 no time adulto, no primeiro ciclo de Labruna. Mas seria mais um a defender o forasteiro na enciclopédia do centenário: “com estilos diferentes, eu acreditava firmemente nos dois métodos, o de Labruna e o de Didi”, expressou o volante. Já aquela matéria de 1977 da Placar seguia detalhando que “no Campeonato Metropolitano de 1971, a euforia popular volta a tomar conta de todos. Nas sete primeiras rodadas, o River obtém seis vitórias e um empate. Não há campo que tenha acomodações suficientes para receber a torcida do River nem time que resista ao “jogo bonito” de que falava Ardizzone. Entretanto, o time cai de produção e os que criticavam Didi voltaram a fazê-lo”.

Chega-se então ao fator greve: “Didi, surpreendentemente, ficou contra o movimento e continuou treinando com a equipe titular do River, em sua maioria jogadores amadores e sem contrato registrado na Associação de Futebol da Argentina. Muito dos seus mais aguerridos defensores viraram-lhe as costas. Todos entenderam a sua atitude como uma fraqueza, defendendo o patrão. Quando a greve acabou, houve uma luta entre os que haviam aderido ao movimento e os jovens amadores que preferiram discordar da ordem do sindicato dos jogadores. E os jogadores do River de Didi se tornaram o alvo preferido. Cada jogo era uma guerra. Mais uma vez, o River caiu de produção nas finais. No Metropolitano de 72, muita gente já começava a se impacientar”.

Osvaldo Diez substituiu o brasileiro entre a 10ª e a 33ª rodada. Na 34ª e última do Metropolitano, o técnico foi Bruno Rodolfi. Eles, sem mudarem as peças da espinha-dorsal deixada por Didi, souberam trabalhar: o Millo terminou em quarto, a três pontos do vice-campeão Racing. Para o Torneio Nacional, Juan Urriolabeitia foi designado como novo treinador e levou o mesmo elenco mais longe, em uma campanha que incluiu uma classificação sobre o Boca nas semifinais (após já terem superado por 5-4 um Superclásico na fase inicial onde o rival vencia por 4-2) e ainda um 7-2 no Independiente (onde Alonso ainda por cima marcou o gol que Pelé não fizera sobre o Uruguai em 1970). Só não foram páreos para um San Lorenzo imbatível naquele 1972: os mesmos azulgranas que terminaram de derrubar Didi haviam vencido o Metropolitano e vieram a faturar também o Nacional, em decisão em jogo único no campo neutro do Vélez.

Mas, a quem via um vice-campeonato com Urriolabeitia como uma evolução, Alonso tratava de se declarar fiel ao mestre anterior ainda naquele 1972, rechaçando que não haveria como Didi prosseguir no cargo: “Didi foi e segue sendo um verdadeiro maestro. De futebol sabe uma barbaridade. Como pessoa, me pareceu excelente. Eu senti muitíssimo sua ida. Didi queria fazer algo e não pôde termina-lo. A culpa não foi sua. As circunstâncias o obrigaram. O River precisa de um campeonato e quando os resultados vêm contra, as pessoas se desesperam. Promoveu gente jovem. E como pessoa nos tratou sempre bem. Eu muitas vezes estive a ponto de dizer-lhe que embora fosse um pouco, tínhamos que marcar [o adversário]. Que estávamos dando vantagens. Não se apresentou a ocasião. Esse foi seu único defeito. Acreditou demais no toque… a ida de Didi me afetou muito e só agora estou me recuperando”.

“Tomala vos, damela a mí, el equipo de Didi”, o cântico na época. E o debate após a saída do brasileiro: semelhanças com Roger Machado ou Fernando Diniz?
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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