Dezoito anos do suicídio do “novo Redondo”: a trajetória de Mirko Saric, joia do San Lorenzo
Por Leandro Paulo Bernardo
“Não encontro sentido na minha vida”. Talvez seja essa a frase mais marcante para diagnosticar uma pessoa com depressão. No futebol argentino, ela foi dita por um jovem talento com potencial de ídolo máximo da seleção. Há dezoito anos, Mirko Saric cometeu suicídio e expôs a questão sobre o peso emocional e fragilidade de sentimentos na vida de um jogador.
Neto de imigrantes croatas (Šarić seria a grafia original do sobrenome), ele nasceu em Buenos Aires no dia 6 de Junho de 1978, enquanto a Argentina vencia a França na primeira fase da Copa do Mundo. Desde cedo demonstrou muita vontade de ser jogador. Como morava no bairro Flores (vizinho a Boedo e que anos depois viria a abrigar o novo estádio do próprio San Lorenzo), entrou para as categorias de base do San Lorenzo com nove anos – inicialmente, como centroavante. Com dezoito anos, após vencer já como volante o campeonato argentino de aspirantes de 1995-96, estreou profissionalmente no Ciclón, no dia 22 de dezembro de 1996 pelo campeonato Apertura, ao substituir o ídolo Néstor Gorosito.
Apesar da derrota por 2-0 para o Unión de Santa Fe, aquele volante alto chamou a atenção do então treinador Carlos Aimar. O San Lorenzo atravessava um período de transição entre os campeões de 1995 com os jovens da base que viriam a ter êxito em 2001. Essa transição ficaria sob responsabilidade de Oscar Ruggeri, campeão da Copa do Mundo de 1986 que, presente na campanha que encerrou em 1995 jejum de 21 anos dos cuervos na elite, iniciava sua carreira de treinador em 1998. Mirko, após ter sido relegado pelo antecessor de Ruggeri (Alfio Basile), passava a ser uma referência entre os jovens e ganhava muitas oportunidades especialmente na Copa Mercosul.
No dia 18 de fevereiro de 1998, jogou sua primeira partida como titular no Nuevo Gasómetro, contra o Gimnasia LP (vitória adversária por 1-0). Exatos seis meses depois, em 18 de agosto de 1998, marcou seu primeiro gol pelo San Lorenzo, na vitória por 4-0 contra o Colo Colo pela Mercosul. Naquela competição, o Ciclón chegaria até as semifinais (foi eliminado pelo vice campeão Cruzeiro), algo que animou a torcida então carente de títulos internacionais. No início de 1999, destacando-se nos torneios de verão, seu passe foi avaliado em nove milhões de dólares e o Real Madrid demonstrou muito interesse no “Novo Redondo”, mas o presidente sanlorencista disse que só venderia Mirko por treze milhões.
Porém, durante um aquecimento no jogo contra o Rosario Central, Saric sofreu sua primeira contusão, ao ser atropelado por um veículo inusitado: o carro maca, o que lhe provocou um profundo corte no joelho. Recuperou-se, mas um nível abaixo do que vinha demonstrando. Gente próxima viria a declarar que ele se afundava profundamente quando as coisas já não saíam como queria. “Por aí um insulto das pessoas por um passe errado era um martírio em forma de labirinto, do qual lhe custava uma enormidade encontrar a saída”, ventilou seu verbete no Diccionario Azulgrana.
Nesse período, Mirko começava a demonstrar instabilidades emocionais com atos de indisciplina – inclusive a imprensa explorou muito um caso em que alguns jogadores do San Lorenzo foram acusados de levar garotas para a concentração. Depois de alguns dias, Mirko foi até o quarto do treinador Ruggeri na concentração e fez a declaração que paralisou El Cabezón: “Não encontro sentido na minha vida”.
De imediato, Ruggeri pensou que o jovem meia tinha dúvidas sobre questões táticas, mas no decorrer da conversa notou que era algo muito além do futebol. Ali estava um jovem perturbado com sentimentos que não conseguia resposta. Ruggeri viu naquele momento que a função de treinador ultrapassava a simplicidade de um mero jogo; tampouco conseguia entender como um jovem bonito (“tinha que tirar as novinhas da concentração porque vinham por todos os lados”, afirmaria o treinador já em 2003), com talento e cheio de saúde estava reprimindo emoções e questionando algo tão expansivo de explicações.
O técnico acolheu o meia de forma mais fraternal e humana, entrou em contato com o pai do jogador, ao qual acabou confessando o início de um tratamento psiquiátrico de Mirko Saric. O momento mais simbólico dessa relação entre o treinador e o volante veio na última rodada do torneio Clausura de 1999, onde Saric ainda pôde destacar-se a ponto de ser colocado ao lado de Javier Saviola e Pablo Aimar como uma das maiores revelações do torneio.
Naquela partida, Saric roubou a bola de um jogador do Racing e chutou de fora da área marcando um golaço (o segundo na vitória por 4-0). Na comemoração, Mirko saiu apontando para Ruggeri e deu-lhe um caloroso abraço. Todavia, chamou atenção também o fato de Mirko apontar para sua cabeça, como se quisesse dizer para alguém nas tribunas do Nuevo Gasómetro que ela estava boa.
Pela Mercosul, Mirko se destacou nos jogos contra Corinthians e Palmeiras, porém novamente o Ciclón cairia para uma equipe Brasileira que seria vice campeã (dessa vez o Palmeiras). O irmão dele, Martín Saric, jogava nos juvenis do San Lorenzo e foi negociado com o Sportivo Luqueño do Paraguai no final de 1999. Sua irmã Mariana tinha casado. E Mirko recebeu a notícia de que seria o pai de uma criança fruto de um relacionamento conturbado (alguns meses depois, o exame de DNA comprovou que o filho não era dele), porém o maior motivo para o aumento da depressão veio no dia 19 de Dezembro de 1999.
Era a última rodada do Apertura, um empate em 2-2 entre San Lorenzo e o já campeão River. Mirko Saric, que havia entrado no decorrer da partida, rompeu os ligamentos do joelho esquerdo e ficaria um bom tempo parado. O jogador foi morar com os pais e sua outra irmã, Mirna. Já estava muito deprimido, sabendo que o filho não era seu e vendo seu irmão, depois de muita luta, não conseguir ser profissionalizar no San Lorenzo. Em fevereiro de 2000, Mirko Saric escapou ileso de um acidente automobilístico, após seu carro capotar em Buenos Aires.
Na manhã do dia 4 de abril de 2000, três dias após o 88º aniversário do clube e três semanas após uma declaração pública de que poderia se matar (o que o levara a iniciar um tratamento), a mãe do jogador o chamou várias vezes para almoçar. Ao abrir a porta do quarto, viu o filho enforcado com um lençol num aparelho de ginástica. O serviço de emergência médica chegou dez minutos depois, mas já não haveria como salvar a vida do jogador. O corpo do Mirko Saric foi velado em Boedo.
Sua irmã Mirna chegou até a declarar que o clube vetava alguns antidepressivos por receio do exame antidoping e que Ruggeri era o único que o acolhia com carinho. O irmão Martín declarou alguns anos depois que nunca mais teve controle emocional para jogar na Argentina, especialmente após ver um boneco enforcado na torcida do rival Huracán e saber de um declaração de Maradona (“não tenho nada contra Saric, mas quem se suicida é um cagão”). Fez sua carreira na Europa e América do Norte, foi campeão na Croácia e no Canadá até encerrar a carreira no Sportivo Luqueño em 2011.
Mirko Saric vestiu a camisa do San Lorenzo em 51 partidas oficiais, marcando nelas cinco gols (fez outros dois em amistosos). Em janeiro de 2002, por ocasião do título azulgrana na própria Mercosul, a primeira taça continental do clube, o Clarín imaginou como a final contra o Flamengo poderia estar sendo acompanhada em outros planos pelo ex-jogador Narciso Doval, morto havia cerca de dez anos e que jogou nos dois; pelo ex-treinador Juan Carlos Lorenzo, falecido dois meses antes; e por Saric, dentre outros. As palavras destinadas a ele foram essas:
“Mirko Saric assiste com melancolia. Lembra quando, há um semestre, a maioria desses jogadores lhe dedicava o Torneio Clausura na intimidade do vestiário. Seus olhos brilham. Mas Mirko não se quebra, e fala para si mesmo: ‘e pensar que eu poderia estar aí. No lugar de Walter (Erviti), ou de Pablo (Michelini). Mas bem, estou aqui. E quero que ganhem, velho. Vamos, pô, não falhem comigo. Quero que me dediquem outro título, o melhor de todos, o mais valioso, beleza?”.
Clique aqui para conhecer outros jogadores argentinos de origem croata, alguns com passagem pela seleção.
Caio Brandão
Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer
View Comments
Que historia triste, mas vemos como os jogadores não são super heróis.