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Conheça o “Clásico del Norte”, que faz cem anos hoje: Tigre x Platense

Um dos últimos clássicos, na temporada 2006-07. O Platense está sumido, mas leva vantagem: o dérbi registra 43 vitórias dele, 34 empates e 30 derrotas

“Fechei os olhos e chutei”, afirmou Raúl Cascini sobre seu gol no último minuto em 1992 sobre o Argentinos Jrs, ressaltando posteriormente que, por ter sido em um “clássico”, lhe foi mais emocionante do que o último pênalti, cobrado por ele, na decisão entre Boca e Milan pelo mundial de 2003. Assim está descrito neste blog do Platense, clube de Cascini em 1992. Vinte anos depois, em 2012, testemunhamos na final da Sul-Americana a confraternização entre torcedores de São Paulo e Chacarita, unidos na Bombonera contra “o rival” do Chaca, o Tigre: clique aqui. Mas não deveria ser assim.

Desde os anos 80 os torcedores do Platense canalizam seu ódio no Argentinos Jrs, enquanto os do Tigre direcionaram o foco das rixas no Chacarita. Mas, tradicionalmente, o clássico de Calamar e Matador é entre si: o Clásico de la Zona Norte, entre duas equipes mais ao norte da Grande Buenos Aires. Até porque a outra dupla tem, cada um, seu próprio dérbi: o do Argentinos, classicamente falando, seria contra o All Boys. Já o Chacarita realiza o Clásico de Villa Crespo com o Atlanta.

O que houve é que, de fato, Tigre e Platense, por se encontrarem em divisões inferiores, não se enfrentaram em jogos competitivos simplesmente de 1980 a 1999. Quase uma geração inteira, atualmente na faixa dos 40 anos, ficou desacostumada com o rival tradicional e centrou suas rixas nas equipes mais próximas frequentemente “disponíveis”, que por sua vez também “careciam de inimigos”: o All Boys não esteve na elite entre 1980 e 2010, e Atlanta e Chacarita não se encontraram entre 1999 e 2011. Os clássicos na região metropolitana de Buenos Aires nascem da proximidade geográfica e foi esse o combustível das rivalidades originais e de seus “cruzamentos”.

Dos clássicos mais frequentes da elite argentina, que viu cerca de dois terços dos 107 encontros entre Tigre x Platense, é o único dérbi que não tem nenhum campeão nela. O que não impediu que ambos se tornassem os clubes mais expressivos do extremo norte da Grande Buenos Aires. O primeiro encontro terminou em 3-1 para o Tense, naquele 19 de setembro de 1915. E uma primeira confusão já ocorria em 1916, mesmo quando o prestígio de ambas era ainda menor – e a concorrência no entorno, naturalmente maior. Foi no segundo encontro, quando simpatizantes do Platense (que novamente venceu, por 1-0, fora de casa) foram atacados pelos do Tigre ao tentar cruzar a ponte do rio Reconquista.

Encontros de Platense com Argentinos Jrs (mais à esquerda, Cascini no clássico descrito na introdução) e do Tigre com Chacarita, que ganharam aura de clássicos pelo longo desencontro dos rivais originais do norte

Já havia rivalidade mesmo quando o Tigre estava um pouco mais longe geograficamente, quando de fato estava na cidade homônima – em meados dos anos 30, embora o clube conservasse o nome, mudou-se para a cidade de Victoria (mais próxima da capital) e a cidade de Tigre acabou virando capital nacional dos esportes náuticos, algo perceptível a quem vai ao município realizar o passeio turístico pelo delta do rio Paraná. Também houve deslocamento na sede do Platense, e a mudança só os aproximou mais: saiu do bairro de Saavedra, no extremo norte de Buenos Aires, para a cidade limítrofe de Vicente López.

Nos anos 30, a rivalidade era tamanha que fez o Platense chegar ao cúmulo de contratar o obscuro Paulino Ferreyra apenas por este ser irmão de Bernabé Ferreyra. Bernabé foi um dos mais implacáveis homens-gol da Argentina. Foi contratado em 1932 pelo River em uma transação que foi recorde mundial por mais de vinte anos. Ajudou a popularizar os Millonarios, que tinham apenas um título até então na elite. Com os espetaculares 193 gols em 191 jogos de La Fiera, seu novo clube ganhou outras três taças. A genialidade não havia se transmitido ao irmão Paulino, que pouco produziu no Calamar. Já Bernabé, ainda nos tempos de Tigre, atuou na vitória por 7-1 em 1929, maior goleada do Clásico del Norte.

A contratação de Paulino Ferreyra foi uma furada, mas o Platense ainda assim se deu melhor no resto da década. Afinal, a saída de Bernabé deixou o Tigre muito fragilizado. Já em 1932, o Tense arrancou um 5-0. Ainda nos anos 30, chegou a impor um 4-1 fora de casa e um 6-3. E nos anos 40, os rubroazuis levaram de 6-0 e 5-0 e começaram a frequentar a segundona, iniciando a baixa frequência do clássico. Mas nos anos 50, algo curioso: com Norberto Méndez (o maior artilheiro das Copas América) e Héctor de Bourgoing (que jogaria a Copa de 1966 pela França), o Tigre fez em 1955 uma de suas melhores campanhas na elite profissional, terminando em sexto. Já o arquirrival, ao contrário, caiu.

O Matador, porém, também não duraria muito e o clássico se realizou pela primeira vez na segunda divisão ainda em 1959. Nela, em 1960, o Tigre ganhou fora de casa por 6-1. O Tense respondeu com um 5-1 em 1963 e um 6-2 em 1964, ainda pela segundona. Em 1967, ambos estavam de volta à elite. E viveu-se algo inverso de 1955: o Tigre caiu enquanto o Platense por muito pouco não foi finalista argentino. Treinado pelo mito Ángel Labruna, perdeu a vaga na final por uma espetacular virada de 4-3 do time que viraria campeão e sensação da Libertadores: o Estudiantes (veja aqui).

Os maiores artilheiros de cada um: Juan Marvezzi e Vicente Sayago. E as maiores revelações: Bernabé Ferreyra e David Trezeguet

O clássico só voltaria de 1972 a 1976, na segunda divisão, e em 1980, quando ambos estiveram juntos pela última vez na elite. Os alvimarrons fizeram grande campanha, um 4º lugar no embalo de duas vitórias por 1-0 sobre o rebaixado rival, similarmente a 1967. Mas o 4º lugar foi exceção: enquanto o Tigre seguia manso, o Platense se safava repetidas vezes. O Calamar conseguiu talvez um recorde de reiteradas escapatórias do rebaixamento: conviveu com a ameaça por 14 temporadas entre 1977 e 1994, sempre se safando. A mais espetacular, em 1987, com direito a virada em jogo que perdia por 2-0 para o River dentro do Monumental de Núñez na última rodada (clique aqui). Mas ainda há suspeitas.

Uma das razões das suspeitas é uma certa amizade entre Tense e River. Da mesma forma, há uma entre Tigre e Boca – eis talvez porque Juan Román Riquelme se declare torcedor dos dois (e, como já dito, ao decidir a Sul-Americana de 2012, o Matador usou La Bombonera). Com o rival ainda nas divisões inferiores nos anos 90, os alvimarrons retomaram bons momentos em 1994, ficando entre cinco primeiros com direito a um reserva de luxo chamado David Trezeguet, ainda adolescente: veja aqui. Não foi só o Tigre, com Héctor de Bourgoing, que revelou um argentino da seleção francesa…

Mas o Platense, cuja última revelação razoável foi Gonzalo Bergessio, enfim caiu em 1999, para não mais voltar à elite. De início, manteve a freguesia no clássico, incluindo um 4-0 em 2003, já pela terceira divisão (ambos caíram juntos em 2002). Mas o jogo virou em 2004: treinado pelo folclórico Ricardo Caruso Lombardi, o Tigre, por 2-0, voltou a vencer o rival após 29 anos – foi também apenas a terceira e última vitória do Matador na casa rival, e a primeira no campo de Vicente López. Essa partida, ainda por cima, decidiu o Apertura da terceirona de 2004; o Platense vinha um ponto atrás do rival.

Essa partida foi em um 27 de novembro, desde então “o dia internacional do torcedor tigrense”, prova de como a rivalidade ainda fervia. O retorno tigrense à segundona se concretizou quando os rubroazuis faturaram também o Clausura, ganhando em casa o clássico por 1-0. O rival não deixou por menos e ganhou a terceirona seguinte, com o clássico se repetindo em 2006 já pela segundona. E a temporada 2006-07 seria a última a permitir o encontro. Os torcedores do Tigre foram do inferno ao céu. Primeiro, perderam em casa por 3-0 no primeiro encontro. Mas ao fim da temporada, ambos se classificaram para um quadrangular mata-mata que definiria a última vaga na elite.

Torcida do Tigre promovendo “enterro” dos caixões de Platense e Chacarita após levar a melhor sobre os dois em 2007. E a rivalidade do norte revivida recentemente nas divisões de base

O detalhe é que essa fase também incluiria o Chacarita, o primeiro obstáculo do Tigre. Treinado por Diego Cagna, ex-volante do Boca de Carlos Bianchi, o Matador eliminou o “novo rival” no critério do gol fora de casa – perdera por 3-2 no campo tricolor e ganhou depois por 1-0 em Victoria. Depois, enfrentou o rival tradicional. A temporada 2006-07 já havia reservado aos tigrenses derrota por 3-0 e empate em 0-0. No mata-mata, veio novo empate em 0-0, na casa alvimarrom. No jogo de volta, o Tigre ganhou por 2-0. Assim, mesmo com “pior saldo” nos quatro Clásicos del Norte na temporada, o Tigre faturou o mais decisivo e subiu. A tensão foi tão alta naquele mata-mata que torcedores visitantes não foram permitidos tanto nas duas “semifinais” contra o Chaca como nas decisões contra o Tense.

A ascensão tigrense não pararia por aí: em 2008, enquanto o velho rival voltava à terceirona, os rubroazuis triscaram um inédito título na elite. O Apertura 2008 terminou com Boca, San Lorenzo e Tigre igualados na liderança, forçando um triangular final em turno único. A figura mais conhecida do Matador era o veterano lateral Rodolfo Arruabarrena, outro ídolo histórico do Boca, do qual é atual técnico. O Tigre começou perdendo de 2-1 do San Lorenzo – um dos autores dos gols sanlorencistas foi o velho rival calamar Gonzalo Bergessio. O Boca então ganhou do Sanloré por 3-1. Por fim, o Tigre derrotou os auriazuis por 1-0. Por um gol a mais no saldo, os experientes xeneizes acabaram campeões mesmo perdendo para os bravos de Victoria, quase campeões continentais em 2012.

De vira-casacas, a rivalidade teve vários recentes, em tempos de baixa no clássico: Patricio Abraham, Ernesto Albarracín, Osvaldo Alegre, Federico Barrionuevo, Javier Carrasco, Agustín Cattaneo, Rubén Checchia, Walter Gigena, Ariel Groothuis, Luciano Krikorian (do lado vitorioso naquele 27 de novembro de 2004), Oscar Monje, Pablo Nieva, Norberto Ortega Sánchez (grande ídolo do San Lorenzo), Severiano Pavón, Sebastián Pistelli, Gustavo Sever e Javier Yacuzzi. Nos anos mais tradicionais, o lateral-direito Gregorio Esperón, quem mais vezes defendeu a Argentina vindo do Platense, havia sido do Tigre.

O mais famoso doblecamiseta, por sua vez, talvez tenha sido Jorge Maldonado, defensor que foi justamente o último jogador a aparecer na capa da revista El Gráfico como atleta do Platense – foi em fevereiro de 1956, a despeito do inédito rebaixamento do Calamar no ano anterior. Profissionalizado no clube em 1948, Maldonado rumou ainda em 1956 ao Independiente, fazendo história como capitão do primeiro time argentino a vencer a Libertadores, em 1964, pouco antes de pendurar as chuteiras. O detalhe é que desde agosto de 1963 ele trabalhava também no Tigre, como treinador na segunda divisão, o que era possível pois as divisões de acesso eram rigorosamente disputadas somente aos sábados e os jogos da elite, aos domingos. Com dedicação exclusiva ao Tigre a partir de 1965, Maldonado inclusive reforçou-o em campo uma única vez, naquele ano. Seguia treinando o clube no acesso logrado em 1967 – o ano de 1968 foi justamente o único do Tigre na elite entre 1958 e 2007.

Considerando apenas jogadores, dos tempos clássicos vale citar primeiramente Antonio Báez, joia do poderoso River dos anos 40 que sofreu na dura concorrência interna e terminou constantemente emprestado. Nessa condição, estreou no futebol adulto repassado ao Tigre, em 1944, e depois juntou-se ao Platense entre 1948 e 1955, descontando o período em que acompanhou Di Stéfano no Ballet Azul do Millonarios do Eldorado Colombiano (entre 1951-53). Mas ainda antes de Báez houve Raimundo Sandoval, que jogou na virada dos anos 30 para os 40. Sandoval é o quarto maior artilheiro profissional do Matador, onde esteve inicialmente – o maior artilheiro foi seu colega: o centroavante Juan Marvezzi, que ainda detém o recorde de gols em um único jogo pela seleção argentina (fez cinco em um 6-1 no Equador pela vitoriosa Copa América de 1941 e ao todo somou nove gols em nove jogos pela Albiceleste). Sandoval também foi à seleção, jogando a Copa América de 1942. E passou ao rival depois, com a esposa de Marvezzi a tiracolo. O ex-companheiro se amargurou para sempre com este “antecessor” de Mauro Icardi…

Hoje, cem anos depois, os rivais tiveram vários encontros em jogos das categorias de base. E o melhor momento do Matador pesou, somando quinze pontos de dezoito possíveis: 2-0 entre os elencos da 4ª categoria, 5-2 entre os da 5ª, 1-0 entre os da 6ª, 5-1 entre da 7ª e  1-0 entre da 9ª (com gol do goleiro Ariel Sosa no finzinho), perdendo apenas no jogo da 8ª categoria (2-0). Já para saber mais do sumido Platense, confira nosso especial sobre os 110 anos que os “calamares” completaram neste 2015.

A Grande Buenos Aires não é só Boca x River, Racing x Independiente e Huracán x San Lorenzo. Confira abaixo outros especiais de clássicos nanicos:

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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