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Clássico de Quilmes, a rivalidade mais antiga da Argentina

“Mate” e “Cervecero” antes de dérbi nos anos 50, época dourada da rivalidade na era profissional

Encerramos há três semanas o especial sobre Dock Sud-San Telmo (clique aqui) com a promessa de abordar a rivalidade mais antiga do país, também marcada por longo hiato: Quilmes-Argentino de Quilmes. O primeiro Clásico Quilmeño ocorreu em 1906, um ano depois do primeiro Newells-Rosario Central. Mas Cerveceros e Mates já tinham rixas desde 1899, antes até do extinto Alumni-Belgrano Athletic (hoje travado no rúgbi). Os apelidos indicam a época em que a rivalidade surgiu.

Como já explicamos algumas vezes: o Quilmes é oriundo da comunidade britânica, embora tais laços não sejam mais visíveis atualmente a não ser no uniforme, não por acaso nas cores das seleções inglesa e escocesa; e na sigla QAC (outrora Quilmes Athletic Club, que passou a ser Quilmes Atlético Club em vez de empregar norma mais generalizada no país, que o faria ser Club Atlético Quilmes). Fundado em 1887, é o mais antigo clube de futebol ainda em atividade na Argentina (clique aqui).

A maioria dos clubes britânicos daqueles tempos que ainda subsistem no país, incluindo os primeiros campeões argentinos (como os mencionados Alumni e Belgrano Athletic), voltaram-se ao rúgbi. O Quilmes até teve um time para a bola oval, em 1909, mas remanesceu no futebol.

O título de 1912, o primeiro do Quilmes, foi precisamente o último da era britânica no campeonato argentino (clique aqui). Em 1913, veio a primeira taça de um clube criollo e adequadamente trajado nas cores da bandeira nacional, o Racing, que assegurou a nova era ao emendar outros seis títulos de forma seguida àquele.

A expressão criollo não deve ser confundida ao uso brasileiro de “crioulo”: na América Espanhola, refere-se aos descendentes dos colonizadores espanhóis e não exatamente a negros. Se o Racing foi o primeiro campeão criollo, o Club Atlético Argentino de Quilmes gaba-se de ser o primeiro clube criollo do país. Aliás, já usava as listras horizontais alvicelestes antes mesmo do Racing e da própria seleção argentina. Há inclusive quem afirme que estes se inspiraram no exemplo do Argentino.

Pôster antigo sobre o clássico e um dos dérbis de 1910: William Jones contra Manuel Castellanos

O Quilmes não era aberto aos “nativos”. Foi por conta disso que estes resolveram criar seu próprio clube, em 1899 – curiosamente, mesmo ano da fundação no Uruguai do Nacional, que teve origem parecida (como o nome indica). Na época, o football era um esporte essencialmente cavalheiro. Os teams confraternizavam após o match, para que a rivalidade se limitasse aos 90 minutos. Quem pratica rúgbi não estranha, pois este esporte ainda preza por essa prática, chamada nele de “terceiro tempo”.

Bom, o Quilmes, embora apelidado de Cervecero (alcunha que só ganhou depois dos anos 30) em razão da cervejaria homônima do qual é há tempos patrocinado, recebia seus pares com chá e bolachas ingleses. O Argentino, com seu orgulho criollo, confraternizava a seu modo: com os argentiníssimos chá-mate (daí seu apelido de Mate) e bizcochitos de grasa.

O goleiro Bottaso nos dois

O Argentino teve que começar nas divisões inferiores, criadas justamente em 1899. Apareceu na elite em 1906, ocasionando os primeiros clássicos. No campeonato argentino, deu Quilmes 3-1 com uma ficha técnica que evidenciava as diferenças: Carlos Torres; William Leslie e D. Campbell; Juan Rodman, Charles Parr e Tomás Lister; Juan Stanfield, A.E. Wells, Percy Hooton, Spencer Leonard e Juan Murray foram os vitoriosos sobre José López; Pablo Carrilero e José García; Alberto García, J. Garré e Isidoro Iriarte; Manuel Castellanos, Adolfo Cuarraccino, F. Aguirre, Mariano Castellanos e R. Otamendi.

Wells não marcou naquele dérbi, mas é o maior artilheiro dele, com 9 gols. No mesmo 1906, pela Copa Competencia (torneio que opunha times das associações argentina, rosarina e uruguaia), veio a maior goleada: 9-1 para os “britânicos”. O Argentino se desafogou dois anos depois. Sua primeira vitória foi também sua maior goleada contra o rival, um 5-1, exatamente na melhor campanha do clube na elite, um 3º lugar. Seu maior goleador no encontro, Joviano Escobar, com 6 gols, também é daqueles tempos.

A separação, contudo, não foi radical. O Argentino de Quilmes chegou a ceder à seleção argentina jogadores de nomes Juan Johnston e Guillermo “El Inglés” Dannaher, em 1912. O Quilmes também se abriria a nativos, a ponto de seu ídolo máximo ser Oscar “El Indio” Gómez, único campeão nacional três vezes pelos Cerveceros (da elite, em 1978, e depois da segunda e terceira divisão). Já nos anos 20 jogava no Quilmes o goleiro Juan Bottaso. É o vira-casaca mais famoso da rivalidade: jogaria a final da Copa do Mundo de 1930 como jogador do Argentino. Foi o último jogador do Mate na seleção. Após defender o Racing, voltaria ao Quilmes no fim da carreira.

Imagens de clássico de 1949 (esquerda) e do último oficial, em 1981, no lance do empate do Quilmes, após rebote do goleiro Moravec resvalar no adversário Batalla e fazer a bola entrar

Se Dock Sud-San Telmo ficaram 14 anos sem se enfrentar oficialmente, o Clásico Quilmeño já ultrapassou o dobro disso. Desde 1981, só se encontram em alguns amistosos. O último dérbi oficial foi pela segundona. O Quilmes tinha alguns remanescentes do seu segundo e último título na elite, em 1978 (clique aqui), como Hugo Tocalli, Horacio Milozzi, Alberto Fanesi, Horacio Salinas e Jorge Gáspari, autor do gol do título e último Cervecero na seleção, além do técnico José Yudica.

Já os ilustres do Argentino eram Ricardo Zielinski (técnico do Belgrano que rebaixou o River em 2011) e Juan Ramón Verón, estrela do Estudiantes tri seguido na Libertadores nos anos 60 e pai de Juan Sebastián Verón. O técnico Mate era Oscar Malbernat, ex-colega de Verón pai naquele Estudiantes.

Antes de 1981, o último encontro havia sido em 1965. Ou seja, os três principais jogadores já revelado pelo Quilmes, o goleiro Ubaldo Fillol, o armador Ricardo Villa e o ponta Daniel Bertoni (todos campeões mundiais em 1978), jamais jogaram o clássico. No primeiro turno da segundona de 1981, o Cervecero venceu em casa por 2-1. Argumentando que o campo rival não tinha condições de receber o dérbi, conseguiu que ele fosse jogado em outro estádio.

No campo do Independiente, empataram em 1-1. A última vitória oficial do Argentino está perto do meio século, pois foi em 1964. Em jogos oficiais, são 26 vitórias e 98 gols do Quilmes contra 18 triunfos e 72 gols do rival, a quem já teve o gosto de rebaixar duas vezes. A primeira, em 1910. O descenso não foi definido no clássico (o Argentino inclusive venceu por 3-2 um e empatou em 2-2 no outro), mas a luta contra a queda foi entre a dupla quilmenha. O QAC escapou por um único ponto.

A outra vez foi em 1947, na segunda divisão. Na última rodada, o Cervecero venceu por 2-1. Mas uma virada de mesa geral anulou a queda do Mate.

Torcida do Argentino. A rival finge minimizá-lo, mas a provocação de Sergio Martínez (campeão dos médios do Conselho Mundial de Boxe) em usar essa camisa no ginásio do Mate desmente…

Os anos 50 veriam a época de ouro do clássico na era profissional. Em seis temporadas seguidas, foi disputado na segundona e era o jogo mais lucrativo do ano para ambos. O profissionalismo, aliás, separou a dupla por um tempo: o Quilmes, como Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo (os “cinco grandes”), foi um dos fundadores da liga profissional, em 1931. Já o Argentino, embora tivesse algum prestígio, já estava decadente e a princípio ficou de fora, algo que lhe atrofiaria.

Com desvantagem no clássico, o Argentino também tinha a duvidosa honra de ser o único clube da 5ª divisão a já ter conhecido a elite. Só ele e o Arsenal (de forma inversa) já passaram por todas as divisões argentinas. O Mate pôde festejar neste 2013, ao vencer a 5ª e voltar depois de sete anos à 4ª divisão (a Primera C). Tanto tempo sem o Clásico Quilmeño fez com que outros encontros para ambos fossem por vezes tratados como “clássicos” pela mídia, contra outros clubes da região sul da Grande Buenos Aires, como Lanús, Arsenal, Defensa y Justicia, Deportivo Morón e Berazategui.

Por outro lado, o Mate pode orgulhar-se de ter levado a melhor nos dérbis mais importantes, pela segundona de 1938. Ambos lutaram acirradamente pelo título – só o campeão iria à elite. Estavam empatados na última rodada e jogariam justamente um contra o outro nela. No campo do Quilmes, o rival ia vencendo, mas sofreu o empate. A igualdade permaneceu e dois jogos-extras foram então realizados, nos campos neutros do Chacarita e do San Lorenzo. O Argentino de Quilmes venceu ambos, por 1-0. O segundo, há exatamente 75 anos, em 10 de dezembro.

A primeira divisão de 1939 foi a única que contou com o Argentino na era profissional; mas ele logo seria rebaixado, sem vencer um só jogo (um dos integrantes era Isaac Scliar, que curiosamente seria rebaixado também defendendo o Quilmes, em 1951). Abaixo, a ficha técnica da partida que completa agora três quartos de século (Baztarrica jogaria no Fluminense) e vídeo sobre dérbi amistoso recente.

Argentino de Quilmes: Rossi; Lucía, Piccone; Chapuis, Ongaro, Bruno; Agostini, Baztarrica, Iturría, Ajamil, Fuertes. Quilmes: Aranda; Vives, Robustelli; Androssi, Rosso, Forneri; Ballejos, Pérez, Cordero, Díaz, López. Árbitro: E. Forte. Gol: Fuertes (2/2º).

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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