Carma? Peru não ia à Copa desde gol que sofreu de Gareca, que terminou cortado. Juntos, vão à Rússia
Contamos essa história em 2015, já desejando sorte a Iggy Pop Ricardo Gareca e ao Peru por um lugar na Rússia em 2018, e vale mais do que nunca repeti-la. El Tigre superou de vez os questionamentos decorridos da passagem pelo Palmeiras em 2014. Mas, antes do sucesso atual, um gol de Gareca classificou no sufoco sua Argentina natal em detrimento da Blanquirroja, que ficou a dez minutos de se garantir no mundial de 1986 em plena Buenos Aires. Apesar do gol salvador, o então centroavante não foi convocado à Copa. Nem o Peru voltou ao torneio até assegurar nessa madrugada a última vaga na Rússia, conduzido justamente pelo ex-carrasco. Que enfim deve participar de um mundial, pondo fim a um carma mútuo!
Não é de hoje que Gareca conhece o futebol peruano. Sua carreira de técnico, após sucesso inicial no Talleres (venceu a última Copa Conmebol, sobre o CSA de Alagoas, em 1999: veja aqui), foi relançada após ser campeão em 2008 pelo Universitario de Lima. Supervencedor em seguida no Vélez, seu clube do coração, El Tigre curou outra decepção inca, de 2014 – apesar da 3ª colocação na Copa América de 2011, os peruanos não vieram ao Brasil. Mas a relação com o país teve um antecedente bem mais célebre, as eliminatórias para a Copa de 1986.
Na época, as dez seleções da Conmebol não se enfrentavam todas umas contra as outras. Foram divididas em três grupos, dois deles com três cada e o outro com quatro. Os líderes se garantiriam no México. Os vices travariam pela única outra vaga restante uma repescagem junto com o terceiro do grupo de quatro. Argentina e Peru eram desse grupo maior, com Colômbia e Venezuela, logo eliminada do páreo: somou só 1 ponto, que eliminou na penúltima rodada os colombianos da vaga direta.
A Albiceleste fazia uma campanha até tranquila. Iniciou a campanha fora de casa, ao norte, batendo Venezuela (3-2) e Colômbia (3-1), pela qual jogaria na repescagem o jovem Carlos Navarro Montoya – filho de argentinos nascido em Medellín mas crescido em Buenos Aires que posteriormente se arrependeria de aceitar a convocação da terra natal, pleiteando por anos autorização da FIFA para defender a Argentina. Os hermanos a seguir venceram-nos em casa respectivamente por 3-0 e 1-0.
Já o Peru fazia uma campanha errática. Surrou a Venezuela dentro e fora de casa mas perdeu pontos preciosos contra a Colômbia, perdendo dela fora e ficando só no 0-0 em Lima. Na época, porém, a vitória valia 2 pontos e não 3. Com isso, as quatro vitórias em quatro jogos da Argentina não bastaram para permiti-la disparar e se classificar antecipadamente. Faltavam os jogos contra os peruanos. E a vitória deles em Lima, por 1-0, os colocou um ponto atrás dos argentinos.
Bastava à Argentina empatar em casa que a classificação automática viria. Mas, se não fora indigesto na Copa de 1978, o Peru já havia traumatizado os rivais ao conseguir roubar-lhes a vaga para a Copa de 1970 em plena La Bombonera. Aquele jogo foi um 2-2 em que os argentinos empataram no fim, quase igual ao que ocorrera há cerca de 30 anos. Mas em 1969 o empate era favorável aos visitantes. Assim, a primeira Copa do México foi a última sem a presença da Argentina e a única em que isso se deu por eliminação nos gramados. Neste outro Especial, falamos desse trauma.
Já o passo final para a segunda Copa do México começou tranquilo aos mandantes, como na maior parte da campanha: Pedro Pasculli girou na grande área após receber de Maradona pela ponta-esquerda e pôs Argentina 1-0 logo aos dez minutos. Mas a Blanquirroja virou ainda no primeiro tempo. Primeiro, em bola lançada em cobrança de falta na cabeça de César Cueto, que ajeitou de cabeça para José Velásquez, na entrada da pequena área, fuzilar Fillol. No segundo, Cueto em lindo passe colocou Gerónimo Barbadillo na cara de Fillol após cochilo da zaga argentina. Barbadillo driblou o goleiro e chutou cruzado antes que Enzo Trossero pudesse interceptar a trajetória da bola.
Passarella, não à toa, é o segundo maior zagueiro-artilheiro do futebol, com 99 gols marcados (perde só para o holandês Ronald Koeman). Além de ótimo cabeceio e um petardo nas cobranças de falta, gostava de se aventurar pelo ataque também com bola rolando. Para a memória coletiva argentina, foram redondamente cem os gols que marcou: com a Albiceleste toda no ataque, ele recebeu lançamento do lateral Oscar Garré matando a bola no peito e concluiu aquela jogada desesperada aos 35 do segundo tempo. A bomba escapuliu das mãos do goleiro, rebateu na trave e Gareca empurrou.
O empate não eliminou os peruanos, mas lhes foi terrível. Na repescagem, fizeram uma semifinal com os rivais chilenos (os dois países travaram no século XIX a Guerra do Pacífico, vencida pelo Chile, que incorporou como resultado parte de território do Peru), que levaram a melhor ainda que adiante perdessem a vaga para o Paraguai. Desde então, o mais perto que a Blanquirroja chegou da Copa foi a de 1998, com a vaga perdida nos critérios de desempate. Justo para os rivais…
Contudo, Gareca também não sorriu por último após aquele 30 de junho de 1985, um ano turbulento: ele era ídolo do Boca, mas não aguentou o terrível ano anterior vivido pelos auriazuis (que estiveram perto de fechar: saiba mais aqui) e, sem receber salários, forçou uma greve e depois uma transferência justo ao River. Ganhou para sempre o ódio dos xeneizes, que lhe “dedicaram” cânticos como “Gareca tem que morrer, Gareca têm câncer”. El Tigre era figura carimbada da seleção desde 1983, quando o técnico Carlos Bilardo assumira o comando da Albiceleste.
Naquele ano, virou herói ao marcar o gol da vitória sobre o Brasil, encerrando o maior jejum argentino no clássico, treze anos. Curiosamente, como treinador já do Peru ele encerrou, na Copa América Centenário, o jejum peruano sem vitórias no confronto contra os brasileiros, gol de mão à parte. Já sobre a ausência no México, ele não escondeu a mágoa guardada, em entrevista em 2009 à revista El Gráfico, criticando também falta de oportunidades na maior parte das eliminatórias: “eu havia arrancado como titular no ciclo do Bilardo, havia dado a cara nos piores momentos, e acreditava que tinha direito a seguir jogando, mas fui banco em todas as eliminatórias. Joguei a primeira partida contra a Venezuela e uns minutos na última, com o Peru. No meio, nada. (…) Me dava bronca eu ter bancado a pior etapa (…), porque Bilardo era questionado por todos os cantos, e depois ficar de fora”.
Naquela entrevista, respondeu que o corte foi o momento mais triste da carreira. “Estava no Chile, concentrado com o América. Os meios colombianos já me davam dentro da lista, mas não me chamavam ninguém da Argentina. Em um momento entrei no refeitório, e todos os muchachos fizeram um silêncio… vieram e me contaram. Depois fui ao quarto e chorei como um condenado”. Após um semestre no River, Gareca acertou com o América de Cali, pelo qual foi trivice da Libertadores entre 1985 (chegou a tempo de jogar a final daquele ano) e 1987. Relembramos mês passado.
Na época, o futebol colombiano era rico via narcotráfico e o próprio Bilardo havia trabalhado em clubes e na seleção da Colômbia na virada dos anos 70 para os 80. Mas o ex-atacante admite que a saída da Argentina acabou lhe atrapalhando. Após aquela partida contra os peruanos, não voltou a ser chamado. De início, não havia como suspeitar: antes da convocação, a seleção jogou apenas mais duas vezes, em novembro de 1985. A ausência da Gareca não foi a única decisão polêmica de Bilardo: o goleiro Fillol e o zagueiro Trossero, presentes em todas as eliminatórias, também ficaram de fora, assim como o meias Miguel Ángel Russo (participante de cinco dos seis jogos) e Juan Barbas (em quatro), que fez declarações duríssimas contra o treinador.
Em contrapartida, foram convocados Bochini, Borghi, Almirón, Olarticoechea e Tapia, sem qualquer participação, e até Enrique e Zelada, que sequer haviam estreado pela seleção antes. E o outro herói, Passarella, iria à reserva. O zagueiro, segundo Gareca, falou-lhe após o título que a taça também era de El Tigre. “Me pus contente por todos os amigos, aquele foi um grupo que lutou muito, mas… mas eu teria gostado de estar aí dentro. Estive muito perto”.
Se aliás é Passarella a quem atribuem o gol, também é verdade que ele não ocorreria se Gareca não interviesse pontualmente: “a bola não entrava mais e se eu não a empurrava, a agarrava o goleiro, que estava aí atrás de mim. (…) Passarella jogou uma partida bárbara, foi buscar o empate e protagonizou a jogada, mas o gol é meu”, declarou Gareca sem falsa modéstia naquela mesma entrevista.
Com a classificação peruana, a Copa de 2018 deve contar com quatro técnicos argentinos: além de Gareca e Jorge Sampaoli, também Héctor Cúper (Egito) e novamente José Pekerman (Colômbia). Seriam cinco não fosse a demissão de Edgardo Bauza da Arábia Saudita.
Gareca, The Passenger. pic.twitter.com/rxBJFjY3Qt
— En Una Baldosa (@enunabaldosa) November 16, 2017