Não, não sofria com piadinhas. Nos anos 70 e 80 de machismo muito maior que o atual, usava-se palavras “nativas” para referir-se a homossexuais; isso e o desconhecimento generalizado da língua inglesa era tamanho que, além de não precisar adicionar letras ao nome (o químico Joseph-Louis Gay-Lussac e o corredor olímpico Tyson Gay também não fizeram isso, mas o músico Marvin Gaye fora batizado sem a letra E mesmo), o sobrenome do goleiro Carlos Alfredo Gay era pronunciado à espanhola: “Gái” mesmo, e não “Guêi” – e, pelo costume, continua a ser. O cordobês não se resumiu àquela final de 1974, com seu trânsito em rivalidades (dos cinco grandes, só não defendeu o Boca) atestando qualidade subestimada de quem fez renome no Independiente e na Colômbia. Faz hoje 70 anos. Relembremos Carlitos ou El Popeye, um dos dois goleiros mais campeões no Rey de Copas!
Um goleiro paciente no Independiente
Uma curiosidade inicial é que a pendência de só não ter defendido o Boca poderia ter sido sanada já no pontapé inicial da carreira dele, conforme ele relatou em 2019 ao Infobae, de onde tiraremos as aspas dessa nota. Natural do povoado de Etruria, no interior cordobês, cidadezinha onde as duas forças são o Talleres (não confundir com o da capital Córdoba) e o Sarmiento locais, Gay começou na base desse segundo time. Ainda com 17 anos incompletos, ele e outros conterrâneos foram então levados para testes nas forças da Grande Buenos Aires.
A primeira parada, na verdade, foi no River mesmo: “mas como choveu, se suspendeu o teste. Dois dias depois, nos levaram ao Independiente e aí fiquei em seguida. Porém, o senhor que nos havia acompanhando nos disse: ‘veja que quinta-feira se tem que ir no Boca, hein’. Eu não sabia o que fazer, porque me haviam aceitado no Independiente. Fomos de igual modo a La Candela [centro de treinamento do Boca] e me queriam inscrever aí também, onde estava vendo o treino nada menos que Alfredo Di Stéfano [então técnico auriazul]. Deixei que combinassem eles com o homem que me havia trazido, mas a ele havia deixado claro que queria jogar no Independiente”.
Quem o aprovara no Independiente, inicialmente para a equipe sub-16, foi o histórico Emilio Baldonedo, até hoje o homem que mais marcou gols na seleção brasileira. Era 1968 e foi preciso a Gay aguardar até 1971 para enfim estrear no time adulto. Contudo, havia no caminho o maior nome que o Rojo já teve na posição: Miguel Ángel Santoro, ele mesmo outrora terceiro goleiro alçado à titularidade justamente para a decisão da Libertadores de 1964 – a primeira do clube e do futebol argentino, dando tanta conta do recado que não deixou mais a titularidade.
Nada que despertasse algum rancor pessoal, ao contrário: Gay sempre declarou ter um ídolo em Santoro, que, por sua vez, fazia questão de acolher o reserva mais como um pupilo do que como um concorrente. Mas a diretoria roja, ciente de que a paciência da promessa poderia não ser eterna (quando esteve no sub-19, chegou mesmo a passar umas semanas no Banfield), tratou de segura-lo diante de nova sondagem do Boca, quando o histórico treinador juvenil boquense Bernardo Gandulla (sim, o ex-vascaíno) procurou convencê-lo pessoalmente a atravessar o Riachuelo.
Se não jogava, Carlitos ao menos era pé-quente. Naquele 1971, o título do Torneio Metropolitano parecia estar ganho pelo Vélez do superartilheiro Carlos Bianchi: líder, receberia em casa na rodada final um Huracán instável, bastando um empate. Mas o oponente arrancou uma virada em pleno bairro de Liniers, ao passo que Santoro e colegas prevaleceram em seu compromisso, contra o Gimnasia. Gay não chegou a pisar na grama, mas constou em treze súmulas daquela campanha vitoriosa, como o goleiro reserva relacionado pelo treinador Vladislao Cap; a primeira delas, curiosamente, fora contra o próprio Vélez (1-1), ainda pela 9ª rodada. Ainda era terceiro goleiro, com outro concorrente, Oscar Medina, aparecendo mais vezes nas súmulas como opção imediata a Santoro e até figurando em alguns jogos do título.
A conquista daquele Metro acabou especial por outro desdobramento: exatamente a partir daquela temporada o vencedor do Metropolitano teria a chance de se classificar à Libertadores (até então, as vagas eram dadas ao campeão e ao vice do Torneio Nacional). Gay, por sua vez, enfim estreou oficialmente já em 7 de novembro, pela 8ª rodada do Nacional 1971 – em meio a uma greve geral da categoria dos jogadores já profissionalizados.
Naquele contexto, nem Santoro e nem Medina foram tolerados pela diretoria. E os reservas dos reservas provaram seu valor, batendo por 3-0 o Huracán. Na 10ª, Gay e outros reservas usuais bateram por 4-2 o Ferro Carril Oeste. Ao fim da temporada, o campeão do Metro encarou o vice do Nacional, o San Lorenzo, em jogo único para definir o outro representante argentino na Libertadores 1972. Eliminado pelo próprio Sanloré uma semana antes nas semifinais daquele Nacional, o Rojo deu o troco e se garantiu em La Copa.
Começaria assim a maior dinastia que o continente já viu, com Gay conformando-se em ser testemunha de luxo: Santoro não lhe deu chances naquele tira-teima. Assim como não daria nas vitoriosas edições de 1972 da Libertadores e nem na de 1973, jogando todos os minutos. Também foi o veterano o arqueiro no Mundial Interclubes em ambos os anos; o de 1973, inclusive, foi o primeiro logrado pelo Independiente. Santoro também foi quem atuou na Copa Interamericana travada em 1973, embora ainda válida por 1972.
Gay, ao menos, já conseguia superar Medina na hierarquia dos reservas, entrando ocasionalmente em campo nos torneios domésticos: foram 12 jogos no Metropolitano 1972, embora nenhum no Nacional; e mais 5 no Metropolitano 1973 e unzinho no Nacional 1973. Normalmente, em escalações mistas, quando as datas conflitavam com jogos mais decisivos dos compromissos internacionais.
Tornando-se protagonista nas histórias do Rey de Copas e de La Copa
Parte do grosso da 97 partidas do cordobês pelo clube (com 111 gols sofridos) se deve ao ano de 1974. É que, no primeiro semestre, Santoro desfalcou muitas vezes o time para servir a seleção, sendo convocado à Copa do Mundo. No Metropolitano 1974, Gay atuou em seis jogos contra doze do titular. Numa dessas, esteve em um impiedoso 5-1 no clássico com o Racing em plena casa rival, em 19 de maio. Pepé, por sua vez, embora não entrasse em campo na Alemanha Ocidental, cavou uma transferência ao futebol espanhol. Mas houve tempo para um jogo oficial de despedida, que não poderia ser mais simbólico: outro Clásico de Avellaneda, já pela 3ª rodada do Torneio Nacional de 1974, em 4 de agosto de 1974.
O ídolo atuou no primeiro tempo para passar de vez o posto ao jovem de 23 anos, que assim se recordou: “substituir Santoro é algo que não vou me esquecer nunca. Eu já havia disputado algumas partidas na primeira divisão, alternando, porque o titular indiscutido era ele. No segundo tempo, se retirou e ingressei em seu lugar, dando-se uma curiosa situação, já que me carregou nas costas, como que deixando-me seu legado no arco do Independiente. Tive a sorte de cumprir com as expectativas e jogar muito bem no resto do ano. Para mim foi um orgulho duplo, já que Pepé era meu mestre, o que sempre me ajudou, nos treinos, com seus conselhos. Um fenômeno”.
O Rojo venceu aquela partida por 2-0 e, exatamente um mês depois, iniciou sua campanha na edição de 1974 na Libertadores, pelo benefício dado ao campeão de estrear já na fase do triangular-semifinal. Pela frente, o encantador campeão argentino de 1973, o Huracán do técnico César Menotti, além do tradicional Peñarol. O primeiro duelo caseiro foi na casa adversária, conseguindo-se em valoroso empate de 1-1 no bairro de Parque de los Patricios. Em 18 de setembro, uma primeira exibição de campeão, com o 3-2 em pleno Centenário sobre os uruguaios – para, apenas 48 horas depois, surrar-se por 3-0 aquele belo Huracán e praticamente encaminhar a vaga em nova final. Recebendo o Peñarol em Avellaneda em 2 de outubro, os argentinos ficaram no empate, que bastou, e só foi arrancado pela visita a 15 minutos do fim.
A decisão foi contra o São Paulo e nem a homenagem mútua ao ídolo em comum Antonio Sastre no Morumbi arrefeceu os ânimos, com os hermanos sofrendo até agressão policial. Até venciam por 1-0, mas uma virada-relâmpago dos tricolores nos primeiros 5 minutos do segundo tempo custou a vitória. A virada tricolor naquele 12 de outubro se deu com Mirandinha aproveitando rebote de Carlitos em chute de Nelson; o goleiro não escondeu que por dias se culpou pelo lance. Decididos a gastar tempo em Avellaneda, os brasileiros tiveram a cera do goleiro Valdir Peres em 16 de outubro punida com tiro livre indireto na grande área. Agustín Balbuena rolou para uma bomba de Daniel Bertoni não ser segurada por Valdir – à espreita, a lenda Ricardo Bochini aproveitou com oportunismo o rebote, aos 32 minutos.
Aos 2 do segundo tempo, Bertoni retribuiu e cruzou para Balbuena emendar de primeira para ampliar. Mas os 2-0, no regulamento que La Copa tinha na época, apenas forçavam uma terceira partida, na neutra Santiago; por outro lado, assim foi melhor à nossa história.
Os 20 minutos iniciais em 19 de outubro foram de pressão brasileira bem segurada. Gay deu detalhes naquela nota de 2020 ao Infobae: “éramos quatro ou cinco garotos que havíamos surgido das inferiores e que sentíamos a responsabilidade de estar ali, compartilhando o plantel com os maiores, que vinham de ganhar as duas edições anteriores. Tinha que manter no alto a fama do clube de ser El Rey de Copas. Chegou a hora da partida e fazia um frio de loucos. Ademais, chovia sem parar, feito que fazia o estado do campo de jogo muito difícil para os goleiros”.
“As luvas que tínhamos eram completamente distintas das de agora, com menos aderência, a ponto que alguns preferiam agarrar diretamente com suas mãos livres. Também se complicava pela bola, a velha pintier de couro, que, em dias assim, com o barro e a chuva, pesava com 90 quilos. Ficava ensaboada. Então decidi pedir ao roupeiro uma toalha, para poder secar as luvas e ter maior segurança. Isso é algo comum agora nos goleiros, mas não há 45 anos”. Bem, o controle da partida logo mudou de mãos e logo aos 27 uma mão de Pablo Forlán na área paulista resultou em pênalti convertido no meio do gol pelo míssil do xerife Ricardo Pavoni.
Os tricolores passaram a apostar em chuveirinhos bem afastados pela zaga do Rey de Copas ou pelo próprio Gay, mas aos 27 minutos o defensor Alejandro Semenewicz cometeu mesmo pênalti em Zé Carlos. Ele próprio tratou de cobrar. O goleiro jamais esqueceu: “a primeira coisa que fiz foi secar bem as luvas e esperar algum dos uruguaios que eram os habituais encarregados. Efetivamente, Pedro Rocha agarrou a bola e foi direto à marca do pênalti, mas em um momento, Zé Carlos a tirou e colocou ele, que era o que ia chutar. Nunca levantou a cabeça, jamais me olhou e isso me deu mais confinaça ainda. Tinha toda a fé do mundo e pensava nos meus pais e no povo do Independiente”.
O lance foi assim descrito em poética prosa pela revista El Gráfico: “esse rumor movimentado das tribunas chilenas festejando já o preâmbulo do empate. E alguém se pergunta desconcertado por que os chilenos se manifestam tão calorosamente partidários dos brasileiros… ao cabo, o silêncio. Zé Carlos defronte a bola. Zé Carlos que atira à direita do garoto Gay. E o garoto Gay revolcando-se com a bola. A bola que se vai das mãos. Que ameaça transpor a linha. Que não a transpõe. Que volta às mãos do garoto Gay. Que arranca explosão do grupo argentino. Que não é empate”.
Objetivamente falando, Carlitos saltou para a direita, e espalmou à meia-altura, mas sem segurar a bola. Foi preciso se recuperar rápido para que ela não cruzasse a linha. Aos risos, Gay lembrou-se disso também: “tapei o arremate, caí e a bola me escapou por um lado e ficou dando voltas atrás de mim. Me atirei com tudo, o mais rápido que pude a agarrei com força. Um momento incrível, sonhado. Me levantei com a bola entre as mãos como um troféu e veio [Eduardo] Commisso, o lateral-direito, e começou a pegar-lhe com suas mãos enquanto me gritava: ‘és um fenômeno!’. O corri daí lhe dizendo: ‘mas és louco, nos vão apitar pênalti de novo'”.
Não houve outras maiores chances de empate depois daquilo: o Independiente era tricampeão seguido da Libertadores, e penta no geral – enquanto a El Gráfico louvava que “o garoto Gay já parece um adulto. Já se contagiou da dignidade do grupo”. O toque de recolher imposto pela ditadura de Pinochet retardou a grande festa do elenco para o regresso a Avellaneda, mas a glória seria eterna para Gay: “essa final foi a glória. Me deu tudo. Tapei o penal, fui o artífice da vitória sendo o mais jovem do plantel”, gabou-se, em declaração presente em outra El Gráfico: na edição especial que em 2011 elegeu os cem maiores ídolos do Independiente.
A imagem que abre a matéria, aliás, foi a utilizada para ilustrar o perfil dedicado a ele naquela edição dos cem ídolos; apenas ele e Hugo Saggioratto, colega naquele ciclo, foram admitidos nela dentre os habituais reservas úteis que o time já teve. E houve tempo para uma emoção a mais já naquela ocasião: “o vestiário era de uma grande alegria e ao chegar, me encontrei com [o locutor] José María Muñoz, que me estava esperando para conectar-me via Rádio Rivadavia com Pepé Santoro, que estava na Espanha. Foi uma emoção enorme escutar as palavras do meu mestre dizendo-me que eu merecia e que era um mérito meu esse pênalti. Logo depois disso, me dei o grande gosto de levantar a Copa Libertadores rodeado por todos os rapazes”.
Muito por conta daquele desempenho, também em 2020 a página de fãs Infierno Rojo colocou Gay entre os cinco maiores goleiros do Rey de Copas. Não só pôde ser titular na edição 1974, como foi absoluto, sem dar minuto algum ao suplente imediato, Esteban Pogany – curiosamente, outro goleiro também marcado por longos períodos de reserva e por ter igualmente defendido quatro dos cinco grandes mais o Huracán.
E ainda haveria mais. Na época, a Conmebol e a Concacaf agendavam o esquecido tira-teima de seus campeões, a Copa Interamericana. Após um 7-0 sobre o San Lorenzo de Mar del Plata no Torneio Nacional, o time jantou no restaurante do clube e embarcou para a Guatemala para 48 horas depois encarar o Deportivo Municipal. Os argentinos ganharam de 1-0 em 24 de novembro, mas em outras 48 horas jogariam a revanche ali mesmo. Os locais devolveram o 1-0, mantido ao fim da prorrogação. Pavoni, dessa vez, errou um pênalti no tempo normal.
Melhor para Gay, de novo: enquanto os colegas convertiam todas as cobranças na decisão por pênaltis, Carlitos viu Julio César Anderson acertar o travessão no segundo chute da casa e pegou o terceiro, de Carlos Monterroso. Aproveitando a viagem, o Rey de Copas ainda disputou um amistoso em 28 de novembro na Costa Rica, contra o Herediano, antes de concluir uma maratona de sete jogos em 17 dias com a fase final do Torneio Nacional. Sem gás, viu o San Lorenzo levantar essa taça.
Reserva, mas o goleiro mais campeão do Independiente
A Interamericana foi comemorada enquanto o Mundial Interclubes com o Bayern Munique se enrolava indefinidamente a ponto de começar o ano de 1975 sem que os jogos estivessem agendados. Os alemães desistiram e o vice Atlético de Madrid aceitou substitui-los. Mas, àquela altura, a melhor fase de Gay já havia passado para o treinador Roberto Ferreiro.
A diretoria cedeu ao River o volante Miguel Ángel Raimondo em troca do experiente goleiro José Alberto Pérez, que seria o titular não só no amargo Mundial contra o Atleti (já em 10 de abril de 1975) como também em toda a vitoriosa Libertadores de 1975 – a última do recordista tetracampeonato seguido. Em 1976, Perico Pérez rumou ao Unión, grande surpresa do ano de 1975 com três futuros campeões de Libertadores pelo Boca: o técnico Juan Carlos Lorenzo, o ponta Heber Mastrángelo e o goleiro Hugo Gatti, adquiridos imediatamente pelos auriazuis. Pérez foi a Santa Fe repor Gatti, mas não que Gay pudesse recuperar o posto: o Independiente contratou Ramón Quiroga (ainda não naturalizado peruano), utilizado em toda a campanha de 1976 na Libertadores.
Ao fim do triangular-semifinal, Rojo e River travaram um jogo-extra. E deu River, em 16 de julho. Além de encerrar um ciclo, a desclassificação também fez o técnico Miguel Ignomoriello cair. O novo treinador foi um iniciante feito José Omar Pastoriza, ex-colega de Gay até rumar ao Monaco em 1972 – e futuro maior técnico do Rey de Copas. El Pato confiou em Carlitos para o epílogo daqueles anos dourados de copas internacionais: em 26 e em 29 de agosto seria travada a Copa Interamericana ainda válida por 1975.
A neutra Venezuela receberia os dois jogos com o Atlético Español, nome na época do atual Necaxa. E que fez um primeiro jogo duro: não só esteve duas vezes à frente do placar (com destaque para o empate argentino em 1-1 no minuto seguinte ao primeiro gol rival, mesmo que aos 45 do primeiro tempo) como lesionaram Daniel Astegiano e Eleazar Soria. Mas só o ponta rojo Percy Rojas foi expulso, aos 21 da segunda etapa.
O 2-2, com o jogo ainda em 1-1, ofuscou jogadaça de Bochini onde o maestro passou por seis adversários antes de acertar o travessão. Lance que renderia uma caça a El Bocha, outro desfalque para a revanche dali a três dias. Substituído na ida por José Lencina, Soria pôde recomeçar entre os titulares na volta. Astegiano, não. Bertoni foi improvisado como centroavante junto a Víctor Arroyo e César Brítez, enquanto o zagueiro Osvaldo Carrica foi remendado na vaga de Bochini na armação (!). Os argentinos se conformaram em empatar, forçando os pênaltis. Conseguiram fazer o 0-0 prevalecer. Outra vez, melhor a Gay: pegou a segunda (de Juan Rodríguez Vega) e a quarta (de Juan Manuel Borbolla) cobranças enquanto os colegas faziam seus serviços sem erros.
Gay ainda adicionou mais um título no Independiente, o do épico Torneio Nacional de 1977, mas outra vez no banco – agora, para Héctor Rigante, presente em todos os minutos, restando a Carlitos ser relacionado a nove das partidas. Ainda assim, o troféu válido por 1977 serviu para fazer dele o goleiro mais vezes campeão no clube, igualado ao ídolo Santoro: somando aquele Nacional às quatro Libertadores, às três Interamericanas, ao Mundial 1973 e ao Metropolitano 1971, Gay acumulou dez troféus como membro do time principal do Independiente, exatamente o mesmo número de Pepé (no caso dele, o Argentino 1963, as Libertadores 1964 e 1965, o Nacional 1967, os Metropolitanos 1970 e 1971, as Libertadores 1972 e 1973, a Interamericana e o Mundial em 1973).
Rodando os outros grandes e a Colômbia
O Nacional 1977 foi levantado já no fim de janeiro de 1978, mês em que a seleção argentina iniciou uma longa concentração entre os pré-convocados à Copa do Mundo. O San Lorenzo passaria o semestre então desfalcado de Ricardo La Volpe e tentou inicialmente confiar no seu reserva, o paraguaio César Mendoza. Insatisfeito, o Ciclón então requisitou o empréstimo de Gay. Se Carlitos nunca pôde ter chances na seleção, sua qualidade seria referendada pela alta rodagem entre os outros grandes. Ainda que nunca se firmasse.
No bairro de Boedo, ele foi relacionado pela primeira vez na 5ª rodada do Metropolitano, embora tardasse até a 12ª para estrear, já em 30 de abril. Permaneceu no posto até a pausa pré-Copa, ao fim da 15ª. Foram mesmo apenas quatro jogos como azulgrana: 3-3 com o Boca, 1-0 no Atlanta e no Estudiantes de Buenos Aires e… uma goleada de 4-0 para o Newell’s, em 21 de maio. Após a Copa do Mundo, La Volpe rapidamente foi recolocado a partir de 16ª rodada (em 2 de julho) e, a despeito da derrota em casa pra o Vélez por 1-0, El Bigotón retomou a vaga; Gay ainda atuou na 22ª rodada após uma expulsão do titular no fim do primeiro tempo da vitória de 1-0 sobre o Quilmes.
Para o Torneio Nacional, o Rojo reforçou-se no gol com outro vencedor de Copa do Mundo, Héctor Baley. Gay teve o empréstimo direcionado ao Deportivo Roca – inclusive enfrentou o Independiente pelas primeiras vezes, em derrotas por 2-0 em casa e 4-1 em Avellaneda. A fraca equipe da Patagônia não pôde ir além de um 5º lugar no seu grupo de oito times, mas gabou-se de bater o Argentinos Jrs de Maradona e o Rosario Central. Em 1979, então Gay iniciou seu renome no futebol colombiano. A grande fase do América de Cali ao longo dos anos 80 oculta que o time jamais havia sido campeão nacional… até aquele 1979. Pois o argentino seria eleito a melhor peça daquele elenco histórico, inclusive por ser o único a disputar as 61 partidas intermináveis da campanha.
No twitter é fácil verificar o quão querido ele se tornou em Cali e que não são poucos os que pensam nele como superior na história do clube até aos goleirões que decidiram Libertadores pelo América – o também argentino Julio César Falcioni (no trivice de 1985-87) e Óscar Córdoba (1996, antes de virar ídolo no Boca). Em 1980, porém, Gay entrou em rota de colisão com o técnico Gabriel Ochoa Uribe. E voltaria a viver a sina de ser sucessivamente emprestado. Inicialmente, reencontrou Pastoriza em 1981, agora em um Racing repleto de outros vira-casacas – a exemplo de Miguel Ángel Giachello e Osvaldo Pérez, outros ex-colegas do goleiro. “[Pastoriza] me convenceu para que fosse com ele ao Racing, uma instituição grandíssima, mas que não atravessava um bom momento”, contou Gay naquela nota ao Infobae.
Mas, no fim das contas, o titular foi, mais uma vez, um concorrente: o galã Alberto Vivalda. Foram duas míseras partidas do veterano; a primeira delas, no 2-0 sobre o Talleres pela 33ª rodada de um bom Metropolitano. Aquela boa campanha a um ponto do pódio desmanchou o elenco, com a diretoria endividada se vendo na necessidade até de passar o ponta Gabriel Calderón ao arquirrival para o Torneio Nacional (além do volante Julio Olarticoechea ao River), onde La Acadé foi lanterna enquanto esses três jogadores cavavam vaga na seleção de 1982. A segunda e última partida de Carlitos pelo Racing veio na 14ª rodada daquele cenário. Levou de 4-1 do Huracán… onde o goleiro, veja-se só, era Pogany.
Gay voltou ao América, mas o rompimento com Ochoa Uribe (depois cicatrizado: o falecimento do comandante em 2020 foi bastante lamentado pelo goleiro) rendeu novos empréstimos: o argentino reforçou em 1982 o Unión Magdalena do jovem Carlos Valderrama e em 1983 foi a vez de defender o Independiente… de Medellín mesmo. Foi justamente a falta de espaço em Cali, por outro lado, que propiciou o quarto grande argentino na carreira de Carlitos. O River vivia um caos institucional: para rebater a ida de Maradona ao Boca em 1981, se reforçara com o empréstimo de Kempes em meio a uma valorização de 240% do dólar nos desmandos da ditadura. Crise majorada pela derrota nas Malvinas: após a Copa de 1982, o Millo se desfez do próprio Kempes e também de Daniel Passarella e Ramón Díaz, todos exportados à Europa.
Foi possível se reforçar com Francescoli em 1983, mas atrasos salariais levaram a uma greve liderada pelo goleiro Fillol, que preferiu ir reforçar o Argentinos Jrs ainda antes de uma sequência terrível de mortes – do ídolo Ángel Labruna em agosto e do atacante Víctor Trossero (em pleno vestiário) em outubro – também contribuir para uma campanha que só não deu em rebaixamento pela implantação do sistema de promedios. À El Gráfico, o presidente Hugo Santilli relembrou aquele caos: “estava quebrado e em conflito com os jogadores. Não havia equipe. Nesse contexto, assumi a presidência. Não tínhamos dinheiro, nem crédito, o que nos dava a AFA era uma miséria. Aí conseguia a ajuda do América de Cali”.
Santilli foi bem detalhista: “graças a Miguel Rodríguez Orejuela, seu presidente, que hoje está preso no Estados Unidos por narcotráfico. Miguel tinha um representante aqui chamado Carlos Quieto. Em janeiro de 1984, veio à Argentina passar com sua mulher, Miss Colômbia. Pedi a Quieto uma reunião e me disse que fosse ao Sheraton, onde Miguel ocupava todo o piso 21, mas decidi jogar em casa e armei um almoço do caralho no clube, na presidência, ao lado do campo de jogo: ‘olhe o que é este clube, Miguel! Mas hoje o River está liquidado e tenho que leva-lo adiante. O senhor me dê uma mão e eu fico grato por toda a vida. O senhor é um homem de códigos, eu também sou, e os favores devolverei’, lhe disse. Lhe pedi que me emprestasse os jogadores que não usava. Vieram Gay, Teglia, Villalba, Alfaro”.
Curiosamente, Gay não achava que estava acertando com o River: “Luis Cubilla era o treinador do Atlético Nacional e a começos de 1984 veio me ver. ‘Quero leva-lo à minha equipe’, me disse. Pensei com lógica que era o Nacional, mas na realidade acabava de assinar com o River e então voltei ao país. Não sei se fiz bem, mas insistiu e voltei com a família”. Carlitos chegou a tempo de fazer a pré-temporada em 1984 e começar como titular, inclusive recebendo a nota mais alta da El Gráfico (um 8) de seu primeiro jogo oficial como millonario, um 2-0 contra o Huracán. O segundo compromisso da temporada foi um sonoro 5-0 no Atlético de Concepción del Uruguay.
Contudo, não bastou: Cubilla passou a utilizar quem era goleiro de seleção argentina, um reforço de nome Nery Pumpido. Ao Infobae, Gay, que terminou por registrar assim apenas onze partidas oficiais somadas pelos outros três grandes que defendeu, não guardou rancores; preferiu destacar que em Núñez a concorrência envolvia ainda um jovem Sergio Goycochea. Ele registraria apenas quatro jogos oficiais: aquelas duas do Torneio Nacional e mais duas do Metropolitano (1-1 com o Argentinos Jrs e 2-1 no Temperley, ambos em setembro), quando recuperou brevemente a titularidade na esteira de uma boa excursão à Europa – que incluíram o amistoso que marcou a estreia de Maradona pelo Napoli, onde o veterano fechou o gol a Dieguito em um 0-0 em 19 de agosto.
Em 1985, após virar a casaca em Avellaneda, ele virou em Buenos Aires, reforçando justamente o então “sexto grande” – o Huracán, clássico rival do San Lorenzo. O Globo seria o clube argentino onde Carlitos enfim teria continuidade. Foi agridoce e ele resumiu ao Infobae: “é um clube muito lindo de jogar. A equipe começou comprometida com o rebaixamento naquele torneio de 1985-86 e ao princípio as coisas não saíam bem, mas no segundo turno tivemos uma etapa muito boa. No pessoal, me ficou um balanço positivo, porque inclusive peguei quatro pênaltis no campeonato. Pese a remontada, não nos bastou para nos salvarmos de forma direta”.
Até então jamais rebaixado enquanto o próprio Sanloré caíra em 1981, a dor à torcida huracanense realmente foi maior justamente pela salvação ter parecido possível pelo bom segundo turno. A salvação teria vindo se o clássico fosse vencido na rodada final, mas o empate colocou o bairro de Parque de los Patricios em um mata-mata com os sete melhores times da segunda divisão abaixo do campeão dela. E mesmo assim, os quemeros foram batendo um a um até a decisão, contra o Sportivo Italiano: “tivemos uma arbitragem que nos complicou e terminamos perdendo nos pênaltis. Segui no clube no Nacional B e logo me retirei. Essa foi minha última equipe”.
Na prática, a última temporada de Gay foi mesmo a segunda divisão de 1986-87; o Globito teve a mesma pontuação do vice Banfield, mas o acesso direto só era dado ao campeão, o Deportivo Armenio. Entre o 2º e o 9º lugar haveria um mata-mata pela segunda vaga e o Huracán caiu na semifinal, em 2-1 agregado para o Belgrano. Gay acabou não virando exatamente um ídolo eterno no seu último time (no centenário huracanense, o Clarín não o colocou entre os cem maiores do clube), mas seu perfil na Globopedia reconhece que era a “segurança do Huracán em anos complicados”. Ele, na realidade, ainda reforçou o Talleres para a temporada 1987-88 da primeira divisão, mas não entrou em campo e foi relacionado para apenas três partidas pelo treinador José Reinaldi, sem deixar o banco para Juan Bogado – a última delas, ainda em outubro de 1987.
Gay seguiu ativo, mas não mais profissionalmente: ainda bateu bola pela equipe de showbol do Independiente com outros veteranos e também integrou a seleção argentina sênior – tempos em que o futebol dos chamados masters estava bastante valorizado, inclusive com edições diversas de Mundiais (notadamente, a Copa Pelé). A falta de espaços como jogador do River, de outro lado, não impediu que o Millo o reempregasse como treinador de goleiros nas categorias de base. Gay permaneceu até o fim do ciclo do técnico Matías Almeyda e depois teve portas abertas no próprio Huracán. Atualmente, ele é representante de uma fabricante de luvas de goleiro, a Prostar.
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