Vencer uma Copa do Mundo sem jogar um só minuto não chega a ser uma raridade. Se até um adolescente Ronaldo viveu isso, em 1994, e a própria Argentina de 1986 se desse ao luxo de não contar com o veterano Daniel Passarella em campo, para goleiros essa vivência agridoce chega a ser mais natural. O diferencial de outro componente da campeã de 1986, Héctor Miguel Zelada Bercoqui, é que ele jamais entrou em campo pela Albiceleste não apenas durante o Mundial, como também nem antes e nem depois. Outros goleiros argentinos calharam de jamais atuarem pelo país apesar de convocados a uma Copa, mas somente Héctor Zelada (a pronúncia é “Êctor Selada”) é autorizado a manusear a Taça FIFA. Vale relembra-lo pelos seus 65 anos.
Zelada nasceu em Maciel, interior da província de Santa Fe. Profissionalizou-se na principal cidade da província: Rosario. Subiu ao time adulto do Rosario Central ainda antes dos 18 anos; o lendário treinador Carlos Griguol o relacionou pela primeira vez em 11 de março de 1975, ainda que sem tira-lo do banco no 1-1 com o Chacarita pela 3ª rodada do Metropolitano – o goleiro utilizado era o reserva imediato, Ricardo Ferrero, com o titular Carlos Biasutto poupado em meio aos compromissos paralelos que os canallas tinham na Libertadores; em trajetória marcante, o time teve o gostinho de eliminar o arquirrival Newell’s (na única edição da Libertadores a ver o Clásico Rosarino) para avançar às semifinais, ainda que não fosse páreo para um Independiente no auge do copeirismo.
Como terceiro goleiro, Zelada não sairia mesmo do banco naquele Metropolitano, embora ainda fosse relacionado de modo intermitente para a suplência de Biasutto ou de Ferrero, na 7ª, 10ª, 12ª, 20ª, 21ª, 22ª, 23ª, 25ª, 28ª e 29ª rodadas – ele pôde manter-se em atividade a serviço da seleção juvenil, atuando no Sul-Americano da categoria. Após o Metro, Biasutto galgou ao Boca e Zelada pôde subir um degrau na hierarquia, sendo relacionado seguidamente nas 14 primeiras rodadas do Torneio Nacional de 1975, sempre sem sair do banco de Ferrero. Ele calhou de conviver em Arroyito precisamente com o goleiro campeão de 1973 e com o titular da conquista de 1980, jogando em tempos de entressafra entre aqueles dois elencos vencedores.
Conseguiu enfim estrear na 15ª rodada do Nacional de 1975, em 23 de novembro. Mesmo sem Mario Kempes, o Central, já treinado por José de León, venceu fora de casa o Unión por 1-0, com a escalação Zelada, José van Tuyne, Oscar Craiyacich, Juan Romero e Juan Burgos, Carlos Aimar, Víctor Mancinelli e Hugo Zavagno, Oscar Lamberti, Otmar Pellegrini e Julio Cáceres (Jorge García). Zelada também foi usado na rodada seguinte, um 1-1 com o Banfield, e foi isso: Ferrero logo voltou à titularidade na campanha que até acumulou a maior pontuação da fase de grupos, mas que murchou no octogonal final, em que os rosarinos terminaram no quinto lugar.
Ainda se intercalando com Ferrero, o novato pôde para 1976 atuar em 24 das 33 partidas do Metropolitano (o Central foi 6º na primeira fase e 8º no dodecagonal final) e em sete dois dezoito jogos no Nacional – onde o elenco centralista, agora treinado por José María Silvero, ficou a três pontos da classificação aos mata-matas. No Metro, Zelada assumiu a posição a partir da 10ª rodada e praticamente não mais a largou; teve um primeiro grande momento na 15ª, pegando até pênalti quando o time goleou o futuro campeão Boca por 5-1; também defenderia uma penalidade máxima nos 3-0 (com o jogo ainda em 2-0) sobre o Colón na rodada inaugural do dodecagonal.
Ironicamente, o outrora goleado Boca acordou naquela fase, e virou para 2-1 em pleno Arroyito sem que o goleiro pudesse fazer nada – foram dois gols de pênalti, justamente. A derrocada rosarina, em contraste, fez o técnico Silvero dar lugar a Francisco Erausquín a partir da nona rodada da segunda fase e ao novato Alfio Basile para o Nacional. Basile inicialmente confiou em Ferrero, com Zelada assumindo apenas a partir da 12ª rodada.
A titularidade absoluta de Zelada em Arroyito ficou para o ano de 1977, onde chegou a ser até capitão, com a saída de Kempes para o futebol espanhol. Griguol voltara a Rosario e confiou nele desde a primeira rodada do Metropolitano, onde o jovem de 20 anos foi usado em 31 das 40 rodadas. Pegou, especialmente, um pênalti no 0-0 em Avellaneda com o Racing, na 14ª rodada. Um 1-1 no Clásico Rosarino em casa, no jogo seguinte, pareceu tira-lo por um tempo, com Ferrero, reassumindo o posto a partir da rodada subsequente – mas brevemente, pois Zelada voltou a partir da 29ª, e ainda pegou um pênalti do artilheiro daquele campeonato (Carlos Álvarez) no triunfo de 1-0 sobre o Argentinos Jrs maradoniano, na 39ª. Ao fim, o Central foi 6º, mas a quatro pontos do pódio.
Já o Torneio Nacional de 1977 teve um regulamento duríssimo; por questão de calendário, o certame, iniciado já em novembro, previu que apenas o líder avançava na fase de grupos e foi o Estudiantes. Griguol seguiu confiando em Zelada, ausente de uma única partida, em campanha de terceira colocação na chave liderada pelos platenses. Mas, para 1978, o mesmo Griguol voltou a dar chances a Ferrero; Zelada só atuaria em uma dúzia de partidas na trajetória do 10º lugar no Metropolitano (na 6ª, 7ª, 8ª, 9ª, 15ª, 16ª, 17ª, 18ª, 33ª, 34ª, 35ª e 41ª rodadas) e em três jogos no Nacional – nas três rodadas finais, precisamente, com o time já sem poder classificar-se, terminando em sexto lugar em um grupo de oito equipes.
E foi “só”. Sem nunca protagonizar um campeonato verdadeiramente marcante para a história centralista e nem se firmar por anos a fio, ele pôde ainda assim se transferir ao futebol mexicano em 1979, mas caiu rapidamente no esquecimento entre os argentinos e mesmo entre os torcedores do Central. Em 2021, na data em que a Argentina comemora o dia do goleiro, em 14 de abril, nove arqueiros canallas (incluindo Biasutto e Ferrero) chegaram a ter suas fotos incluídas em uma montagem, mas não Zelada. Até que, em novembro de 1985, o excêntrico treinador Carlos Bilardo chamou dois jogadores do próprio futebol mexicano para dois amistosos com o México. Um, do Toluca, era o zagueirão Enzo Trossero, compreendido: recém-saído do Independiente, havia disputado as eliminatórias. O outro foi o goleiro do América.
Bilardo tinha a ideia de usar Zelada no duelo em Los Angeles e outro goleiro pensado para a reserva, Luis Islas, para o encontro em Puebla. No fim, o América precisou de Zelada e Islas jogaria as duas partidas. Mesmo com aquela convocação, a confirmação de Zelada para a Copa do Mundo de 1986 foi uma das maiores surpresas de sempre no folclore que permeia essas ocasiões. A revista El Gráfico sempre trata de relembrar aquela situação a cada Copa, como nessa matéria de 2010, nessa matéria de 2014 e mesmo nessa de 2021, a destacar uma das vantagens do goleiro do América que, para Bilardo, justificavam sua chamada: a de que estaria já habituado a jogar na altitude. Nada que convencesse; a mesma revista, naquele 1986, estampou em uma capa a chamada “quem é Zelada?” ao repercutir a lista de Bilardo.
Muito da polêmica foi alimentada pelo escândalo que era El Narigón abrir mão de Ubaldo Fillol – que, além de seguir uma lenda viva, havia sido o titular nas eliminatórias, e vinha de uma boa campanha europeia com o Atlético de Madrid (vice-campeão da Recopa da UEFA). A própria chamada “quem é Zelada?” foi posicionada logo abaixo dos letreiros que informavam “a verdade sobre a exclusão de Fillol”. Que, diga-se, não foi o único a perder a vaga: em grande fase por outro América, o time de Cali trivice-campeão da Libertadores entre 1985 e 1987, Julio César Falcioni ainda resmungava em 2004: “em 1986, todos diziam que eu era o terceiro goleiro, mas apareceu Zelada com as instalações do América do México para a concentração e me marginalizaram”.
Jogar na Colômbia não era exatamente um problema, vale dizer; o próprio Bilardo havia sido técnico por lá (no Deportivo Cali vice da Libertadores 1978 e na seleção local nas eliminatórias à Copa de 1982) e não deixou de convocar quem brilhasse no auge do narcofútbol, a exemplo de José Luis Brown (Atlético Nacional), de Sergio Goycochea (Millonarios) e do próprio Falcioni. Por outro lado, claro que Zelada não cairia de paraquedas em 1986 sem alguma qualidade.
Ele é considerado o maior goleiro da história do América, com a própria revista El Gráfico detalhando já em 2013, na matéria “mitos e verdades sobre a seleção de 1986”, que ele “jogou durante oito anos no clube mais difícil do México. Suas mãos protagonizaram a defesa mais importante da história do futebol desse país, sem exagerar: deteve um pênalti na final do campeonato de 1983-84 contra o Chivas Guadalajara, quando o América tinha um jogador expulso e a partida estava em 0-0; as Águilas ganhariam de 3-1 e Zelada levaria a glória”. A revista local Solo Fútbol o colocou em uma capa na época rotulando-o como “o melhor goleiro”; curiosamente, ele vestia ali uma camisa com distintivo de outro América, a equipe carioca.
Aquele título mexicano em pleno dérbi principal da liga asteca foi justamente o primeiro troféu da carreira de Zelada, eleito o jogador da temporada e logo tricampeão mexicano seguido: o América faturou a temporada 1984-85 e também a edição seguinte, um torneio semestral pelo restante do ano de 1985. Mesmo antes dos troféus chegarem, o sucesso argentino na Cidade do México já repercutia no rival local da Cruz Azul, que fora buscar em 1981 precisamente o antigo concorrente Ferrero para ser seu goleiro. Mas a mesma nota de 2013 da El Gráfico deixa claro: “Carlos Bilardo o escolheu como conexão local. Zelada era amo e senhor na concentração do América. Foi, também, uma tentativa argentina de atrair para o seu lado os mexicanos”, tão torcedores do Brasil em 1970.
É que, como mencionado por Falcioni, a Albiceleste hospedou-se nas instalações do América, onde foi batida a foto abaixo – em que ele aparece de amarelo. A ordem dos nomes é: Carlos Pachamé (auxiliar técnico), Luis Islas, Jorge Valdano, Ricardo Giusti, ele, Néstor Clausen, José Luis Brown, Oscar Ruggeri, Nery Pumpido, Diego Maradona e Raúl Madero (médico); Ricardo Bochini, Carlos Tapia, Héctor Enrique, Pedro Pasculli, Ricardo Echevarría (preparador físico), Carlos Bilardo (técnico), Claudio Borghi, José Luis Cuciuffo e Marcelo Trobbiani; Rubén Benrós (roupeiro), Daniel Passarella, Julio Olarticoechea, Oscar Garré, Sergio Almirón, Sergio Batisuta, Jorge Burruchaga e Roberto Molina (massagista).
Zelada e o América não foram meros anfitriões: o clube azucrema serviu rotineiramente de sparring da seleção argentina (e também da iraquiana) em rachões – com Zelada pelo lado mexicano, que inclusive conseguia ganhar as peladas, enlouquecendo Bilardo, que subestimara a dureza daqueles “auxiliares”. Uma reportagem do TyC Sports até ressaltou outra grande importância que o terceiro goleiro teve na campanha: teria sido ele, como proprietário de uma loja de artigos esportivos, quem propiciou que a delegação contasse com uma improvisada camisa azul adequada ao calor para o clássico com a Inglaterra nas quartas-de-final.
O extremamente meticuloso Bilardo estava insatisfeito com a funcionalidade da pesada camisa azul reserva original (já utilizada nas oitavas-de-final com o Uruguai) oferecida pela Le Coq Sportiff. Segundo outras versões, o papel de Zelada nesse tema foi menor, mas não menos importante: seria o guia que sabia da loja onde as camisas desejadas por Bilardo poderiam ser encontradas. Além das instalações do América, ele também teria intermediado boas hospedagens em Puebla, a outra cidade mexicana em que a Argentina precisou jogar.
Mas a importância de Zelada limitou-se mesmo àqueles bastidores extracampo ocultos do grande público – ainda que, não contente com a mera convocação do ídolo, as arquibancadas mexicanas chegassem a “exigir” de Bilardo que o escalasse. Mas, mesmo sem Fillol, o titular absoluto no gol foi Nery Pumpido. E, em tempos onde nem todos os reservas sentavam no banco (apenas cinco poderiam ser relacionados e assim terem chances de jogar, daí a falta de uniforme nas duas fotos abaixo), o suplente imediato de Pumpido foi o garoto Luis Islas, fazendo com que Zelada acompanhasse as partidas como espectador ilustre naquelas mesmas arquibancadas…
Depois do Mundial, Zelada ainda teve outro título internacional, ao erguer com o América a Liga dos Campeões da Concacaf em 1987. Mas uma lesão no joelho em 1988 propiciou seu repasse ao modesto Atlante, onde pendurou as luvas em 1990. Foi o quarto campeão de 1986 a parar de jogar, após as aposentadorias de Valdano (em 1987, embora El Filósofo voltasse brevemente em 1990), Passarella (em 1989) e Brown (primeiro semestre de 1990).
Aquela El Gráfico concluiu sobre a vida pós-1986 do goleiro: “como aconteceu a tantos jogadores, ficou marcado nas lembranças. Por isso, em cada aniversário daquela final de 1984, seu nome aparece nos diários mexicanos, e a imagem do pênalti defendido percorre os programas de futebol. O consideram o melhor goleiro da história do clube, ao qual seguiu ligado. Não lhe faltaram conflitos: participou como intermediário de algumas transferências que geraram polêmicas. E até recebeu um processo judicial por golpear seu motorista. Seu peso específico no clube faz com que sua palavra sempre seja procurada, tanto quando o cenário é bom como quando não”.
Ignorado solenemente por Bilardo após a missão cumprida, Zelada é até hoje o último caso de um campeão do mundo com zero jogos por seu país, e o único desde que o futebol profissional já estava largamente disseminado no mundo: seus antecessores foram Juan Carlos Calvo (1930), Pietro Arcari, Giuseppe Cavanna (1934), Bruno Chizzo, Aldo Donati (1938), Washington Ortuño e Luis Rijo (1950). Curiosamente, ele não chegou a ser o último goleiro a ir uma Copa do Mundo sem jamais jogar pela Argentina: Fabián Cancelarich e Ángel Comizzo, ambos presentes em 1990, foram outros, com Cancelarich tendo o diferencial de ter sido convocado ao longo de cinco anos; depois, foi a vez de Norberto Scoponi, terceiro goleiro em 1994. O vencedor de 1986 também é o único vencedor de Copa do Mundo como atleta de um clube mexicano.
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