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Bernardo Gandulla, ex-vascaíno que foi muito mais que mero vocabulário, faria cem anos

No Brasil, Bernardo José Gandulla é lembrado apenas como o argentino que, “muito gentil, buscava a bola fora de campo para entregá-la ao jogador (…) mesmo que este fosse adversário”, nas palavras de um dicionário feito em 1981 pela Placar sobre expressões do futebol. Injustiça. Primeiro, porque a história não seria bem essa. Segundo, porque Gandulla foi um grande jogador, bem acima do folclore criado. Hoje, o ex-meia-esquerda faria cem anos. Momento propício para ser relembrado.

Além da passagem pelo Vasco da Gama, Gandulla fez sucesso no Boca e, especialmente, no Ferro Carril Oeste, no qual se profissionalizou em 1935. Exatamente naquele ano, os verdolagas conseguiram sua melhor campanha até então na elite, um 8º lugar. E El Nano (apelido comum na Argentina para crianças de nome Bernardo) logo mostrou a que veio: foi o artilheiro do elenco, com 15 gols. Com destaque aos três nos 3-1 no clássico com o Vélez.

Gandulla viria a ser o maior artilheiro do “Clássico do Oeste”, com dez gols, recorde compartilhado com o velezano Agustín Cosso, que fez exatamente o outro gol da partida. Curiosamente, ambos defenderiam lados rivais também no Brasil, pois Cosso jogou no Flamengo. A boa fase manteve-se em 1936. Gandulla foi uma vez mais o artilheiro do FCO, com 14 gols, quatro deles só no 7-2 sobre o Gimnasia LP – além de fazer novamente os da vitória sobre o rival, em um 2-1 no Vélez. Nesse embalo, ele e o colega Raúl Emeal estrearam pela Argentina em 18 de outubro daquele ano, em 3-0 não-oficial contra a seleção rosarina; Emeal fez justamente o terceiro gol.

Em 1937, Gandulla integrou um dos mais célebres ataques do clube do bairro de Caballito, um quinteto ofensivo apelidado de La Pandilla: José Maril de ponta-direita, Alfredo Borgnia na meia-direita, Jaime Sarlanga de centroavante, Gandulla na outra meia e Emeal na outra ponta. Todos jogariam em algum momento pela seleção: Maril, já pelo Independiente, e Borgnia, já pelo San Lorenzo, o fariam nos anos 40. Sarlanga estreou ainda como verdolaga, em 1939 e seguiria como jogador do Boca.

Embora os atacantes tendam a ficar mais expostos a lesões, os cinco jogadores mais presentes na campanha foram justamente eles, que somaram 78 gols. Gandulla, para variar, foi o artilheiro, com 23. Também para variar, fez dois em um 3-1 no Vélez, além de dois em um 4-1 fora de casa no San Lorenzo. O problema era a defesa, que levou 79 gols. O sucesso de Gandulla o fez ser pré-convocado para a seleção que iria à Copa de 1938. A Argentina, porém, sentiu-se ultrajada em perder a sede. Acreditava que, após a Europa ter sediado a edição anterior do mundial, haveria uma alternância que traria o evento de volta às Américas, onde nenhum outro país estaria tão capacitado quanto o dos hermanos.

La Pandilla do Ferro Carril Oeste: Maril, Borgnia, Sarlanga, ele e Emeal. Cabeceio era um de seus mais famosos recursos

O ano de 1938, para El Nano, foi o último de gols no clássico com o Vélez: fez outros três no empate de 5-5 em casa e outro em derrota de 4-2 fora. Só ele conseguiu duas vezes o hat trick no dérbi. E só ele fez hat trick pelo lado alviverde. Se o Ferro não passava do meio da tabela, o brilho individual de suas estrelas chegou ao Brasil. O Vasco já tinha referências dos verdolagas: o lateral-direito Roque Calocero e o ponta-esquerda Salvador D’Alessandro (sem parentesco com o ex-colorado) haviam vindo do FCO para serem campeões estaduais em 1934. Em 1939, os cruzmaltinos seduziram Gandulla, Emeal, o zagueiro José Agnelli e o volante José Dacunto.

Os quatro jogavam sem contrato havia dois anos, mas, em época muito distante da liberdade de passe, continuavam atrelados ao clube de Caballito, que acionou a FIFA. Para piorar, na mesma época o Boca anunciou a compra de Gandulla (que casou-se na antevéspera do 23º aniversário logo antes de deixar Buenos Aires) e Emeal perante o Ferro. Para não correr o risco de perder pontos nos tribunais por provável interpretação de que o quarteto estaria irregular, o Vasco se absteve a princípio de usa-los, gatilho para a versão de que Gandulla, para se manter ativo de alguma forma nos jogos, se dispunha a apanhar as bolas que saíssem do campo. Por isso, seu sobrenome viraria sinônimo do apanhador de bolas (que na Argentina é de fato chamado de alcanzapelotas).

O Vasco, contudo, divulgou hoje uma versão bem distinta, através de pesquisa de Walmer Peres, demonstrando que a palavra “gandula” já era empregada com o mesmo fim antes do meia-esquerda chegar ao Brasil. Confira clicando aqui. O fato é que Vasco e Boca fizeram um acordo que permitiu o uso dos argentinos contanto que Gandulla e Emeal fossem cedidos aos auriazuis em 1940 e assim foi feito. Assim, o passo de El Nano pelo futebol brasileiro foi bem fugaz: já havíamos contado no Especial dedicado aos argentinos vascaínos (clique aqui). Nos clássicos, o meia-esquerda anotou apenas em um 2-2 com o Botafogo.

Gandulla chegou a defender também um combinado Flamengo-Vasco (Valter, Domingos da Guia e Florindo, Oscarino, Zarzur e Artigas, Sá, Valido, Leônidas, ele e Emeal) em amistoso contra um combinado River-Independiente (Bello, Vassini e Coletta, Santamaría, Minella e Martínez, Maril, De la Mata, Erico, Moreno e Pedernera; Coletta jogaria no Flamengo e Santamaría, no Fluminense). O Estadual não veio, mas o hermano integrou o título do primeiro torneio internacional de clubes realizado no Brasil, o Luiz Aranha, inclusive marcando em um 5-2 no Independiente, campeão argentino daquele ano. Já o Ferro, sem Gandulla, despencara para um penúltimo lugar em 1939.

O negócio com o Boca foi firmado mediante a troca de quatro jogadores (Luis Laidlaw, que jogaria no Botafogo, Daniel Pícaro, Joaquín Corvetto e José Lizhterman). Parte dessa história já foi contada, há exatamente uma semana (veja aqui), quando Sarlanga também teria feito cem anos. Sarlanga também foi contratado em 1940 pelos xeneizes, que assim reproduziram três quintos da grande La Pandilla do Ferro. Em um time bem mais forte, foram campeões com facilidade: a taça foi assegurada com quatro rodadas de antecipação, apesar da campanha incluir a pior derrota do Boca na Argentina, um 7-1 para o Independiente, concorrente direto. A taça foi assegurada exatamente no reencontro com o Independiente, onde os auriazuis desengasgaram: 5-2, com dois de Gandulla.

Entre Dacunto e Emeal no Vasco e com a ainda atriz Evita Duarte, futura primeira-dama Eva Perón

Na campanha, Gandulla também marcou dois cada em outros grandes (4-1 no Racing, 4-1 no San Lorenzo) e, sem perder o costume, fez outro no ex-rival Vélez (3-0). A taça foi especial também porque o Boca não era campeão havia meia década, tempo demais para um clube que havia vencido quatro vezes o campeonato entre 1930 e 1935. Foi também o ano de inauguração da Bombonera. Foi de Gandulla o segundo gol em jogos não-amistosos lá, em um 2-0 no Newell’s. Chegou a ser capa de revista acompanhado pela futura primeira-dama Eva Perón, então ainda apenas a atriz Eva Duarte, com ambos trajados com as vestes boquenses.

Em meio à campanha vitoriosa, Gandulla enfim fez seu único jogo oficial pela seleção (pois a partida contra os rosarinos não é considerada válida). Foi só uma vez, mas um jogo categórico: 5-0 no Uruguai, em 15 de agosto. Não teve mais espaço, em parte, pela fortíssima concorrência da época – dentre os mais notáveis, José Manuel Moreno, que já foi descrito como mais habilidoso que Maradona. Moreno era do River, que começava a formar sua célebre La Máquina, campeã em 1941 e 1942; o título de 1942 foi garantido em um Superclásico na Bombonera apesar de Gandulla abrir e ampliar o placar, anotando os 2-0 que o arquirrival posteriormente empataria.

Gandulla estava na delegação argentina vencedora da Copa Roca realizada no início de 1939 (travada em São Januário, aliás, o que teria fomentado o negócio do argentino com os cruzmaltinos) justamente como reserva de Moreno. Um outro obstáculo foi uma ruptura nos meniscos que lhe acometeu ao descer de um ônibus. Gandulla ainda figurou no título de 1943, com seu espaço bem ocupado pelo reforço uruguaio Severino Varela. Deixou o Boca no início de 1944, acertando retorno ao Ferro. Ao todo, foram 121 jogos pelos xeneizes e 60 gols, média de meio gol por jogo. Gandulla foi incluído na edição especial da revista El Gráfico que escolheu os cem maiores ídolos boquenses, em 2010.

Tradicionalmente um clube que prioriza diversos esportes ao invés de focar primordialmente em futebol, o Ferro fazia campanhas bem piores que as medianas dos anos 30. Ainda assim, Gandulla, bichado, foi o artilheiro dos verdolagas em 1944, com oito gols por um time 13º colocado entre 16 competidores. El Nano ficaria mais uma temporada até se transferir em 1946 ao Atlanta. Ao todo, foram 88 gols em 174 jogos pelo FCO. Por um tempo, foi o maior artilheiro da história do clube de Caballito, sendo depois superado por Carlos Vidal e Héctor Arregui, que precisaram ambos de mais de 350 jogos para fazerem cada um só um pouco mais de gols, entre 100 e 110.

O primeiro rebaixamento do Ferro foi exatamente em 1946, quando seu antigo goleador, o qual elegemos em 2014 para o time dos sonhos verdolaga (clique aqui), estava no nanico Atlanta. Gandulla, porém, não era o mesmo, somando poucos gols pelo Bohemio. Em 1947, estaria no primeiro rebaixamento da equipe do bairro de Villa Crespo, apesar do supertime que ela montara (com destaque especial a Adolfo Pedernera, maestro do River considerado por Alfredo Di Stéfano como o maior jogador que vira. A lenda uruguaia Alcides Ghiggia chegou a ser reprovada em testes): falamos aqui.

Boca de 1940, com braçadeiras negras em luto pelo recém-falecido presidente Bricchetto, quem implantara as cores auriazuis no clube. Os três últimos agachados são Sarlanga, Gandulla e Emeal, repetindo o trio do Ferro. Gandulla e Emeal estiveram juntos no Vasco também

El Nano ainda defenderia o Temperley na segundona de 1948, como jogador-treinador do Gasolero – sua estreia foi um vitorioso clássico com o Los Andes, com gol dele. E seria como técnico que Gandulla teria talvez ainda mais importância no futebol argentino. Nem tanto treinando adultos (conseguiu no máximo uma terceira divisão pelo Defensores de Belgrano, em 1954), mas lapidando categorias de base, especialmente as de Atlanta e Boca, onde chegou a ser técnico interino do time principal.

São diversos os grandes jogadores que passaram pelo crivo dele. Pedro Troglio, vice da Copa de 1990 (fundamental para a finalista Argentina passar da 1ª fase ao fazer o gol da vitória na URSS), contou em 2008 que foi um dos aprovados por Gandulla no Boca, embora acabasse escolhendo o River. Dentre outros, incluem-se três campeões das primeiras Libertadores do Boca, casos de Tarantini (“Gandulla e Grillo me aprovaram na hora”, comentou em 2012 o lateral vencedor da Copa de 1978), do ponta Heber Mastrángelo e do goleiro Hugo Gatti, estes dois ainda no Atlanta. Gatti viria a ser o homem com mais jogos pelo campeonato argentino e o segundo que mais defendeu o Boca, uma carreira longeva que só começou graças a Gandulla. O goleiro, que ao defender pênalti do cruzeirense Vanderley deu em 1977 o primeiro título do Boca na Libertadores, havia sido um desastre em seu primeiro teste no Atlanta, levando 14 gols e comentou em 2005:

“Foi terrível. Terminou o jogo e fui ao vestiário. Aí, o Nano Gandulla me perguntou: ‘pibe, porque saíste?’. Lhe disse que para mim era uma vergonha que me fizessem 14 gols, que esse não era eu. E depois dessa conversa, me mandou a uma pensão (…) e disse a um dirigente: ‘este em um ano valerá milhões…’. Ele me descobriu”. Mastrángelo, por sua vez autor de dois gols do primeiro título mundial do Boca, relatou em 2013 que “quinze minutos durou o teste. Eu cheguei de centroavante, mas o Nano Gandulla me disse: ‘filho, podes jogar de meia-esquerda?’. Nem sabia quem era, me viu 15 minutos, chamou um dirigente e pediu que me comprassem”. Outros dois ídolos históricos do Boca aprovados foram o xerife Antonio Rattín (“nas inferiores, o melhor”, respondeu em 2013 ao ser indagado sobre o melhor técnico que tivera) e o meia Marcelo Trobbiani, campeão da Copa de 1986.

Trobbiani foi bem detalhista em 2012: “dos que eu tive, (o melhor foi) El Nano Gandulla. Te dizia poucas palavras, mas justas. Sacou milhares de jogadores, deveriam fazer-lhe um monumento em La Candela (onde o Boca mantém seus juvenis). Me formou como homem e como jogador. Foi um segundo pai. Penso que o mestre das inferiores é o que não fala muito e te diz coisas justas. E o que tem bom olho. Me testou depois que eu saí do trem leiteiro que me trouxe de Araquito e que demorou 15 horas. Vinha nervoso, cansado, joguei 20 minutos e estive mal, mas no outro dia voltou a me ver 20 minutos e me fichou. Isso é ter olho, porque apesar do cansaço eu era torcedor do Boca e estava vivendo o sonho de moleque, e estava nervoso”.

Outro presente na delegação argentina na Copa de 1986 era Raúl Madero, o médico. Como jogador, havia pertencido junto com o técnico Carlos Bilardo àquele Estudiantes supercampeão da Libertadores entre 1967-70. Mas Madero foi formado no Boca e relatou ano passado sobre Gandulla que “foi um pai para mim. Me ensinou tudo (…). Não se sabe o bom que era esse homem, bom e com caráter. (…) Ficarei eternamente agradecido ao Boca, porque logo entenderam que eu estudava (medicina)”. El Nano faleceu em 6 de julho de 1999. Ainda podia ver seu Ferro na elite argentina, na qual seu Boca (jaz na ala dedicada ao clube no cemitério de La Chacarita, o maior da América do Sul) havia sido campeão nos dois últimos campeonatos; e pudera ver seu Vasco recém-campeão da Libertadores eliminando o River nas semifinais.

*Quando a nota foi publicada, mantinha originalmente a versão consagrada de que Gandulla originou a palavra gandula. Agradecemos ao RIP Futebol por nos divulgar o esclarecimento prestado pelo Vasco.

Como técnico dos juvenis do Boca no fim dos anos 50: é o primeiro em pé (o último é Raúl Madero). E homenageado na Bombonera nos anos 80
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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