O Barcelona faz 115 anos hoje. O clube tem Messi, mas o curioso é que custou na maior parte da história a colher sucesso absoluto com argentinos, circunstância mais exceção do que regra. Os culés já se decepcionaram muito com o êxito apenas relativo de medalhões, isso quando os hermanos não acarretaram em total prejuízo. Outros, para o bem e para o mal, passaram despercebidos. Eis talvez uma outra faceta da grandiosidade de Lionel: redimir o “carma argentino” no Barça.
O primeiro passaporte argentino carimbado em Les Corts foi o de Juan Garchitorena, que na realidade nascera nas Filipinas, antiga colônia espanhola e terra natal de Paulino Alcántara, seu primo. Alcántara era nada menos que o maior artilheiro do clube até Messi superá-lo ano passado. Já o parente menos célebre foi também o primeiro a dar problemas: o tal passaporte argentino não foi carimbado de imediato, pois ele se fez passar por espanhol e atuou em clássico com o Espanyol no campeonato catalão em 1916. O torneio era restrito a jogadores locais, o rival descobriu isso e requisitou os pontos pela derrota de 3-0. O fraudulento logo abandonou o futebol e se dedicou ao cinema, onde, com o nome artístico de Juan Torena, chegou até a Hollywood (!).
O seguinte apareceu em 1917: Emili Sagi Liñán, conhecido como Sagi Barba, sobrenome de seu pai, um famoso barítono catalão da época que se casara na Argentina. O filho apareceu em 1917 e despediu-se em 1932 com mais de 400 jogos na ponta-esquerda dos blaugranas. Eis uma outra exceção no histórico argentino no clube. Ele também foi o primeiro hermano a jogar pela Espanha.
Se Garchitorena era filipino e Sagi Barba tinha poucos resquícios argentinos, já que ainda garoto foi morar na Espanha, o volante ofensivo Florencio Caffaratti foi o primeiro “100% argentino” no Barcelona: nascido, crescido e com carreira iniciada às margens ocidentais do Rio da Prata. O Barça o comprou do futebol mexicano e Caffaratti integrou o elenco bicampeão de 1947 e 1948. Embora nunca tenha se firmado na titularidade, entrou na história como autor do primeiro gol barcelonista sobre o Real Madrid no Santiago Bernabéu. Na terra natal havia passado por Vélez, River e Banfield.
O Barcelona também trouxe do México em 1948 o ponta-esquerda Mateo Nicolau, que saíra-se bem no San Lorenzo apesar da falta de títulos. Nicolau teve melhor sorte e ficou até 1952, com duas ligas, duas Copas do Rei, duas Supercopas da Espanha (que por sinal na época eram chamadas de Eva Duarte em homenagem a Eva Perón) e duas Copas Latinas – torneio importante em anos pré-Liga dos Campeões que reunia os campeões espanhóis, portugueses, italianos e franceses.
Outro daqueles tempos foi o atacante Marcos Aurellio (com dois L mesmo) Di Paolo. Ex-integrante do Vélez campeão da segundona em 1944 – desde então, o Vélez segue na elite e só está há menos tempo ininterrupto nela que o Boca -, Aurellio fez história nas estatísticas: fez o gol 1000 do Barça, em 1950. Ele também foi adquirido junto ao futebol mexicano e só deixou o Barcelona pela impaciência da esposa com a agitada vida noturna que o atacante vinha se permitindo no boêmia capital catalã. Também por volta de 1949-50, o Barcelona teve Uberto Giménez, zagueiro ex-Rosario Central e River. Ficou só uma temporada e rumou ao Nacional uruguaio.
Em 1956, aportou o atacante Alejandro Mur, vindo do chileno Unión Española após formar-se no Rosario Central e ser ídolo de infância de César Menotti, que por sinal treinaria o Barcelona. Com problemas para entrar em forma, jogou apenas dois amistosos, um deles contra a Portuguesa carioca (!) em Mônaco (!!). Em 1959, o primeiro goleiro: Carlos Medrano Lazcano, o único que jogou tanto por lá como também no Barcelona equatoriano, de Guayaquil (Gerardo Martino foi o outro que esteve em ambos, como jogador no do Equador e técnico no da Catalunha). Passou uma temporada, sem sair da reserva de Antoni Ramallets. Chegara vindo do Tigre após formar-se no Sportivo Dock Sud.
Em 1972, o atacante Bernardo Cuchi Cos veio do Belgrano de Córdoba e ficou até 1975, sendo titular no elenco campeão de 1974 – título que encerrou jejum de quatorze anos do Barça no Espanholzão, maior seca do clube na liga. Precisamente em 1974, chegou sua antiga dupla no Belgrano, Juan Carlos Heredia, filho de ex-jogador da seleção argentina também chamado Juan Carlos Heredia, El Milonga (ponta-direita vice da Copa América 1942).
Já El Milonguita passou cinco anos na Catalunha. Venceu uma Recopa Europeia e acabou convocado à seleção espanhola. Ele só deixou de vir à Copa 1978 por decisão própria: soubera que militares haviam invadido a casa de sua família na Argentina, sem inibir truculência com o idoso Heredia pai, confundindo-o com outra pessoa de mesmo nome ligada aos “subversivos” ao regime. O mal-entendido só não terminou de forma mais trágica porque um dos soldados reconheceu o jogador em diversas fotos espalhadas pela casa. Heredia filho já disse que através desse relato é que seu colega Johan Cruijff tomou ciência do que se passava na Argentina. O holandês também preferiu não vir ao mundial.
Formado no Unión de Santa Fe com passagem pelo Argentinos Jrs, o zagueiro Rafael Zuviría chegou em 1977 após quatro anos bons no Racing Santander. Passaria cinco temporadas elogiadas na Catalunha, mas sem um único título na liga. Era o duro período 1960-90, em que o Barcelona foi campeão espanhol apenas em 1974 e em 1985, com o Real tendo mais oposição do Atlético de Madrid e dos clubes bascos. Era nessa crise que Diego Maradona aportou após a Copa 1982.
Já reconhecido no planeta mas ainda sem triunfar totalmente no futebol, Dieguito não decepcionou nos gols e chegou a ser aplaudido pelos madridistas no Santiago Bernabéu. Ganhou a Copa do Rei de 1983 sobre o rival, mas seus baixos falaram mais que seus altos. Sem ganhar o Espanholzão, surtou na final seguinte da Copa do Rei após perdê-la para o Athletic Bilbao, iniciando briga generalizada contra o mesmo clube contra quem havia quebrado uma perna. Foi defenestrado ao Napoli após dois anos instáveis em Les Corts. O Napoli era só um time mediano em uma liga italiana que ainda se reaquecia.
Enquanto Maradona estava fraturado, o Barça comprou Jorge Gabrich, promessa do Newell’s e da seleção vice no mundial sub-20 de 1983. Mas Maradona logo se recuperou. Era uma época pré-Lei Bosman e só dois não-espanhóis eram permitidos nos titulares. E o outro forasteiro já presente em Les Corts também era intocável, o alemão Bernd Schuster. Gabrich então amargou a reserva, estadia no time B e sucessivos empréstimos e sua carreira estacionou.
O argentino seguinte só viria em 1996: o atacante Juan Antonio Pizzi, que desde 1994 jogava pela Espanha após ser constantemente ignorado nas convocações argentinas apesar da boa fase no Tenerife: o clube das Canárias simplesmente vencera o Real Madrid na última rodada em duas temporadas seguidas, em 1992 e 1993, resultados que fizeram os merengues perderem a liga para o Barcelona. Pizzi teve o carinho eterno dos blaugranas por isso, mas, apesar dos quatro anos no Camp Nou, nunca se firmou. Mas acabou convocado pela Furia (chegou a marcar por ela um gol na Argentina) à Copa 1998.
Em 1998, o zagueiro Mauricio Pellegrino veio credenciado por oito anos de serviços à melhor fase da história do Vélez, mas só ficou um ano. Foi logo repassado ao Valencia, onde se deu bem melhor. Em 2001, o River vendeu o goleiro Roberto Bonano e a joia Javier Saviola. Bonano foi o titular por uma temporada sem títulos mas suficiente para coloca-lo na Copa 2002, mas depois perderia a posição para o jovem Víctor Valdés. Saviola começou muito bem e pouquíssimos entenderam sua ausência no mesmo mundial para dar lugar ao veteraníssimo e sumido Caniggia. Foi importante também na temporada 2002-03, quando o Barça pré-Ronaldinho teve que lutar contra o rebaixamento.
El Conejo, porém, depois perdeu lugar para o tridente do brasileiro com Samuel Eto’o e Henrik Larsson. Foi sucessivamente emprestado (Monaco, Sevilla) e acabou passando sem custos nada menos que ao Real Madrid em 2007. Outro que saiu aquém foi Juan Román Riquelme, que vinha no auge da carreira, no super Boca bi da Libertadores. Outra ausência questionada na Copa 2002, chegou naquele ano e apesar do talento não rendeu. Foi logo repassado ao emergente Villarreal, onde enfim triunfou na Europa. Foi o mesmo destino de outra grande decepção hermana: Juan Pablo Sorín, que chegara sob empréstimo como status de salvador da pátria na péssima temporada de 2003. Foi demais para o lateral.
Enquanto os medalhões falhavam, Lionel Messi estreou no time principal em amistoso de outubro de 2003 e em outubro do ano seguinte jogou pela primeira vez na liga, em clássico com o Espanyol. Desnecessário tecer maiores comentários sobre La Pulga, maior jogador barcelonista. Passemos aos seguintes: em 2005, os culés enxergaram potencial em Maxi López. Teve sua noite de glória com um passe e uma assistência nos 2-1 sobre o Chelsea pela Liga dos Campeões de 2005, mas os ingleses avançariam em Londres. Foi a exceção da regra ao loiro, que naufragou no Camp Nou. Aliás, foi lá que ele conheceu Mauro Icardi, então nos juvenis (Icardi passou à Sampdoria ainda na base).
Em 2007, na entressafra do Barcelona de Ronaldinho e Rijkaard para o Barcelona de Messi e Guardiola, o xerife Gabriel Milito veio do Real Zaragoza. Curiosamente, o ex-Independiente chegara à Espanha para assinar com o Real Madrid, mas lesionou-se e acabou tendo de se contentar com o Zaragoza. Gaby passou quatro anos mas se atrapalhou muito com lesões. Acabou de fora da Copa 2010, ano da chegada de Javier Mascherano. Masche passou por altos, como o título da Liga dos Campeões em 2011, e baixos: seu uso como zagueiro foi ruim e a estupenda Copa 2014 é que lhe reabilitou como volante.
O Barcelona já teve também quatro técnicos argentinos: Helenio Herrera foi quem se deu melhor, no time bicampeão do fim dos anos 50 com o trio húngaro Kubala-Kocsis-Czibor, saltando para brilho ainda maior na Internazionale. Mas ironicamente não tinha tanto resquício argentino: foi criado no Marrocos e como jogador defendeu a França. Roque Olsen havia jogado sete anos justo no Real Madrid nos anos 50 e treinou o rival entre 1965-67, sem troféus. César Menotti saiu da seleção argentina em 1982 e durou a fatídica temporada 1983-84. Gerardo Martino trilhou o inverso: teve um desempenho misto na última temporada e agora está na seleção.
Há também aqueles que só passaram pelo time B, casos do atacante José Toti Iglesias (1979, ex-San Lorenzo), do goleiro Roberto Rosa (1998, ex-Chacarita) e, atualmente, do atacante ex-Boca Sergio Araujo. E aqueles que o clube trouxe mas não efetivou: Alfredo Di Stéfano, que jogou amistosos mas acabou no Real Madrid, onde seu estrondoso sucesso fomentou a rivalidade entre a dupla; e outro nome importante mas de passagem menos conhecida, o lateral Alberto Tarantini. Ele se rebelara com o presidente do Boca em 1977 e foi campeão sem clube na Copa 1978. Logo firmou pré-contrato com o Barça, jogou um amistoso, mas negou-se a casar com uma cidadã local para adquirir passaporte espanhol e assim abrir uma vaga de estrangeiro. Seu destino europeu foi o Birmingham City.
Sobre o tema, recomendamos o livro “Barçargentinos”, de Roberto Martínez, ironicamente filho de ex-jogador do Real Madrid e do Espanyol. Também já retratamos argentinos do Atlético de Madrid (clique aqui), do Real Madrid (aqui), Sevilla (aqui) e seleção espanhola (aqui).
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