Austrália, histórica pedra nas chuteiras da seleção argentina
Argentina e Austrália já duelaram até pelas sempre dramáticas repescagens para uma Copa do Mundo, com a Albiceleste avançando rumo aos EUA apenas com um magro placar agregado de 2-1 no epílogo das eliminatórias ao Mundial 1994. Não foi um fato isolado. Os Socceroos estão marcados por ser outra camisa verde e amarela que soube se colocar como histórica pedra nas chuteiras dos hermanos, com direito a representarem mais de uma eliminação nos mundiais sub-17 e sub-20. Para além do histórico, vale destacar também um interessante intercâmbio boleiro entre os dois países, pois há nativos de um que já defenderam as cores do outro.
Há dissenso sobre qual teria sido a primeira partida da seleção argentina. A corrente majoritária atribui o pontapé inicial a um jogo de 1902, questionando-se que o adversário do duelo anterior em 1901 não teria sido propriamente uma seleção uruguaia (como naquele 1902) e sim o clube Albion reforçado com dois jogadores do Nacional. Se for considerado o jogo de 1901, se poderá dizer que um australiano realmente já jogou pela Argentina.
Foi o caso de Arthur Mack, muito embora para os padrões da época ele fosse um membro regular da comunidade anglo-argentina como qualquer cidadão britânico, em tempos ainda coloniais da Oceania – cuja ilha principal ficou reconhecidamente independente precisamente naquele ano de 1901.
Mack não chegou a ser reutilizado e com isso costuma ser esquecido nas estatísticas oficiais da seleção, por mais que houvesse integrado o grande bicho-papão do futebol da Argentina e do Cone Sul nos anos 1900, o Alumni – dez vezes campeão argentino entre 1900 e 1911; até hoje, somente os cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) o ultrapassaram. O Alumni segue vivo no rúgbi argentino, mas retirou-se do futebol ainda em 1912, o suficiente para ter inspirado uniformes do Estudiantes e do Instituto de Córdoba.
Tal como os territórios britânicos no Índico e no Pacífico, a Austrália acabou apaixonando-se muito mais por outros esportes bretões: o críquete e os dois códigos de rúgbi (especialmente o league, menos popularizado no resto do mundo em relação ao union, formato este tão amado na Argentina). O futebol inclusive virou o soccer por lá também, com o desenvolvimento do futebol australiano como “o” football na ilha. O soccer tendeu a ser praticado em especial pelos imigrantes de origens não-britânicas, notadamente latinos, eslavos e, mais recentemente, africanos. E os argentinos tomaram parte nesse aspecto.
Cinco hermanos já defenderam a Austrália, embora praticamente todos houvessem crescido desde cedo por lá. Apenas o primeiro deles chegou a profissionalizar-se no futebol argentino antes de emigrar: o meia Rodolfo Gnavi foi um obscuro membro do Argentinos Jrs que brigou para não cair em 1968, ano em que registrou duas partidas – uma vindo do banco, no 2-1 sobre o San Lorenzo de Mar del Plata, e outra como titular, em derrota de 2-1 para o Newell’s. Seu terceiro e último jogo pelos colorados foi em 1969, em derrota de 1-0 para o Deportivo Morón. Apareceu uma só vez pela seleção australiana, em 1975.
O segundo argentino foi Oscar Crino, e também o mais assíduo: veio de uma fase interessante da liga de futebol de Hong Kong para fazer 70 jogos (e doze gols) a partir de 1981, ano em que serviu tanto a seleção adulta como a sub-20, no Mundial da categoria sediado na própria Austrália. E já ali a ilha representou uma primeira dor de cabeça aos argentinos.
Nem o fator casa afastava a surpresa que foi a vitória de virada por 2-1 na estreia, com os dois gols saindo nos onze minutos finais sobre a seleção de Burruchaga, Clausen, Tapia (um trio de futuros campeões mundiais em 1986), Goycochea, Tata Martino e Turco García. Todos eles estiveram no duelo, inclusive o próprio Crino.
Aquela zebra pesou para uma precoce eliminação argentina ainda na fase de grupos. Crino defendeu a Austrália adulta até 1989, sem superar nunca a repescagem intercontinental sempre imposta ao representante da Oceania – o cheio mais próximo que ele sentiu da Copa foi nas eliminatórias para 1986, com a Escócia (do técnico Alex Ferguson) avançando com um magro 2-0 agregado.
Os argentinos seguintes, por sua vez, não tiveram tanto peso nos rumos dos Socceroos: Gabriel Méndez fez nove partidas, a partir de 1994; Walter Ardone jogou uma apenas, em 1996, ano em que Raúl Blanco apareceu interinamente como treinador. Formado na base do Racing, havia jogado na ilha na virada dos anos 60 para os 70, após trilhar o “mundo ascenso” do futebol argentino por San Telmo, Arsenal e pelo extinto Sportivo Palermo – cenário em que consagrou-se já como treinador no Dock Sud que subiu à 2ª divisão em 1986.
Blanco voltou a treinar a seleção australiana principal entre 1998 e 1999 e teve a honra de dirigir a equipe olímpica nos Jogos de Sydney, em 2000 – ano do primeiro dos quatro joguinhos de Pablo Cardozo, que até marcou um gol. Desde então, no máximo Hernán Espíndola foi usado em 2011 pela seleção sub-17. O que não mudou foram as desventuras que os australianos calhavam de representar – especialmente em outros duelos entre as seleções juvenis.
3 de outubro de 1981: data do duelo em Sydney descrito acima, no Mundial sub-20 em que a Argentina havia entrado como detentora do título para cair logo na primeira fase.
31 de julho de 1985: no primeiro Mundial sub-17 (na época, ainda sub-16) da história, uma Argentina que cativara o país no título sul-americano da categoria, onde foram revelados Fernando Redondo, Fernando Cáceres e até mesmo um Hugo Maradona que parecia promissor por méritos próprios, estreia perdendo de 1-0 para uma camada interessante da Austrália, na chinesa Tianjin. A ilha em breve levará dois bronzes seguidos no Mundial sub-20, com a geração que baterá de frente com a Albiceleste naquela repescagem em 1993. Já aquela derrota adiante pesa para eliminação argentina na fase de grupos.
14 de julho de 1988: foi simplesmente a nada auspiciosa estreia de Diego Simeone pela seleção principal, pelo Torneio Bicentenário da Austrália – Oscar Crino esteve naquela competição amistosa, mas foi poupado de encarar a terra natal. Em Sydney, Paul Wade abriu o placar aos 4, mas a normalidade, em tempos de semiamadorismo dos Socceroos, parecia reiniciada quando Oscar Ruggeri igualou aos 31.
Era uma Argentina bastante experimental, conservando apenas o próprio Ruggeri e Sergio Batista da escalação titular campeã mundial dois anos antes; do México, só sobravam também o goleiro Luis Islas e o zagueiro Oscar Garré, ambos reservas no bicampeonato. E Garré acabou mesmo como um de tantos queimados pelos desdobramentos assombrosos do jogo: nunca mais defendeu a Albiceleste após Charlie Yankos anotar o 2-1 aos 43 e o 3-1 aos 22 do segundo tempo e o placar virar um 4-1 depois de Vlado Bozinoski fez o dele aos 34.
A goleada inimaginável tampouco ajudou gente que teve ali praticamente sua única oportunidade, como Claudio Cabrera (muito afetado por lesões, é verdade), Toribio Aquino, Mario Lucca ou José Luis Rodríguez. Simeone e o lateral Hernán Díaz, novatos, teriam de aguardar até 1994 para irem a uma Copa do Mundo.
25 de agosto de 1991: enfim uma vitória argentina, pelas oitavas-de-final do Mundial sub-17. Em Viareggio, a Argentina de Verón e Gallardo abre 2-0, ambos gols de Rubén Comelles, e apenas com um gol contra é que os Socceroos encostam no placar – que fica no 2-1.
18 de junho de 1992: 2-0 no Monumental, placar magro para os padrões da época de expectativas sobre os australianos. Foi em amistoso que acabou servindo para corroborar a conquista meses depois na edição inaugural da Copa das Confederações, onde o torneio não chegou a ter o representante da Oceania. Gabriel Batistuta fez os dois gols.
22 de agosto de 1993: em Nagoya, a má escrita juvenil se repete, em nova estreia no Mundial sub-17. Não era uma safra boa da Argentina: somente o lateral Federico Domínguez defenderá a seleção principal – e uma única vez, em 2003. Os australianos ficam duas vezes na frente do placar e, por mais que os hermanos busquem o empate em ambas, o resultado adiante pesará na eliminação na fase de grupos. As duas seleções terão a mesma pontuação, com o a Austrália avançando pelo melhor saldo.
31 de outubro de 1993: a necessidade de repescagem faz a seleção recorrer novamente a Maradona após praticamente três anos de ausência. A suspensão pelo doping positivo para cocaína impedira que Diego fosse usado ao longo de 1991 e 1992. Até fora contemplado com dois joguinhos no início de 1993, mas, sem convencer por continuidade, El Diez vinha esquecido e não atuara nas eliminatórias até então, e seu retorno faz até mesmo jogos do seu Newell’s serem adiados na liga argentina pela AFA: o craque tinha até então somente dois jogos em seu novo clube e um deles ainda foi o amistoso de apresentação…
O goleador romanista Abel Balbo é outro a sair de longo ostracismo desde a Copa 1990 (enquanto Hugo Pérez e Carlos Mac Allister, pai de Alexis, são caras novas) e aos 37 minutos abre o placar em Sydney, igualado em cinco minutos por Aurelio Vidmar.
17 de novembro de 1993: o jogo da volta na repescagem transcorre sem muita tranquilidade no Monumental. É preciso contar com a infelicidade de Alexander Tobin, que marca um gol contra já aos 14 minutos do segundo tempo, para a Argentina vencer pelo placar mínimo e se garantir na Copa do Mundo. Mesmo que os argentinos tenham supostamente sido contemplados com doping generalizado sob chancela tácita da FIFA.
30 de junho de 1995: um raríssimo duelo em que a Argentina usou o estádio do Quilmes, em laboratório para a Copa América. A dupla Ba-Ba, em grande sintonia, resolveu: Abel Balbo abriu logo aos 7 o placar que Batistuta fechou no minuto final. Do lado adversário, o capitão Paul Wade era o remanescente de todos os cinco duelos até então.
23 de junho de 1997: no Mundial sub-20 em que Riquelme, Aimar, Cambiasso, Samuel e até mesmo Scaloni foram apresentados ao mundo como protagonistas de um título vistoso, a Austrália trata de ser um estraga prazeres no último jogo da fase de grupos, em resultado maluco que a coloca na surpreendente liderança. A cidade malaia de Kangar vê Bernardo Romeo abrir logo aos 9 o placar… e um tal Kostas Salapasidis anotar não só uma virada-relâmpago aos 39 e aos 40, como ampliar já aos 15 do segundo tempo para 3-1.
Placente, aos 25, e Riquelme, já aos 43, então arrancam um empate com risos amarelos. Mas nem isso sobra no fim: Salapasidis, insaciável, encerra seu maior show ao marcar aos 45 um quarto gol seu e dos Socceroos.
13 de agosto de 2003: a finlandesa Turku volta a ver um triunfo juvenil argentino, na estreia do Mundial sub-17. A equipe de Gago, Biglia e Garay vence por 2-0 e terminará na liderança do grupo e o adversário, na lanterna.
17 de agosto de 2004: nas Olimpíadas de Atenas, a Argentina varreu seus adversários até a final. Menos a Austrália, no último jogo da fase de grupos. D’Alessandro abriu cedo o placar, concluindo jogada que ele próprio iniciou, aos 9 minutos. Mas ficou só no 1-0 e os oponentes avançaram juntos.
18 de junho de 2005: o segundo jogo da Copa das Confederações se desenhava fácil aos 8 minutos do segundo tempo, quando Luciano Figueroa ampliou para 3-0 o placar que ele mesmo abrira logo aos 12 do primeiro tempo e que Riquelme ampliara de pênalti aos 31. Mas então John Aloisi achou dois golzinhos para encostar rápido, aos 16 e aos 25. A vitória em Nuremberg terminou assegurada apenas aos 44, quando Lucho Figueroa, na partida de sua vida pela Albiceleste, assinalou o hat trick.
11 de setembro de 2007: em Melbourne, Martín Demichelis anotou aos 4 minutos do segundo tempo o único gol de um amistoso não muito digno de nota histórica. A não ser como último duelo até hoje entre as seleções principais.
10 de agosto de 2008: mesmo juntando Riquelme e Messi, a Argentina teve nas Olimpíadas de Pequim vida mais difícil do que os 3-0 sobre o Brasil nas semifinais podem sugerir. A maioria das vitórias foi só por um gol de diferença e contra a Austrália o triunfo mínimo veio já aos 31 minutos do segundo tempo, gol de Lavezzi, pela segunda rodada da fase de grupos.
24 de outubro de 2015: em uma edição do Mundial sub-17 em que até três das quatro seleções de cada grupo podem avançar de fase, a Argentina consegue ficar na lanterna e sair cedo do Chile. A Albiceleste já vinha de duas derrotas e começou perdendo de 2-0 em Chillán. Só conseguiu descontar. Daquele time lamentável, somente Exequiel Palacios conseguiu chegar à seleção principal.
22 de julho de 2021: na estreia das Olimpíadas de Tóquio, o 2-0 australiano vai custar caro a Thiago Almada e Alexis Mac Allister. Ao fim da fase de grupos, as duas seleções cairão abraçadas; nem a vitória impedirá a lanterna australiana, enquanto o Egito, com mesma pontuação, ficará nos critérios de desempate com a segunda vaga da chave. O técnico aussie era Graham Arnold, o mesmo que comandará a seleção principal adversária nessas oitavas-de-final – e um remanescente dos duelos pela repescagem em 1993.
O intercâmbio é muito menos obscuro em outro esporte bretão amado nos dois países, o rúgbi. Dois argentinos, ambos da posição de pilar, puderam jogar tanto pels Pumas como os Wallabies, como são apelidadas as seleções de Argentina e Austrália na bola oval. E outros dois homens trabalharam nas duas comissões técnicas. Enrique Rodríguez inclusive não se contentou em defender só essas seleções.
El Topo (“A Toupeira”) Rodríguez integrou a excursão da primeira visita argentina a Twickenham, o Wembley da modalidade, e que soube empatar com a anfitriã Inglaterra (na primeira não-derrota contra os ingleses) na ocasião, em 1978 – é sua a camisa alviceleste exposta no museu daquele estádio. Em 1980, foi um dos argentinos dominantes na convocação de uma primeira seleção sul-americana, os Jaguares.
Em 1983, a seleção argentina excursionou pela Austrália e levou a melhor. Rodríguez ficou por lá e já em 1984 estreava por sua terceira seleção, com a qual participou na primeira Copa do Mundo, a de 1987. E ainda jogaria por uma quarta, a do Taiti. Patricio Noriega, por sua vez, foi mais econômico no quesito seleções, se “limitando” às duas em questão mesmo. Mas soube ser convocado a Copas do Mundo por cada uma.
Noriega vivenciou o fracasso argentino na primeira fase na Copa de 1995 e comemorou do banco (lesionara-se) o segundo e último título australiano já na edição seguinte, em 1999, o que permitiu à terra dos marsupiais ser por oito anos a maior vencedora isolada do torneio. O argentino foi escolhido pela revista Rugby World como um dos dez melhores jogadores da história em sua posição, em 2015.
Houve também quem participasse das duas seleções por trabalhos à beira do gramado. O hooker Mario Ledesma foi a nada menos que quatro Copas do Mundo com a Argentina (1999, 2003, 2007 e 2011, quando pendurou às lágrimas as chuteiras) e entre 2015-17 foi o treinador de forwards da comissão técnica australiana, dirigida por Michael Cheika. Os Wallabies puderam voltar após doze anos a uma final de Copa do Mundo, eliminando a própria Argentina na semifinal de 2015, embora precisassem se contentar com o vice para os rivais da Nova Zelândia.
Ledesma alçou voo solo em 2018 ao ser contratado como novo treinador dos Pumas, exercendo o cargo até 2022. Nesse período, a Argentina caiu pela primeira vez desde 2003 na fase de grupos, na Copa de 2019, mas venceu pela primeira vez os All Blacks, em 2020 (em partida na Austrália, aliás, em bolha sanitária organizada às pressas por conta da pandemia). O próprio Cheika juntou-se à comissão argentina, como assistente, após ter dirigido a terra natal na Copa de 2019. E substituiu Ledesma como treinador principal nesse 2022, após a renúncia do parceiro de longa data. O australiano conduziu os argentinos a uma segunda vitória contra os neozelandeses, e a primeira a ser conquistada na casa adversária.
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