Há exatos 40 anos, falecia Atilio Ceferino García Pérez, descrito um ano antes pela Placar como “o maior atacante que o futebol uruguaio já viu”. García era argentino de Junín. De fato, ninguém fez tantos gols no país vizinho, nem por um dos gigantes de lá e do futebol mundial, o Nacional. Aliás, também é o maior artilheiro do Superclásico do Uruguai. Eis aqui o especial prometido há dez dias ao fim de outro, sobre Luis Artime (veja aqui), outro supergoleador do Nacional com origens em Junín.
Esteban Bekerman, jornalista e historiador do futebol argentino, já defendeu em texto reproduzido no Futebol Portenho (clique aqui) que os hermanos já tiveram três gerações de ouro no futebol, e que a atual ainda não faria jus a esse grupo. Uma das gerações teria sido a dos anos 30-40, ofuscada pela falta de Copas durante a II Guerra. Um dos argumentos de Bekerman é que até clubes pequenos tinham craques de seleção, diferentemente de hoje. A justificativa faz sentido considerando o fato de que García surgiu no tradicional mas modesto Platense, ausente da elite desde os anos 90.
Sumido, hoje o Tense é mais célebre por ser um raro clube marrom e por ter revelado Trezeguet (clique aqui). Atilio apareceu no time principal da equipe da cidade de Vicente López em 1933, aos 19 anos. O detalhe é que nem lá deixou muitas marcas: seu melhor ano foi em 1934, quando marcou dez vezes no campeonato. Passou ao Boca em 1937, só sendo usado na reta final, em 7 jogos. Marcou 6 gols. Ao fim daquele ano, o vice-presidente do Nacional visitou o Boca – os dois clubes têm amizade.
Na época, o Nacional vinha sofrendo com três títulos seguidos do Peñarol no campeonato uruguaio. O técnico tricolor, o escocês William Reaside, requisitara um goleador. O vice-presidente estaria interessado em Francisco Provvidente. Os auriazuis negaram vende-lo: tinha média ainda melhor de 39 gols em 31 jogos pelo clube (ironicamente, ele logo sairia, mas para o Flamengo). O Boca então ofertou outros jogadores, dentre os quais Atilio García. O vice do Nacional se chamava Atilio Narancio. Ao ouvir a sugestão, o dirigente pensou folcloricamente que “se ele se chama Atilio, deve ser bom”.
Foi só por esse acaso que o Uruguai e o clube ganharam seu maior artilheiro (Narancio parecia realmente levar a sério a coincidência: outro xará, Atilio Demaría, campeão com a Itália na Copa de 1934, foi outro reforço pontual…). O presidente do Boca o “consolou”: “veja, garoto… você vai a Montevidéu, teste-se e, em último caso, conheça a cidade e vá um pouco à praia, que lhe fará bem”. Em janeiro de 1938, sem conhecer ninguém no país vizinho, García chegou para seu teste de admissão. Seria contra os argentinos do Chacarita, exatamente quem mais sofrera com ele até então (5 gols). Mas seu primeiro tempo não encheu os olhos de um dirigente.
O novato, porém, foi defendido pelo capitão do time, algo de valor maior naqueles tempos: “não, doutor… vamos deixa-lo (jogar) toda a partida… veja que é um pibe que mete e tem uma força e uma coragem bárbaras… veja, se querem fazer uma substituição, saio eu, mas a este chacarero deixem-no… me parece que pode dar resultado”, disse o capitão Roberto Porta. No segundo tempo, García marcou seus dois primeiros gols pelo Nacional nos 3-2 e ficou: logo cancelaram a reserva de sua passagem de volta a Buenos Aires e lhe deram cem pesos para gastos iniciais em Montevidéu.
Porta, técnico do Uruguai na Copa 1974, revelaria que agiu motivado também a “agradecer aos argentinos. Tinha que compensar de algum modo todo o apoio que me haviam dado”, referindo-se à sua passagem pelo Independiente. Como o “sucessor” Artime, García não era elegante ou vistoso (e sim o colega Aníbal Ciocca, apelidado El Príncipe. Francescoli recebeu o mesmo apelido por lembrar Ciocca), mas, raçudo e sereno, não tirava o pé das divididas e tinha faro de gol: “Talvez não se constituía em um deleite para o público, mas com suas entradas agressivas e seus dotes de homem-gol, provocava a eclosão das tribunas”, disse Marcelino Pérez, ex-Nacional e campeão carioca com o Vasco em 1937.
Atilio não brecou o tetra do Peñarol, mas logo terminou como artilheiro de 1938, com 20 gols. Curiosamente, em dezembro de 1938 ele ainda voltou a vestir a camisa do Boca, em amistoso. A curiosidade é que a partida foi contra a seleção argentina mesmo, em empate em 1-1, após um ano no qual García marcou outros 32 gols além dos 20 assinalados no campeonato. Os 52 gols em uma única temporada seriam só o primeiro (e ainda válido) dos vários seus recordes de goleador no Uruguai, um prenúncio do que viria: em 1939, o Tricolor impediu um inédito penta do rival, sendo campeão.
O primeiro penta uruguaio seria justamente o Nacional, que emendou outros quatro títulos seguidos àquele. García foi artilheiro em todos, com 22 gols em 1939, 18 em 1940, 23 em 1941, 19 em 1942 e 18 em 1943. Aquele Quinquenio de Oro não se resumiu aos títulos. Naquele ciclo, o Peñarol chegou a perder dez clássicos seguidos, maior sequência de vitórias no encontro. Em um de 1940, García fez quatro, recorde em um só derbi. Todos de cabeça, uma de suas mais efetivas armas. Em 1941, fez dois em um 6-0, até hoje a maior goleada do clássico. Foi “o dia do 10-0”, pois antes os reservas da dupla se enfrentaram e os tricolores venceram por 4-0.
Já em 1942, García jogou após ter retirado furúnculos do rosto pela manhã e marcou de cabeça dois dos três gols com que o Nacional virou após estar perdendo por 2-0. O ano mais marcante foi 1941: o time foi campeão vencendo todos os seus jogos, algo único em um campeonato profissional de uma potência do futebol. Foram 32 jogos seguidos vencendo, recorde mundial. No período, o clube só perdeu dez vezes em 96 partidas – no clássico, foram 4 em 23. Após o Quinquenio, os torcedores fizeram uma coleta para comprarem a García a primeira casa própria dele, em pleno Parque Rodó (charmoso bairro arborizado que abriga hoje o Parlamento do Mercosul e a sede do Defensor), carregando-lhe até ela em caravana desde a sede.
O Sexenio não veio, mas El Bigote continuou artilheiro do campeonato em 1944 (21 gols), concluindo o recorde de sete artilharias seguidas. A oitava veio em 1946, com 21 gols. Ninguém foi tão artilheiro do campeonato quanto ele. Nem no Nacional: 464 gols em 435 jogos, mais de 1 por jogo. No clássico, também ninguém fez mais que os 34 dele. Detalhe – nenhum de pênalti. Atilio se sobressaiu não só em uma geração dourada da Argentina, mas também em uma do Uruguai: o goleiro do arquirrival que mais sofreu com o carrasco foi o titular campeão mundial de 1950, Roque Máspoli, que levou 14.
Tantos gols ecoaram do outro lado do Rio da Prata, e foram sofridos também; pequenos torneios entre argentinos e uruguaios eram comuns na época. Em um, em 1938, o Estudiantes perdeu por 2-1 com dois de García, um dos jogadores do Nacional que saíram ensanguentados de campo. As camisas cheias de sangue dele e colegas foram expostas pela Avenida 18 de Julio, a principal de Montevidéu. Outra das melhores anedotas foi em um 2-2 em 1939 contra o seu ex-Boca, que estava vencendo. Nas palavras do escritor Eduardo Galeano, foi assim:
“Recebeu a bola, enfrentou uma selva de pernas, abriu espaço pela direita e engoliu o campo ‘comendo’ rivais. Atilio estava acostumado a picaretadas. Lhe davam com tudo, suas pernas eram um mapa de cicatrizes. Naquela tarde, a caminho do gol, recebeu trancazos duros de Angeletti e Suárez, e ele se deu ao luxo de evita-los duas vezes. Valussi lhe puxou a camisa, o agarrou por um braço e lhe deu um chute e o corpulento Ibáñez se plantou à frente em plena corrida, mas a bola fazia parte do corpo de Atilio e ninguém podia parar esse redemoinho que derrubava jogadores como se fossem bonecos de pano, até que por fim Atilio se desprendeu da bola e seu disparo sacudiu a rede. O ar cheirava a pólvora. Os jogadores do Boca cercaram o árbitro: lhe exigiam que anulasse o gol pelas faltas que ELES haviam cometido.”
Apesar da curta distância, porém, a seleção argentina não usava quem jogasse fora do país, política que só seria alterada em 1972. García passou a ser sondado a defender o Uruguai. Infelizmente, a naturalização veio um pouco tarde, para a Copa América 1945, mas ele deixou sua marca: 5 jogos e 5 gols. Além também da idade já elevada, outra razão o impediu de defender a Celeste mais vezes: “fomos por trem desde Retiro à Mendoza e em cada estação os provincianos, que nesse sentido são piores que os da capital, diziam: ‘aí está o traidor, o vende-patria’. Isso influiu muito no seu ânimo”, declarou Roberto Porta sobre as escalas argentinas rumo ao Chile, onde realizara-se aquela Copa América.
García foi campeão uruguaio ainda em 1946, 1948 e, quando já não era titular, em 1950. Deixou o Nacional no mesmo 1950, onde, mesmo reserva, fez 6 gols em 10 jogos, mantendo sua boa média até no ocaso da carreira. No Uruguai, só um recorde de gols seu foi quebrado: os 208 (em 210 jogos) no campeonato nacional foram superados pelos 230 de Fernando Morena, implacável atacante do Peñarol nos anos 70 (passou no fim da carreira por Boca e Flamengo, sem sucesso), sete vezes artilheiro do torneio e segundo maior goleador da Libertadores. Roberto Figueroa, campeão olímpico em 1928, minimizou: “Há que ter em conta que (Atilio) jogou contra rivais de tremenda hierarquia. Jogou contra craques. Rio quando fazem comparações. Morena não tem nada que fazer ao lado de Atilio”.
Nascido em 26 de agosto de 1914, ele faleceu em 12 de dezembro de 1973 em Montevidéu. Foi velado na sede do Tricolor, que era o mais vitorioso no clássico com o Peñarol e também era o clube uruguaio mais vezes campeão nacional e internacionalmente quando Atilio se aposentou. Em 11 de dezembro de 1988, praticamente quinze anos depois, de sua morte, foi homenageado com o último e dramático título mundial de um clube uruguaio, sobre o PSV Eindhoven de Romário. Contamos ontem sobre: clique aqui. E clique aqui para conhecer outros argentinos de sucesso no Nacional.
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