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Atilio Demaría, um esquecido recordista das Copas: campeão e vice por países diferentes

Com a camisa da Inter de Milão, clube com o qual mais se identificou: entre os maiores goleadores do clássico com o Milan

Luis Monti costuma ser sempre relembrado como único jogador a disputar finais de Copa do Mundo por países diferentes, perdendo pela Argentina natal a de 1930 e vencendo pela Itália de adoção a de 1934. O recorde é mesmo exclusivo desse volante no tocante às finais do torneio, mas ainda houve outro jogador com quem compartilha na competição a marca de campeão e vice por seleções distintas: Atilio José Demaría o acompanhou exatamente nas mesmas edições, embora só tenha figurado em uma partida de cada uma delas e nunca nas decisões – apesar da habilidade notabilizada pelo bom drible e precisão nos lançamentos, ainda que fosse mais de entregar a bola com passes curtos. Um dos maiores artilheiros da Internazionale no clássico com o Milan merece ser relembrado especialmente hoje, nos 30 anos de seu falecimento.

Era filho de dois italianos: o pai era Antonio De Maria, piemontês de Crescentino que emigrou aos 18 anos de idade, em 1895, para tornar-se operário em Lomas de Zamora, ao sul da Grande Buenos Aires; e a mãe era Albina Meola (ou Meda, segundo outras fontes), sete anos mais moça que o marido. Quando Atilio nasceu, o casal já morava no número 333 da rua Castillo, em uma zona chamada Villa Alvear, situada entre os bairros de Almagro, Palermo, Caballito e Chacarita, próximo da fina zona norte da capital federal. Mas não tardaram a se instalar em Haedo, cidade ao oeste de Grande Buenos Aires onde Atilio cresceria e voltaria a radicar-se após parar definitivamente de jogar, nela falecendo naquele 11 de novembro de 1990. Quase vizinha, a cidade de Ciudadela abrigava o Ciudadela Juniors, com Demaría ingressando nos juvenis desse clube em 1925. Outro time de Ciudadela era o Estudiantil Porteño, já com relativa solidez na elite argentina.

Demaría integrou uma camada histórica do Estudiantil Porteño, fomentada pelo olheiro Enrique Mariani, antigo reserva do River campeão de 1908 da segunda divisão. Com os principais clubes argentinos já se preocupando ainda no amadorismo em formar diversas categorias de base, com equipes sub-20, sub-19, sub-18 e sub-17 (havendo campeonatos argentinos próprios para cada uma delas), Mariani foi além ao criar a equipe sub-16. Foi primeiramente nela que Demaría chegou ao clube. Em 1927, o Estudiantil venceu o campeonato sub-17, com um quinteto ofensivo que gradualmente chegaria por completo ao time principal: Juan Pedevilla, Pedro Martínez, Josué De Marco, Demaría e José Morra. Nem mesmo o célebre quinteto ofensivo de La Máquina do River dos anos 40 conseguiu algo assim – o miolo formado por José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera e Ángel Labruna ascendeu desde a equipe sub-17, mas os ponteiros Juan Carlos Muñoz e Félix Loustau já começaram em degraus superiores.

No Estudiantil Porteño de 1927, quando firmou-se na titularidade do clube de Ciudadela. Primeiro em pé, seu colega Abel Picabéa foi técnico no Santos, Palmeiras e Vasco, dentre diversos outros times brasileiros

Inicialmente deslocado para a ponta-esquerda, onde seus dribles seriam mais úteis, ele já havia àquela altura estreado na equipe principal; figurou em três partidas do campeonato de 1926. Ele, que preferia jogar na meia-esquerda, conquistou esse posto após fugir da ponta em um jogo juvenil contra o River e marcar cinco gols vindo pelo meio. Em 1927, já se alternava mais vezes entre as várias categorias juvenis e o time adulto (chegando a ocasionalmente disputar duas partidas inteiras em cada dia do fim de semana, uma de manhã e outra à tarde), pelo qual já registrou 27 jogos e oito gols. Em 1928, foram 35 partidas e nove gols pela equipe principal. Se o time adulto ainda falhava em ir longe, os elencos de base eram dos mais vitoriosos, com conquistas seguidas nos torneios sub-19, sub-18 e sub-17. Assim, em 5 de novembro de 1928 o jovem estreou pela seleção, ainda que improvisado na meia-direita. Foi em amistoso não-oficial de 1-1 contra o Boca.

Em 1929, Demaría esteve um jogo pela seleção B contra o America-RJ em 9 de março, com o campeonato argentino de 1928 ainda em andamento. Em 22 de junho, ele e seu Estudiantil Porteño caíram por honrosos 3-2 em amistoso contra o Chelsea, que visitava a América do Sul. No mês seguinte, um primeiro intercâmbio com o futebol italiano: quem visitava agora eram os dois últimos campeões da Velha Bota – Torino e Bologna, que requisitou cinco jogadores do Estudiantil para duelo com o Independiente em 31 de agosto. O campeonato argentino próprio de 1929 ocupou basicamente o segundo semestre e nele a equipe de Ciudadela fez a melhor campanha de sua história até então; foi um quarto lugar do grupo de 17 times, ainda que pelo regulamento só os líderes das duas chaves seguiriam adiante, para travarem a grande final. Demaría marcou nove gols em quatorze jogos. A taça, levantada apenas em fevereiro de 1930, ficaria com o Gimnasia LP, em seu único título argentino até hoje.

Apesar da pouca assiduidade na seleção, Demaría estava credenciado a figurar na convocação à Copa do Mundo. No Mundial, contudo, calhou de concorrer pela vaga de meia-esquerda justamente com o capitão da Albiceleste, Manuel Ferreira, e só foi usado uma única vez: Ferreira precisou voltar rapidamente a Buenos Aires para fazer uma prova de seu curso universitário (!) e seu reserva esteve nos 6-3 sobre o México, o segundo jogo da campanha. Humilde, o reserva reconheceu que não fez uma boa partida, já em depoimento dado em 30 de novembro de 1949 à revista La Cancha. Na mesma matéria, revelou que ainda em 1930 recebeu uma oferta generosa do Genoa, então o mais vencedor clube italiano, e que na mesma janela levara o próprio artilheiro do Mundial, Guillermo Stábile. Apesar do sentido desfalque de forças europeias na Copa, a qualidade do futebol argentino já era reconhecida na Itália seja pelo desempenho na Europa na campanha de prata nas Olimpíadas de 1928 ou pelos vinte anos que já havia de emprego de argentinos na própria seleção italiana.

Argentina antes de seu segundo jogo na Copa de 1930, contra o México, única partida de Demaría na campanha: o técnico Olázar, Peucelle, Orlandini, Zumelzú, Paternoster, Spadaro e Della Torre (que jogaria no America-RJ!); Varallo, Stábile, Bosio, Demaría e Chividini

Demaría esteve tentado a fechar com o Genoa, mas para ele pesava mais a palavra que já havia dado aos dirigentes do Gimnasia: ainda como mais recente campeão argentino, o time de La Plata se presenteou com uma excursão à Europa, na qual contou com diversos reforços emprestados pontualmente por outros clubes. A viagem ficou marcada por fazer o hoje sofrido Lobo ser a primeira equipe estrangeira a vencer em solo espanhol tanto o Real Madrid como o Barcelona. Demaría forneceu uma assistência para abrir o placar nos 3-2 contra os madrilenhos em Chamartín e forçou o rebote que propiciou o empate prévio à virada de 2-1 sobre os catalães em Les Corts. O meia deixaria gols no 1-0 sobre o Benfica e na abertura dos 3-1 sobre um Sparta Praga que era potência europeia, gerando a manchete “tango argentino” na imprensa tcheca; e, embora não tenha marcado gols no 2-2 contra o Napoli, foi qualificado pelo jornal romano Il Littoriale como um “autêntico fora de série”.

Demaría somou oito gols na excursão (o último, no 2-2 com um combinado Vasco-America no Rio de Janeiro, já no regresso), sendo o terceiro máximo artilheiro dela, abaixo dos onze de José Minella e dos dez de Ismael Morgada. A turnê rendeu ainda um primeiro contato direto com a Internazionale (ou Ambrosiana, como o clube chamava-se na época) e seu astro Giuseppe Meazza, contra quem os platenses buscaram um 3-3 após derrota parcial de 3-1. Ainda segundo a reportagem de 1949 do La Cancha, um primeiro clube italiano a lhe sondar após a excursão foi o Livorno: “era também uma boa oferta, mas como a do Genoa havia sido melhor, pedi mais. Consequência: tive de esperar que o emissário telegrafasse ao clube, e que lhe chegasse a resposta. Total, nada. Não fizemos acordo”. A volta do Gimnasia à Argentina se deu em um momento de ebulição; o time esteve entre os dezoito rebeldes que naquele 1931, descontentes com a divisão igualitária de renda com clubes de duelos pouco atrativos financeiramente, romperam com a federação já com o torneio em andamento.

Os dezoito criaram então uma liga própria que, atraindo maior atenção de público e mídia, também escancarou de vez um profissionalismo já praticado sob vista grossa desde os anos 20. O Estudiantil Porteño foi descartado pelo movimento. Nisso, o San Lorenzo fez uma oferta ao meia, que recusou “porque não estava convencido totalmente de que teria de continuar minha carreira aqui. Primeiro, porque me havia forjado sonhos, e segundo por uma razão de amor próprio. Tinha que jogar na Itália!”. Deixado de fora da liga rebelde, o Estudiantil remanesceu no desfalcado torneio oficial, que recomeçou do zero, anulando-se as partidas prévias. Demaría entrou em campo nas duas primeiras rodadas desse reinício, em 28 de junho (vitória fora de casa por 2-1 sobre o Colegiales) e em 5 de julho (4-3 sobre o Barracas Central). Nesse contexto, ele disputou mais dois jogos pela Argentina, cuja seleção reconhecida pela FIFA se resumiria aos amadores até a federação oficial se render aos fatos e deixar-se absorver pela profissional em 1935. Ambos foram contra o Paraguai: 1-1 em 4 de julho e 3-1 em 9 de julho, em Buenos Aires, pelo troféu binacional Copa Chevallier Boutell.

No Gimnasia LP em plena neve alemã, na celebrada excursão de 1931. O goleiro Bottaso também esteve na Copa de 1930 e Arrillaga passaria pelo Fluminense

O Gimnasia então reapareceu, oferecendo oito mil pesos e salário de trezentos para que Demaría voltasse a La Plata. Inicialmente resignado com a ausência de novas ofertas italianas, Demaría assinou contrato no sábado de 11 de julho para no dia seguinte já estar em campo no 2-2 contra o San Lorenzo pela oitava rodada da liga profissional. Na volta para casa naquele domingo, deparou-se com representantes da Ambrosiana-Inter, detentora do título italiano de 1930-31. Levaram 40 mil liras para acelerar o trâmite entre compra do passe e despesas de deslocamento. Na segunda-feira seguinte, o jogador foi à sede alviazul devolver os oito mil pesos e expor seus anseios. Em gesto admirável, o presidente gimnasista Arbitti aceitou de bom grado rescindir o contrato recém-assinado com o astro. “Então telefonei desde La Plata e disse à minha namorada que preparasse as coisas para nosso casamento”. Com isso, apesar da boa imagem deixada no Bosque em função da excursão europeia, oficialmente o meia só tem um único jogo contado nas estatísticas triperas.

Então veio um susto: na escala naval em Montevidéu, ninguém menos que Héctor Scarone subiu ao barco. Era o grande craque uruguaio dos anos 20 (presente no ciclo do bi olímpico com a Copa de 1930 pela Celeste), já tendo passado pelo Barcelona. E Demaría então descobriu que aquele astro havia sido igualmente importado pela Inter, ficando nervoso se conseguiria ter algum lugar no novo clube. Scarone havia sido contratado por 15 mil liras e o argentino, por 20 mil (para receber ainda 2 mil de salário mensal), em informação dada pelo La Cancha em edição de 18 de fevereiro de 1933. O que explicaria essa discrepância seria a sensação de escassez advinda do profissionalismo instalado em 1931 na Argentina, e que ainda tardaria mais um ano para se escancarar no Uruguai.

É o que sustentou Zachary Bigalke em sua dissertação de mestrado para a Universidade do Oregon (“If they can die for Italy, they can play for Italy!“), que contextualizou duas notas de agosto de 1931 de Il Littoriale: uma destacando que nem Scarone e nem Demaría pareciam ter muita fluência em italiano, embora fossem ambos filhos de imigrantes; e outra destacando que o profissionalismo argentino já encarecia novas contratações portenhas, noticiando que o racinguista Vicente Del Giúdice até encerrara suas negociações com clubes italianos ao ficar satisfeito com o pagamento que receberia em Avellaneda. Se Scarone estava paradoxalmente mais barato, a chegada conjunta de ambos à Itália não deixou dúvidas de que o uruguaio era o reforço mais esperado pelos milaneses. “Apesar disso, tive sorte. Meazza, desde o primeiro momento, simpatizou comigo. Me animou e ajudou o quanto pôde”, explicou Demaría naquela nota de 1949.

Jornais de Viena e Praga destacando o Gimnasia e Demaría na excursão platense de 1931: “tango argentino”, noticiaram os tchecos sobre o baile de 3-1 aberto pelo meia sobre o poderoso Sparta

Ainda naquela nota, também detalhou que, no amistoso que testaria a estreia do argentino, Meazza logo propôs-lhe uma troca de passes em velocidade até que o chute a gol coubesse a quem estivesse melhor posicionado. Na segunda vez que seguiram esse plano, Demaría marcou seu primeiro gol como nerazzurro, “forte e alto”, e nos primeiros dez minutos já havia marcado também uma segunda vez. A segunda partida amistosa, em 6 de setembro, foi contra o Real Madrid. Para tanto, novos conselhos de Meazza: “durante um dos treinos, me explicou como tinha que fazer para assinalar gols em [Ricardo] Zamora. E como talvez notasse em mim algo de incredulidade, me tomou por um braço e me conduziu até um extremo da área. ‘O lugar é esse’, me indicou. ‘É preciso chutar de lado… mas não te preocupes, eu o farei primeiro. Veja como faço eu e depois faça você'”. Guarnecidos por aquele lendário Zamora, os espanhóis venceram dentro da Arena Cívica de Milão por 3-2, mas de fato os gols da casa saíram primeiro com Meazza e depois com Demaría.

Na primeira rodada da Serie A de 1931-32, em 20 de setembro, o argentino já estava entre os titulares da Inter. Inclusive, não se inibiu em um primeiro duelo com o time mais argentino da Itália, uma Juventus que, com diversos hermanos, rumaria a um inédito pentacampeonato – fez um dos gols interistas de honra em derrota de 6-2 no que ainda não era um Derby d’Italia, rivalidade fomentada só a partir dos anos 60. Sua nova equipe ficou apenas em sexto enquanto o Estudiantil Porteño, sem o astro no restante do torneio amador de 1931, seria justamente o seu campeão, embora não escapasse da atrofia tão comum a outros times deixados de fora da liga rebelde (ainda existe como clube social, mas se desvincularia da AFA em 1939, abandonando o futebol competitivo). Mas os oito gols em 32 jogos do argentino pareceram bem promissores em Milão: para a temporada seguinte, os cartolas lhe mimaram contratando o irmão Félix Demaría, que viraria o “Demaria II”. O caçula não triunfaria, em contraste com o sucesso de Atilio – ou melhor, de Attilio, grafia italianizada que seu nome adotaria com a dupla cidadania enquanto a do sobrenome perdia o acento.

Após doze meses regulamentares e já tendo até um filho nascido em solo italiano, Ezio, “Demaria I” estava apto para estrear pela própria seleção italiana. O jogo seria em Milão e para jogar ele suportou até a dor de um tornozelo inflamado, tamanha que precisou do auxílio da esposa para descer as escadas de casa e entrar no carro. A Azzurra bateu por 4-2 sobre a Hungria em 27 de novembro de 1932, partida que também marcou a estreia de Luis Monti pela Itália, inclusive. Mas Demaría só faria uma segunda partida já em plena Copa do Mundo de 1934. Foi convocado credenciado pelas boas cifras: na temporada 1932-33 foram 30 jogos e treze gols, incluindo dois em 5-4 no clássico com o Milan no primeiro turno e outro em 3-1 de virada no segundo; na de 1933-34 foram 34 jogos e doze gols – pacote que incluiu outro no Milan, batido de virada por 2-1, embora o que entrasse para a história fosse o 9-0 no Casale com um hat trick dele e outro do parceiro Meazza; só em 2017 é que (com os argentinos Banega e Icardi) o clube comemoraria duas tripletas juntas, no 7-1 sobre a Atalanta.

Ambrosiana-Inter em 1933: Félix Demaría, Paolo Agosteo, Alfredo Pitto, Vinicio Viani, Carlo Ceresoli, Pietro Serantoni, Giuseppe Meazza, Atilio Demaría, Virgilio Levratto, Armando Castellazzi e Luigi Allemandi. Demaría e Allemandi venceram a Copa de 1934, Ceresoli e Serantoni ganharam a de 1938 e Meazza, ambas

Naquelas duas temporadas, a Inter foi bivice da poderosa Juventus e em 1933 o argentino brilhou ainda em outra campanha vice-campeã, a da Copa Mitropa, o principal torneio clubístico europeu de então. Em reencontro com o forte Sparta Praga do atacante Oldřich Nejedlý, futuro artilheiro e vice com seu país no Mundial de 1934, anotou quatro gols no placar agregado de 6-3 nas semifinais. Para a Copa do Mundo, a Itália tratou de fortalecer-se com os melhores estrangeiros de sangue italiano à disposição, chamando o brasileiro “Filó” Guarisi e os hermanos Monti, Demaría, Raimundo Orsi (ponta da poderosa Juventus) e Enrique Guaita (artilheiro na Roma), ao passo que a Albiceleste ainda se limitava a chamar apenas amadores – enviando um elenco enganoso da real qualidade disponível nos campos argentinos. É que os clubes profissionais, ainda sem chancela oficial da FIFA, temiam com isso perder de graça destaques que fossem eventualmente seduzidos para permanecer na Itália e não liberaram seus astros.

Dentre os amadores que foram à Copa do Mundo, houve de fato um do Estudiantil Porteño que acabou logo contratado pela Inter também: Alfredo Devincenzi, autor de um dos gols sobre a Suécia. “Quando fiquei sabendo, me deu um nó na garganta. A Argentina estaria representada por garotos sem nenhuma experiência. Então me aproximei de Pozzo [treinador da Itália] e lhe disse claramente que eu não estava disposto a jogar contra meus compatriotas. Que se chegassem à final, não contasse comigo”, afirmaria Demaría na reportagem de 1949. A Argentina, que levou ainda outro ex-colega de Estudiantil Porteño, Juan Pedevilla, fez sua pior Copa, caindo logo naquele duelo inicial com os suecos. Mas Demaría, novamente, só foi usado uma vez numa Copa: foi no jogo-desempate contra a Espanha, pelas quartas-de-final, na vaga que foi de Giovanni Ferrari (o único outro além de Meazza a ser titular em 1934 e 1938) no restante do torneio. O duelo anterior, um extenuante empate com prorrogação, havia sido apenas 24 horas antes e com isso o técnico Vittorio Pozzo precisou usar uma equipe mista.

Na temporada pós-Copa, Demaría anotou dez gols em trinta jogos na Serie A; quatro saíram em uma só partida, 6-1 sobre o Sampierdarenese (um dos times que formariam a Sampdoria em 1946), outro veio em vitória sobre o Milan por 2-0. Os milaneses foram trivices, amargando, tal como na temporada 1933-34, uma derrota na rodada final que encerrou o sonho do scudetto. O título em 1935 para Demaría viria novamente com a seleção, vencedora da Copa Internacional, uma precursora da Eurocopa. Ele esteve em três jogos da Azzurra naquele ano, em campanha contra Áustria, Tchecoslováquia e Hungria. Em paralelo, a convocação ao Exército de Mussolini na invasão à Abissínia (atual Etiópia) afugentou estrelas argentinas, incluindo recém-campeões mundiais, e mesmo europeias. Demaría, por seu lado, aceitou renovar por mais uma temporada, disputando 29 partidas da Serie A de 1935-36 e deixando sete gols (realizando ainda três jogos pela Itália em 1936, em amistosos contra Suíça, Áustria e Hungria, com dois gols marcados). Semifinalista da Copa Mitropa, a Inter ficou só em quarto na Serie A, e ele enfim voltou à Argentina, sob versões discrepantes.

A Itália com quatro argentinos para o jogo-desempate contra a Espanha, única partida de Demaría na Copa de 1934: o técnico Pozzo, Combi, Ferraris IV, Allemandi, Monti e Guaita; Bertolini, Orsi, Monzeglio, Meazza, Borel e Demaría

A retrospectiva de sua carreira ao La Cancha em 1949 menciona que ele, tendo apalavrado o retorno à Argentina com os cartolas interistas, terminou ludibriado ao ser retido no porto e separado de sua família, que seguiu viagem naval – levando-o ao extremo de pegar às escondidas um voo a Berlim e de lá cruzar o Atlântico em um zepelim. Já a dissertação de mestrado no Oregon sustenta que Demaría não teria voltado como desertor e sim exatamente para evitar isto, pois seu serviço militar obrigatório no exército argentino era uma pendência. Fato é que sua estadia no Independiente não foi exitosa: só atuou em três jogos oficiais, estreando em 30 de agosto de 1936 contra Platense, deixando sobre o San Lorenzo seu único gol pelo Rojo e por fim pegando o Vélez. Insatisfeito consigo próprio, ele mesmo teria pedido para jogar pela equipe B, com a qual fez outras cinco partidas, com dois gols, no campeonato da categoria. O La Cancha de 1949, porém, afirma que outra motivação para não fazer mais jogos teria sido uma reclamação formal da Inter perante a FIFA causar receio em Avellaneda em possível perda de pontos nos tribunais.

O Estudiantil Porteño não teve esse receio e acertou o regresso do antigo ídolo para 1937, o ano em que os times deixados de fora da liga rebelde de 1931 foram admitidos no profissionalismo, inscritos na segunda divisão. Demaría reencontrou em Ciudadela velhos colegas em Martínez, Devincenzi (regressado da Inter também), Pedevilla, Juan Betinotti e outros. Embora o campeão e único time a subir viesse a ser o Almagro, Demaría foi eleito o principal destaque da segundona; foram nove gols em dezesseis jogos, com o campeão mundial terminando inclusive por ser convidado no início de 1938 para testes no poderoso Nacional. Figurou no elenco que, em ríspidas partidas de verão, faturou o Torneio Noturno, um dos antecessores da Libertadores. Mas ainda que o argentino só aparecesse na campanha para os duelos contra Boca e River, ambos já após a taça se garantir (os tricolores inclusive perderam ambos), sua contratação ficaria insustentável diante da intransigência da Inter em liberar-lhe o passe. Curiosamente, outro reforço dos tricolores era um Atilio também, argentino que viraria o maior artilheiro do Nacional, do futebol uruguaio e do Superclásico de lá.

De um lado, aquela nota de 1949 de La Cancha registrou que os italianos souberam vencer Demaría pelo cansaço, mas nela ele também assumiria que se arrependia de ter perdido a chance de vencer a Copa de 1938 pela Azzurra. Ele enfim voltou à Itália para a temporada de 1938-39, na contramão de compatriotas que buscavam fugir do belicoso clima europeu. Sem retaliações, a Inter lhe tornou até o capitão e cobrador de pênaltis do elenco, enquanto a seleção promoveu a reestreia do argentino já em 20 de novembro de 1938, em 2-0 sobre a Suíça. Em dezembro, ele esteve no 1-0 sobre a França. Trégua premiada: na temporada 1938-39, embora só contasse três gols (um deles, em 5-0 na Juventus) em 23 jogos na campanha de bronze na Serie A, Demaría conseguiu seu primeiro título no calcio, erguendo como titular a primeira Copa da Itália nerazzurra.

A mancha política: Combi, Meazza, os argentinos Orsi, Guaita e Monti, Bertolini, Monzeglio, o brasileiro Filó (de macacão) e Demaría (idem) fazem a saudação fascista na Copa de 1934. À direita, o argentino com uniforme militar italiano na Segunda Guerra

Com a Segunda Guerra Mundial já estourada, o futebol italiano seguiu normalmente enquanto o conflito não se agravava na Itália. E nesse contexto o time de Milão ganhou a Serie A de 1939-40, já com o argentino aparecendo melhor nas estatísticas: doze gols (incluindo um em 3-1 no Milan) em 29 jogos. Foi também ao longo da temporada do scudetto que ele fez suas últimas partidas pela Itália, em amistosos contra a neutra Suíça e as “amigas” Alemanha e Romênia – com um gol, de pênalti, na derrota de 5-2 em Berlim para a seleção da casa, reforçada desde o Anschluss pela talentosa geração austríaca (três gols foram de Franz Binder, do futebol vienense). Em depoimento que daria já em 1944 ao La Cancha, o jornalista Pedro Luis Rossi diria que, ao ver em 1940 o polivalente craque são-paulino Antonio Sastre desempenhar-se no Independiente, recordava-se do que já havia visto de Demaría na Itália. Destacou inclusive uma tarde contra a Lazio onde os três gols de Meazza surgiram todos de assistências do hermano. Mas mesmo com as batalhas ainda distantes de Milão, o argentino contextualizou ao La Cancha em 1949 que era impossível viver com normalidade.

A própria idade elevada e a convocação em 1941 às forças armadas também foram gradualmente diminuindo os números de Demaría: na temporada de vice para o Bologna em 1940-41, foram seis gols em 29 jogos, diminuídos respectivamente para três e 22 no medíocre 12º lugar de 1941-42 – quando, em paralelo, a loja que empreendia em Milão virou ruínas após um bombardeio. A ironia é que Demaría estava alistado ao corpo militar italiano dos bombeiros, voltados exatamente no socorro contra incêndios decorrentes das bombas. Se os ítalo-forasteiros, segundo ele, eram protegidos de serem alocados na linha de frente, ele teria outro episódio onde safou-se ao acaso de uma bomba, já durante um turno noturno em que fazia guarda: “à meia-noite, quando sozinho e deixando vagar os pensamentos me encontrava abstraído, me sobressaltei ao escutar a estridência das sirenes de alarme. E me assustei, confesso. No mesmo instante, começaram a cair as bombas. Estrondo, fumaça, terra, destruição, um verdadeiro inferno! Não sei quanto tempo durou aquilo. Para mim, mais de um século…”.

O depoimento prosseguiu com essas palavras: “ao fim, quando novamente recobrei a calma, observei que a única coisa que ficava em pé era o muro de trás ao qual me havia defendido, um verdadeiro milagre! Apesar de tudo, eu considerava aquilo um trabalho provisório. Confiava que as coisas não haveriam de prolongar-se muito mais. Não sei por que, mas confiava”. A temporada do 4º lugar de 1942-43 foi a última da Serie A durante a Guerra. E a última do argentino na Inter; ele só atuou em dez partidas, marcando duas vezes. O regista despediu-se em derrota de 2-1 para o Vincenza em 11 de abril de 1943. Ao todo, foram 86 gols em 295 partidas oficiais contabilizadas no arquivo estatístico interista

No Independiente de 1936: Juan Corazzo (avô de Diego Forlán), Fermín Lecea, Fernando Bello, Sabino Coletta (que jogaria no Flamengo), Luis Franzolini e Mario Catuogno; Raimundo Orsi (colega de Demaría na Copa de 1934 e outro futuro flamenguista), Luis Mata, Arsenio Erico, Demaría e José Zorrilla

Ele segue como o argentino que mais marcou gols no clássico com o Milan: foram seis no Derby della Madonnina e em seu tempo chegou inclusive a ser o terceiro maior goleador geral do duelo, abaixo de Meazza e do belga Louis Van Hege, embora hoje divida o sétimo lugar nesse ranking com diversos outros – incluindo o também argentino Diego Milito e Sandro Mazzola, outros ícones da torcida nerazzurra.

A suspensão do campeonato não significou, contudo, que o futebol cessasse na prática: torneios de guerra, embora não reconhecidos modernamente pela federação, mantiveram os clubes em atividade na época. Nisso a Inter inclusive deu passe livre para Demaría fechar com o Novara em 1944. Com o fim do conflito no ano seguinte, ele já estava à beira dos 36 anos, considerando-se com as chuteiras penduradas. Quando o Legnano contratou-o para a disputa da terceira divisão italiana (em negócio intermediado por outro argentino, Hugo Lamanna, ex-Vasco, Independiente e Atalanta), foi para ser treinador. Foi uma surra de 7-0 na estreia e a percepção de que não havia um líder em campo que lhe fizeram oferecer-se a ser jogador-treinador. Na nova função, começou empatando com o Como antes de engatar uma invencibilidade de treze partidas seguidas na Serie B-C. A arrancada levou o clube a um quarto lugar, a dois pontos do suposto acesso. Quando a Serie B foi retomada oficialmente na temporada 1946-47, aquela campanha, ainda válida por um torneio de guerra, terminou suficiente para a equipe ser alocada administrativamente na segundona.

Demaría seguiria na Serie B já como jogador do Cosenza, registrando 31 jogos e seis gols na temporada 1946-47, na luta contra a queda; e respectivamente treze e um na seguinte, onde nem o 10º lugar entre dezoito times impediu o descenso. Ele não se demorou muito mais na Itália pós-guerra; seu retorno à terra natal após praticamente 17 anos fora foi bastante destacada e ele foi procurado a comentar sobre o sistema, revolução tática então em voga no calcio: “é o triunfo da disciplina, do método e de uma tática. Zagueiros marcando os pontas e o volante no centro, recuado. Os laterais, adiante, contra os meias-armadores. O quadro atacante, assim, com sete homens. É assombroso como o Torino o pratica, onde ninguém se move um metro a mais de onde deve estar. Vi jogar vários quadros argentinos ultimamente. Tomemos o exemplo do River, para falar de campeão com campeão. Minha opinião é de que o Torino pode ganhar-lhe. O River lhe poderia fazer gol unicamente pela velocidade fantástica de Di Stéfano. Aqui, as táticas são menos rigorosas, assim como é menos rigoroso o controle do jogador durante a semana”.

Como técnico, Demaría (de camisa branca) não teve estrela: seu Rosario Central foi rebaixado em 1950. E ele caiu também em 1951, com o Gimnasia

Infelizmente, o tira-teima entre River e Toro ficaria para jogos beneficentes após a tragédia de Superga. E, apesar do aparente conhecimento tático, Demaría não chegou a desenvolver carreira de treinador digna de nota; foi o comandante do Rosario Central no grosso da temporada do segundo rebaixamento canalla, em 1950; esteve à frente do Gimnasia como um bombeiro no rebaixamento tripero em 1951, sucedendo o demitido Roberto Scarone; e no Almirante Brown em outra luta contra a queda, na segundona argentina de 1973. Também trabalhou nas escolinhas do Estudiantil Porteño.

Naquele novembro de 1990, já era um dos últimos remanescentes vivos da seleção argentina de 1930 e da italiana de 1934: os ex-colegas Carlos Peucelle e Mario Pizziolo partiram ambos ainda em abril e o artilheiro Angelo Schiavio, em setembro. Aquele ano ainda perderia Rodolfo Orlandini na véspera de natal antes que Mario Evaristo, Guido Masetti, Felice Borel (todos falecidos em 1993) e por fim Francisco Varallo (em 2010, com cem anos de idade) se tornassem os sobreviventes finais.

Dos demais colegas argentinos de Azzurra, seu coração era o último que ainda pôde bater de modo dividido naquelas tensas semifinais da Copa do Mundo em Nápoles. Em 2014, quando os especialistas da Calciopédia elegeram os maiores argentinos do futebol italiano, Demaría foi considerado o 24º do ranking, à frente de nomes exitosos recentes por lá mais famosos, a exemplo de Ramón Díaz, Julio Cruz, Claudio López, Carlos Tévez, Gonzalo Higuaín e Nicolás Burdisso, dentre outros.

Muito do material que serviu de fonte a essa matéria foi fornecido pela Entre Tiempos, única livraria de futebol em Buenos Aires, tocada pelo historiador Esteban Bekerman. Conheça-a!

Demaría aparece nesses registros dos anos 40 com os símbolos da Itália bi mundial: Meazza (antes do primeiro clássico de Milão que o amigo disputou pelo rival Milan) e Silvio Piola, da Lazio
Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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