No mínimo insólito, passando por comovente e assustador. Assim foi o recente depoimento de Matías Almeyda, que configurou seu corpo e alma como prisioneiros da depressão. Paradoxal é o fato de que, segundo o “Pelado”, a doença fora detectada por volta de seus 26 anos, justamente no momento que o esporte o premiava com todos os desejos sonhados e projetados ao esporte por um jogador de futebol. Depois disso, outras “mortes” ocorreram, como o fim da carreira e a demissão do cargo de técnico de seu clube do coração. Mas elas são três.
Alguns classificaram como chocante e, de certa forma, não estão errados. Trata-se da declaração de Almeyda sobre sua depressão. Não é comum que uma pessoa famosa confesse ser presa indefesa de uma tão leonina debilidade. Para um futebolista, em geral, associamos a iminência da doença ao período que se inicia após o fim de sua carreira profissional. Momento a que alguns chamam de “a primeira morte”. Inquietam mais os dados do que a confissão que Almeyda traduz. Eles são muitos.
Segundo o atual treinador do Banfield, sua doença fora detectada em meados de seus 26 anos. Isto é simbólico e prenhe de significados e lições acerca do que pode ser para alguns o mundo do futebol. Ora vejamos. Na ocasião, o Pelado era tido como titular absoluto da Lazio e fazia parte do último grande time que a esquadra italiana conseguiu de lá para cá. Então, pulou de um time que entrava em decadência para outro em ascensão, o Parma, que vivia o melhor momento de sua história e onde se tornou um verdadeiro ídolo dos Crociati.
Contudo, o sucesso profissional convivia com o exílio em outro país. Certo que em tal exílio o jogador era acompanhado por sua esposa e filhas. Mas não tinha a seu lado os campos verdes e as ruas largas e antigas de Azul, sua cidade natal. Não tinha ecos de sua infância no exílio; não tinha os amigos e “inimigos” do outro lado da rua, que o viram crescer e chegar ao estrelato. Almeyda jamais se desligou deles e, se podia abandonar Buenos Aires, no entardecer da noite para buscá-los, nos momentos de nostalgia, jamais poderia fazê-lo nos tempos de exílio na Bota. Pouco importava a beleza dos campos e alpes de Itália. Seus olhos não as viam, pois suas retinas congelaram em sua memória somente as belezas de Azul.
A lição evidente é uma só: até para se fartar em dinheiro e fama é necessário ter uma alma configurada para isso. Ela pode até ser preenchida pelos ritmos, cores e tons da boa poesia, mas somente em raros casos poderá ser daquelas que se projetam para dentro. O eu, resultante deste embate, precisa estar configurado para o mundo e àquilo que ele insiste em apresentar como seu maior benefício: a civilização. Controverso? Por certo, mas esta é uma das receitas para que se veja nos indivíduos da vida adulta a fisionomia dos velhos e distantes amigos da infância.
“Acredito que a depressão eu a tive sempre e a detectei aos 26 ou 27 anos. Mas nunca quis me tratar por um profissional. Tive de deixar o futebol para me dar conta do quão grave era a doença e de que as coisas não poderiam seguir daquela forma”. E a forma era monstruosa justamente porque estava contaminada com a doença. Uma de suas garras vitimava o Pelado assim como certas drogas vitimam o viciado: tornava o “barato” em algo caro, depois. Desta maneira, as grandes conquistas, para Almeyda, sinalizavam um bem-estar profundo, mas passageiro. O que vinha depois do efeito era um hiato, ou um precipício onde muitas vezes ele quis se atirar.
O suicídio foi pensado numa quantidade de vezes que só o ex-jogador deve conhecer. Mas publicamente, ao menos seus entes familiares sabem que ele o tentou em 2005. Na ocasião, ele fugiu para Azul em busca de alguma salvação nos seus referenciais da origem. Seu mau humor o tornou intratável, suas atitudes beiravam a esquizofrenia e o pânico era tal que sequer conseguia dormir com a luz apagada. De filhas à esposa, passando por amigos íntimos e aos próprios país: Almeyda não reconhecia ninguém.
Sua esposa o salvou. Sem se comunicar com o homem à sua frente, ela abandonou o lugar e foi em busca de ajuda. A consulta a vários especialistas respondia a duas necessidades: encontrar um terapeuta que pudesse tratar do marido e inúmeras dicas e conselhos sobre como ela, Luciana Pena, pudesse lidar com ele e ao menos resgatá-lo a uma mínima condição comunicativa.
“Chegou um momento em que eu não tinha mais forças sequer para erguer-me da cama; neste momento, minha esposa foi a chave para me abrir a um destino novo e remodelar a minha forma de ser”. Ela fez mais. Percebendo que própria a família se decompunha, submeteu todos a um encontro com especialistas. E disto resultou algo vital à recuperação do jogador: “um desenho de minha filha, a seu psicólogo, me retratava como um leão velho, despelado e sem dentes; foi a gota d’água. Doeu-me demasiado a imagem. Nela, era possível de se ver precisamente a forma como ela me via: tive vergonha”. E Almeyda continuou:
“Somos por vezes a própria materialização do egoísmo. Eu era pai de três filhas; tinha a minha senhora; também meus pais, irmãos e sobrinhos. Como um estalo, percebi como era feio o que eu estava passando para eles”. A partir disso, e do tratamento terapêutico recebido “dentro” e fora de casa, Matias Almeyda se convenceu do quanto era uma presa indefesa e fácil da agonia. O caráter de sua depressão era profundo e não sugeria um combate direto; em vez disso, sinalizava-lhe que enquanto passageiro eterno da doença, o melhor para ele era o aprendizado de como conviver com ela.
O ex-jogador nunca quis falar sobre sua aposentadoria no futebol, o que lhe parece um tema caro. Porém, em entrevista a um programa local, “La Garganta Poderosa”, aludiu com tristeza à sua demissão do River, logo após recolocar o clube na elite argentina. Ainda acerca de sua doença, disse que o próprio futebol foi um combustível potente para incendiá-la. “No futebol há um milhão de jornalistas que têm de cumprir com suas matérias diárias sobre nós; dessas matérias, 90% são mentiras. Também isto nos joga pressão. E o inusitado é que quem faz as coisas com carinho, honestidade e amor poucas vezes recebe o valor que merece”, lembrou Almeyda, citando em vulgar o conterrâneo Jorge Valdano que diz que “a maior perturbação dos jogadores de futebol é produzida pela mídia”.
Segundo Paulo Roberto Falcão, um dos ídolos históricos do Inter de Porto Alegre, “jogador de futebol morre pela primeira vez quando para de jogar – é a única pessoa que morre duas vezes”. O saudoso Dr. Sócrates segue na reflexão e alude a si próprio ao dizer que “não é o jogador que abandona o futebol, é o futebol que abandona o jogador”. Esta segunda morte para Matias Almeyda é carregada de especificidades muito peculiares.
Ela ocorre aos poucos, na vagareza dos dias, e se inicia quando ele troca o cargo de atleta do River pelo do comando de seu banco de reservas. O segundo capítulo, e talvez o epílogo, se dá no memento que Almeyda é demitido por Passarella e é quase expulso de Bajo Belgrano. O que pareceu ser uma transição lenta e saudável pode ter sido drástico a uma pessoa com a sensibilidade do “Pelado”. A partir daí, um longo silêncio se instaura e se estende até o oferecimento do Banfield para tê-lo como seu treinador.
Porém, esta seria a segunda morte de Almeyda. A primeira ocorrera no pico de sua depressão, e quando precisou do socorro de Luciana Pena. Curioso é que o ex-atleta, amante irrecuperável de de Jim Morrison, quase se matou na mesma idade em que o ídolo perdeu sua vida. Agora, Almeyda segue vivo, produtivo e com a esperança de adiar ao máximo possível a sua terceira e definitiva morte. Para tanto, há de aperfeiçoar a cada dia o olhar para sua depressão. Como um câncer, ela vai consumindo-o por dentro e promete ser assim até os últimos suspiros de seu hospedeiro. Dimensioná-la em sua totalidade e calibrar o trato dedicado a ela se faz vital a Matias Almeyda para que suas expectativas de longa vida se concretizem.
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