110 anos de Argentinos no Grêmio
Uma das peculiaridades do Rio Grande do Sul, ostentada com muito orgulho por seus moradores, é a afinidade do estado com os vizinhos platinos. Enquanto a maior parte dos brasileiros vêem argentinos e uruguaios como rivais e inimigos, no estado mais meridional do país a coisa é diferente. Nós, gaúchos, sentimos afinidades históricas, econômicas, sociais e culturais com os países fronteiriços.
O futebol não poderia ficar à parte. Especialmente no que tange ao Grêmio, tradicionalmente associado ao jogo “duro” tão comum no Rio da Prata. E se os uruguaios estão muito ligados à história do tricolor (basta lembrar de Ancheta e De León, que estão entre os maiores ídolos dos 110 anos completados do clube no último domingo), os argentinos também têm um papel de destaque nessa história. Tanto que o clube já criou uniformes reservas em listras alvicelestes, lembrando não só a seleção argentina de futebol: a de rúgbi também, em modelo de 2009 com listras horizontais.
Essa ligação começa nos anos 30/40. Naquele tempo, a Argentina conhecia talvez a melhor geração futebolística de sua história. Eram tantos jogadores de qualidade que o país podia se dar o luxo de exportar atletas em fim de carreira ou de nível local médio que fizeram história no futebol brasileiro, como Sastre, Santamaría, Rongo, Valido, Poy, Orsi, Rafanello e outros. E o Grêmio não ficaria de fora disso.
Um exemplo é Moisés Beresi. O camisa 10 era rosarino e passou por várias equipes em seu país antes de chegar ao Brasil. Após uma passagem pelo pequeno Bonsucesso, o meia esquerda chegou ao Grêmio em 1945, sendo peça importante na conquista do gauchão do ano seguinte. O título pôs fim a 14 anos de jejum do tricolor, e encerrou uma sequência de seis do lendário “rolo compressor” colorado.
Mas o desafogo não impediu que o meio campista fosse dispensado em 1948, rumando para o arquirrival, sendo o primeiro e único argentino a atuar pelos dois grandes portoalegrenses (um outro passou como técnico: Alfredo González, campeão com o rival em 1950 e que já havia defendido como jogador Flamengo, Vasco e Botafogo). Curiosamente, na Argentina Beresi passou também por um Tricolor e um Rojo: Almagro (que é amigo do Grêmio) e Independiente.
Outro jogador argentino marcou época no Grêmio dos anos 1940: Ramón Castro. Mas se trata de um caso muito diferente, já que sua trajetória é bem menos conhecida. Sobre ele pouco se sabe em seu país natal. Por aqui deixou uma marca muito forte na velha geração de torcedores, por um motivo muito específico: sua potente cabeçada. Rezava a lenda que o jogador cabeceava tão forte quanto um goleiro batendo um tiro de meta. Falando em goleiro, vale lembrar, ainda dos tempos românticos, o nome de Rubén Germinaro, buscado no Vélez para substituir o grande Sérgio.
Germinaro se inseriu numa equipe histórica do Grêmio. Comandada por Osvaldo Rolla, o “Foguinho”, aquele Grêmio conquistaria 12 gauchões em 13 anos (de 1955 a 1968), tendo em sua equipe nomes como Aírton, Ortunho, Gessy, Milton e Vieira. O “argentino voador” participou das conquistas de 1957, 1958 e 1959, além de ser o destaque em uma vitória gremista por 4-0 sobre o Santos de Pelé em 1958 e ter repetido o feito em um inesquecível 4-1 sobre o Boca em plena Bombonera no ano de 1959, em uma partida em que Gessy marcou quatro gols. Também chamava a atenção por sua camisa amarela, em um período em que os goleiros brasileiros se vestiam quase sempre de preto.
A geração seguinte de argentinos chegaria ao Brasil em um momento muito difícil do Grêmio, correspondente aos anos entre 1969 e 1977, quando o Internacional conseguiu seu octacampeonato e chegou a dois títulos nacionais. Mas, ainda assim, não faltaram argentinos contribuindo com o tricolor da Azenha. Um deles foi Néstor Scotta. Nascido na província de Santa Fé, “El Tola” passou por Unión e River Plate antes de chegar ao Grêmio.
Aos que se opõem à recente unificação, o voluntarioso atacante entrou para a história do futebol brasileiro ao marcar, no dia 7 de agosto de 1971, o primeiro gol do Brasileirão, em uma partida em que o Grêmio venceu o São Paulo fora de casa por 3-0 (ele também fez o segundo). Não confundam com Héctor Scotta, seu irmão e grande ídolo do San Lorenzo, que, de acordo com um equívoco da wikipédia, também teria passado pelo Tricolor, o que não é verdade.
Naqueles anos também esteve no Grêmio o valente Carlos “Chamaco” Rodríguez, cuja raça encantou aquela geração de tricolores. Como Scotta, vinha emprestado pelo River. Outro nome de destaque naqueles anos foi o atacante Alfredo Obberti. “El Mono” jogou no Huracán, Colón, Los Andes e Newell’s antes de chegar no Grêmio, em 1972. Nos dois anos em que atuou pelo tricolor gaúcho marcou 35 gols, ainda um recorde em se tratando de estrangeiros no clube.
Em 1976, dois monstros do futebol argentino estiveram no clube, mas deixaram poucas recordações em um momento de crise. O excepcional goleiro Agustín Cejas, que ganhou a Libertadores e o Mundial pelo Racing e de vitoriosa passagem pelo Santos, esteve no Olímpico após curta passagem pelo Huracán. E o genial ponta-esquerda Oscar Ortiz, ex-San Lorenzo. Apesar de seu imenso talento, ele foi considerado “franzino” e logo foi vendido para o River, onde faria sucesso, sendo parte da seleção campeã mundial de 1978.
De lá para cá foram muitas mudanças, começando pelo próprio técnico atual da seleção, Alejandro Sabella, que se enganou achando que tiraria férias em um clube cujo jogo sempre foi físico (veja a resposta 76). Esteve presente no início do hexa estadual de 1985-90, mas não vingou; Salazar Franco Montoya, conhecido pelo apelido “Puma“, ex-Colón, pouco jogou no vitorioso 1995; em 2000, vieram Leonardo Astrada e Gabriel Amato, campeões em 1996 da última Libertadores do River (Astrada é inclusive o jogador mais campeão pelo Millo) e que se perderam nas confusões da equipe formada pela ISL. Fabio de los Santos, ex-Racing, chegou em 2001 e em 2002 já estava no Gama.
Depois, Julián Maidana, Sebastián Saja e Rolando Schiavi, ídolos e campeões continentais por Talleres (Copa Conmebol 1999), San Lorenzo (Mercosul 2001 e Sul-Americana 2002) e Boca (Libertadores 2003) respectivamente, mas engolidos por uma máquina que só aceita estrangeiros de protagonismo instantâneo; Germán Herrera, Germán Arangio, Ezequiel Miralles, Facundo Bertoglio e Damián Escudero, de pouco rendimento em tempos recentes; Maxi López, vendido no auge do prestígio; por fim, Hernán Barcos, só o capítulo mais recente de uma longa história. Que segue sendo escrita. Vida longa ao Grêmio e a sua relação com o futebol argentino.
PS: Este texto só foi possível pela ajuda do meu amigo Esteban Bekerman, grande historiador do futebol argentino, que comanda o imperdível grupo “Historia y Estadísticas del Fútbol” no facebook. Twitter: @egerbek. Fica também o convite para a leitura de especiais do Futebol Portenho sobre dois amigos gremistas: os também tricolores Almagro (clique aqui) e Nacional (aqui).