Desde Turim – no último domingo, estivemos presentes no clássico de Turim, outrora o mais importante da Itália e que já teve argentinos como protagonistas em ambos os lados. Se o clássico milanês, entre Internazionale e Milan, é hoje o encontro citadino que mais reúne títulos italianos, até metade do século XX o posto pertenceu ao Derby della Mole, e de forma equilibrada: a Juventus tinha 8 scudetti até 1950, e o Torino tinha 6. A Inter tinha 5 e não vencia desde 1940. O Milan tinha 3, o último em 1907.
Se a Juve hoje domina amplamente as taças nacionais e o clássico local, houve tempos em que o Toro é que tinha vantagem no dérbi. Nos dez primeiros, por exemplo, foram oito vitórias dele contra duas da rival. No 12º encontro, em 1912, veio a maior goleada: 8-0, a favor dos grenás. Naquele jogo, Eugenio Mosso marcou 3 vezes e seu irmão Francisco, 2. Tornaram-se ali os primeiros hermanos a marcarem no clássico. Eugenio chegou a ser até o maior goleador dele, com 7 gols (hoje, a marca é dos 13 de Giampiero Boniperti). Seus irmãos Benito e Julio Mosso também jogaram no Torino. Todos os Mosso nasceram na Argentina, mas começaram a carreira já na terra das raízes.
Benito Mosso até jogou depois no Palmeiras, então Palestra Itália: o Verdão surgiu inspirado em excursão de 1914 do Granata pela América do Sul, onde chegou a enfrentar a Argentina e vencer o Corinthians com gol de Benito. Em 1913, outra família, os irmãos cordobeses Ernesto e Rómulo Boglietti, tornaram-se os primeiros juventinos nascidos fora da Europa. Também estiveram entre os primeiros vira-casacas: em 1915, foram ao rival, onde jogaria também o caçula Otavio Boglietti. Mas antes as famílias se chocaram em um 1-1 em 1914, gols de Francisco Mosso e Ernesto Boglietti, que ali tornou-se o primeiro argentino a marcar no dérbi pela Vecchia Signora.
O Torino, porém, ainda não tinha títulos italianos oficiais: ganhou três na Primeira Guerra Mundial, mas o campeonato estava oficialmente suspenso, e outro em 1927, revogado após acusação de suborno exatamente em clássico vencido por 2-1. Um dos gols foi de Julio Libonatti, nada menos que o primeiro profissional que o futebol europeu importou do sul-americano, pois Libonatti iniciou a carreira ainda na Argentina, no Newell’s. Foi até o herói da primeira Copa América vencida pela seleção, em 1921.
Naquela de 1921, Libonatti marcou cada vez que jogou: no 1-0 no Brasil, nos 3-0 no Paraguai e no 1-0 na “final” contra o Uruguai, contra quem ainda é o maior artilheiro em um só jogo – fez 3 em um 6-1 em 1919. Enfim foi campeão pelo Torino em 1928, emplacando ainda a artilharia do campeonato: primeiro não-europeu a consegui-la no Velho Continente. Também passou a jogar pela Itália, com 15 gols em 17 jogos de 1926-31. Com 150 gols, foi o maior artilheiro da história do Toro, só superado depois por Paolo Pulici (artilheiro do 7º e último campeonato vencido pelo clube, em 1976). Com 6 no clássico, Libonatti só estava abaixo dos 7 de… Eugenio Mosso. Um de seus colegas, Adolfo Baloncieri, havia morado em Rosario também. A década seguinte, porém, viu a Juventus enfim passar a tomar as rédeas.
De 1931, a 1935, a Juve foi pentacampeã italiana seguida, algo inédito no torneio. Em 1931, o elenco tinha os argentinos Luis Monti (zagueiro), Raimundo Orsi, Juan Maglio (atacantes), Eugenio Castellucci (meia) e o atacante Renato Cesarini, italiano criado na Argentina e que até jogara pela Albiceleste em 1926. Deles, só Castellucci, que na terra natal defendera os rivais Atlanta e Chacarita, não chegara a jogar pela seleção argentina; Orsi fora vice olímpico por ela em 1928 e Monti também: veja aqui.
Monti, ídolo sanlorencista como Maglio, também fora vice da Copa de 1930. Pela Azzurra, foi campeão da de 1934; ainda é o único a jogar finais de Copa por dois países. Também estavam na primeira delegação italiana campeã do mundo os colegas Orsi, que marcou na final (na época, era o segundo maior artilheiro da história do Independiente), e Cesarini, antigo ídolo do Chacarita e célebre pelos gols nos últimos minutos – apelidados por isso de Zona Cesarini – e futuro projetista de La Máquina, célebre elenco dos anos 40 do River Plate, onde pararia. O trio ficou em todo o Quinquennio d’Oro. Desde então, a equipe jamais conseguiu nem três scudetti seguidos. Atual bicampeã, luta para quebrar isso.
O penta parou em 1936 e só em 1950 a Vecchia Signora voltou a ser campeã, em jejum de 15 anos impensável para hoje, assim como o fato do Torino também ter seu penta e ganhar os cinco anteriores: não era campeão desde aquele primeiro de 1928, com Libonatti. Teve consigo um esquadrão campeão seguido entre 1943 e 1949 (entre 1944 e 1945, o agravamento da Segunda Guerra em solo italiano suspendeu as disputas), trajetória só interrompida pelo acidente aéreo que matou em 1949 todos os craques do time, que nunca mais se recuperou. Por sinal, o River Plate organizou amistoso para apoiar o clube, surgindo daí uma amizade. Foi um dos últimos jogos de Alfredo Di Stéfano pelo River.
Mas nem o mais dourado Torino da história conseguiu superar as vantagens já alcançadas pela Juve: justo naquele 1936, ela conseguira ultrapassar o rival em vitórias no clássico. Na trajetória, Cesarini marcou três vezes, Orsi uma e Monti, duas. Orsi e Monti até marcaram nos 3-1 na casa adversária que, em 1935, igualara ambos em vitórias. O Toro chegou a retomar rapidamente a dianteira em 1937, mas os alvinegros a reconquistaram já em 1938 e não ficaram mais sem ela.
Aquele Grande Torino morreu com o clube tendo 6 títulos italianos. A Juventus tinha 7 e conseguiu o 8º em seguida, sendo campeã da temporada 1949-50. No elenco, Rinaldo Martino, 3º maior artilheiro da história do San Lorenzo e herói da Argentina campeã da Copa América em 1945 e 1946, fez 18 gols (incluindo 1 no clássico) em 33 jogos. A greve de 1948, que levou Di Stéfano e outros à Colômbia, fez Martino rumar à Itália. Ele até se tornou o primeiro não-branco na seleção italiana, jogando uma vez por ela em 1949. Mas a Itália “não tinha corridas de cavalos” e ele saiu após só uma temporada, deixando de ir à Copa de 1950. Passou ao Nacional uruguaio, onde também foi ídolo: veja aqui.
Na mesma época, o Granata teve Benjamín Santos, artilheiro do campeonato argentino de 1948 pelo Rosario Central. Ficou só de 1949-51 em Turim, mas com formidáveis 41 gols em 64 jogos; voltou como técnico depois. No meio dos anos 50, os dois rivais tiveram Eduardo Ricagni. Artilheiro argentino de 1952 pelo Huracán, chegou à Juve em 1953 e logo estreou pela Azzurra. Ficou só um ano nos alvinegros, com 17 gols em 24 jogos. Campeão no Milan em 1955, passou aos grenás em 1956. Ele chegou a marcar em derrota por 1-4 em que dois gols juventinos foram de Omar Sívori.
Sívori vinha do grande River dos anos 50. Foi um dos heróis da Copa América 1957, da qual foi à Juventus em transação que permitiu ao ex-clube completar as arquibancadas do Monumental, então em forma de ferradura. Com 6 gols no clássico, ganhou três copas e três campeonatos italianos como bianconero, sendo artilheiro no de 1960, com Cesarini de técnico. Em 1961, recebeu a Bola de Ouro como melhor jogador europeu, pois também jogou pela Itália: foi com ela à Copa 1962, ano em que marcou o gol da primeira derrota do Real Madrid no Santiago Bernabéu pela Liga dos Campeões.
Os mais antigos põem Sívori, de 167 gols em 253 jogos pelos alvinegros, como o Maradona daqueles tempos. El Cabezón mal chegou e participou em 1958 da campanha da primeira estrela, concedida na Itália a cada dezena de títulos no campeonato; a Juventus foi a primeira a ter uma. Dali, ela foi desvencilhando-se do Torino para nutrir mais rivalidade com a Internazionale (surgindo assim o Derby d’Italia), clube mais próximo na época de desbanca-la: quando a Inter conseguiu o 10º scudetto e, assim, também uma estrela, em 1966, só estava duas taças atrás da Juve.
Em 1967, ela se distanciou, ao faturar o 13ª título, ficando com mais que o dobro dos do rival local, mas o dérbi de Turim ainda rendeu uma anedota: o craque-galã Luigi Meroni, que dava a sensação de que reergueria o Torino, morreu atropelado uma semana antes. Foi homenageado: o Toro venceu por 4-0, com 3 gols de um febrio Néstor Combín, ex-jogador da própria Juventus e que jogava pela França; participara da Copa 1966 pelos Bleus ao lado de outro argentino, Héctor de Bourgoing. Até hoje, o clube não venceu outra vez o rival por mais de dois gols de diferença. Naquela temporada, venceu ainda a Copa da Itália, com gol de Combín na final contra a própria Grande Inter, do técnico argentino Helenio Herrera.
Demorou um bom tempo para outro argentino marcar no clássico. E, como Combín, um argentino da seleção francesa: David Trezeguet, em empate de 2-2 em 2002, campeonato onde seria campeão e artilheiro. Ele, que passou toda a década anterior na Juve (ficou lá de 2000-2010), é um dos maiores ídolos modernos da Vecchia Signora, onde viveu o auge da carreira e foi um dos maiores atacantes do mundo. Conviveu com o volante Mauro Camoranesi, campeão do mundo pela Itália em 2006 sobre Trezegol. Ainda que a contragosto, estiveram até na 2ª divisão, na temporada 2006-07, a única que viu a Juventus na série B e o Torino na A. Pertenceram a um tempo em que a vantagem bianconera aumentou ainda mais: o granata não vence o clássico desde 1995 e, anteontem, perdeu outra vez.
Apesar do Derby della Mole estar cada vez mais pendente a um lado, não deixe de assistir o próximo, pois quem vencer fará história: o Torino, por enfim quebrar um jejum que já completou maioridade; e o time de Carlos Tévez, por somar a 6ª vitória seguida no clássico – a melhor série de triunfos da Juve no encontro é de 5, já ocorridos duas vezes antes: a primeira, entre 1932-34, nos tempos de Cesarini, Monti e Orsi; a segunda, de 1957-58, nos de Sívori. Tévez foi decisivo anteontem, com muita raça. O gol da vitória veio de cabeceio de Paul Pogba após rebote do travessão em outro cabeceio, do argentino. Se campeão, ele terá participado ainda da terceira estrela, pois será o 30º scudetto juventino.
*Com a colaboração de Caio Brandão
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