Vitória da Argentina sobre a Inglaterra teve camisa pirata e a “nuca de Deus”
Jogo histórico do futebol, da Copa do Mundo e, por que não?, dentre todos os esportes, o Argentina 2-1 Inglaterra faz hoje trinta anos. O contexto das Malvinas e o gols maradonianos de mão e do século são conhecidíssimos; preferimos relembrar dois detalhes menos recordados daquela partida. Um dificilmente ocorreria em tempos de “padrão FIFA”: a camisa vencedora era “semipirata”. Já a “nuca de Deus” influiu tanto quanto a “mão de Deus”, mas evitando um gol ao invés de marca-lo. Tudo embalado na terra adversária pelo disco sugestivamente chamado The Queen is Dead, lançado pelos Smiths na segunda-feira daquela semana – o jogo caiu no sábado seguinte.
Para a transmissão ao vivo dos jogos ser exibida na Europa em horário noturno ou no fim do vespertino, as partidas ocorreram em horários dos mais inconvenientes aos jogadores em pleno verão mexicano. O pontapé inicial de Inglaterra x Argentina se deu exatamente ao meio-dia. O técnico argentino Carlos Bilardo tivera a preocupação de solicitar à fornecedora de camisas da Albiceleste, a Le Coq Sportif, um pedido à frente do seu tempo: uniformes leves e que não retessem o suor. Já os jogadores foram ordenados a chegarem com dois quilos de sobrepeso ao México, onde teriam coca-cola no café da manhã, conforme lembrado pela revista El Gráfico.
Após idas e vindas, a empresa ofereceu uma camisa titular ao gosto de Bilardo, com microporos pelo manto em tecnologia Air-Tech. El Narigón apreciou tanto que, dessa vez por superstição, faria a mesma exigência à Adidas para a Copa do Mundo de 1990, quando os argentinos teriam de volta remeras da indústria alemã. A da Le Coq foi usada sem problemas na primeira fase de 1986.
Por falta de tempo, porém, a camisa reserva não contou com a mesma sofisticação. E os hermanos sentiram isso nas oitavas-de-final contra o Uruguai, mesmo com a partida iniciando-se às 16h. As camisas alviceleste da Argentina e celeste uruguaia se confundiriam facilmente. Ambas as seleções tinham também camisas reservas brancas, que também não ajudariam. Assim, os argentinos usaram a azul; haviam ido com três opções de camisas ao México, embora a branca não viesse a ser usada.
Nem a chuva, que amenizaria o calor, ajudou tanto: a camisa azul era de algodão, por si só mais pesada que a “tecnológica” alviceleste, sensação que se intensificaria com o acúmulo de suor e chuva durante o jogo. Para a partida contra a Inglaterra, cujas opções de camisa também eram branca ou celeste como as dos uruguaios, seria necessário usar novamente aquela azul. Bilardo não aceitou. Tentou que a Le Coq confeccionasse ao menos um modelo mais leve. Mas o pedido, a 72 horas da quartas-de-final, foi respondido como mais fantástico do que a literatura de Jorge Luis Borges (falecido oito dias antes daquele 22 de junho).
A solução? Pedro Moschella, empregado da AFA, foi encarregado por Bilardo a encontrar pela Cidade do México camisas da Le Coq com material menos sufocante que a azul. Onde conseguiu encontrar, comprou um par de camisas também azuis, nenhuma exatamente com a tecnologia da titular. Ele, Bilardo, o assistente técnico Carlos Pachamé e o roupeiro Tito Benrós analisavam-as quando Maradona casualmente apareceu. Bilardo perguntou a opinião do craque, que se derreteu por uma listrada em diferentes tons de azul: “com essa, ganhamos da Inglaterra”, cravou El Barrilete Cósmico (um apelido que fez sentido naquele ano do cometa Halley).
Moschella voltou à loja onde comprara o modelo aprovado pelo craque e adquiriu 38 camisas do mesmo modelo: duas para cada jogador de linha, uma para cada tempo. O América do México, clube treinado pelo argentino Miguel Ángel López (beque do Independiente multicampeão da Libertadores nos anos 70), que havia cedido o goleiro Héctor Zelada (uma das grandes invencionices de Bilardo na convocação; jamais havia defendido a Argentina e roubou a vaga do mito Ubaldo Fillol, titular nas eliminatórias, recém-vice da Recopa Europeia pelo Atlético de Madrid e solenemente ignorado) e hospedava a delegação, ofereceu a logisítica necessária para completar as camisetas.
O escudo da AFA foi desenhado à mão por um dos funcionários do América, o que rendeu a ausência dos louros que envolvem a sigla da AFA. As costureiras do clube bordaram números prateados (na camisa azul “oficial”, eram brancos) de futebol americano. Outra diferença sutil é que na camisa usada há 30 anos o galo do logo da Le Coq é ligeiramente tridimensional, “saindo” do triângulo.
Em um confronto carregado pelas Malvinas, a partida teve na transmissão da BBC comentários de Osvaldo Ardiles, à beira da aposentadoria e bastante afetado pelo conflito: perdeu nele um primo e, perseguido pela mídia dos dois países, exilou-se de seu enorme sucesso no Tottenham Hotspur ao passar um semestre no Paris Saint-Germain. Contamos aqui como ele permanecera ídolo, a ponto dos torcedores gritarem “Argentina!” cada vez em que ele tocava na bola apenas um dia depois do início da guerra – uma partida decisiva (semifinal de Copa da Inglaterra) exatamente contra o Leicester City décadas antes de ambos imaginarem concorrer pela Premier League.
Sobre comentar aquela partida, Ossie assumiu que “não foi nada fácil. Em primeira instância, não vi (a mão de Maradona no primeiro gol). Ao repeti-lo, me chamou a atenção que Hoddle e Waddle protestassem tanto. Os dois eram companheiros meus no Tottenham e não eram de reclamar. ‘Epa, aconteceu algo aqui’, pensei. Na terceira, notei o gesto de Diego de olhar de relance o bandeirinha. E numa quarta tomada se vê clarinha a mão, assim afirmei que havia sido mão e ponto. (…) Depois veio o outro golaço. No estúdio não gritei, mas por dentro festejava como louco”.
Menos recordada que a “mão de Deus” foi o “nucaço de Deus”, como batizado por seu autor, o volante Julio Olarticoechea. Nem mesmo na Argentina, onde falar de nucazo é falar do nucazo de Guerra, o gol marcado acidentalmente com a nuca do uruguaio Hugo Guerra para dar a vitória ao Boca em um Superclásico que cheirava a triunfo do River, em 1996. O lance de Olarticoechea, por sua vez, nada teve de acidental, embora ele assuma a dose de sorte: “normalmente uma jogada assim termina em gol contra”.
El Vasco, por sinal, havia sido outra presepada de Bilardo na convocação. Olarticoechea havia renunciado à seleção em 1984 e foi convencido quando o técnico seguiu-o por uma autoestrada e, após ambos pararem, desenhar em uma parede o que pretendia do jogador. Reserva na Copa de 1982, acabaria indo também à Copa de 1990. “Meu caso é um exemplo, eu explico aos garotos que joguei três mundiais sem ter sido um craque. Ninguém me presenteou, os ganhei com sacrifício e esforço”.
O jogo de trinta anos atrás marcou precisamente a partida em que ele assumiu a titularidade. Havia entrado nas quatro partidas anteriores, mas sempre saindo do banco para substituir Sergio Batista. “Eu havia jogado de quarto zagueiro na excursão prévia, mas quando chegamos ao México, Carlos (Bilardo) decidiu pôr Cuciuffo. Passei mal no início, me custou três semanas adaptar-me à poluição”. Contra os ingleses, Batista e Cuciuffo permaneceram, sendo sacado Oscar Garré, cuja falta de maior qualidade técnica sempre originou críticas a Bilardo em insistir muito tempo nele.
Antes do nucaço de Deus, Olarticoechea já havia participado exatamente da mão de Deus: foi ele quem entregou a bola a Maradona, que correu para a área após tentar repassá-la a Jorge Valdano, que não dominou bem. O adversário Steve Hodge tentou afastar e seu chutão para trás possibilitou a disputa de Dieguito com o goleiro Peter Shilton. Hodge não se lamentaria muito: foi ele quem ao fim trocou de camisas com Maradona, futuramente leiloando por 350 mil dólares a que recebera e nomeando sua autobiografia de “O homem da camiseta de Maradona” – no qual conta não ter notado a mão.
Veio o segundo gol, o do século, imortalizado ironicamente na narração de um uruguaio, Víctor Hugo Morales: detalhamos aqui. Embora roubada no primeiro e humilhada no segundo, a Inglaterra não se desanimou. John Barnes entrou e pôs fogo na partida, correndo para oferecer cruzamento certeiro para cabeçada do artilheiro Gary Lineker. Faltando dois minutos, então, a jogada se repetiu: Barnes foi à linha esquerda de fundo e cruzou .”E eu cheguei na corrida com Lineker. Me atirei de cabeça e a tirei com a nuca”. Lineker, atrás de El Vasco na trajetória da bola cruzada, foi às redes, mas a bola não.
“Era um momento bravo, se nos empatassem nos iam complicar. Mas nos sentíamos invencíveis”, reviveu o jogador em 2011, nos 25 anos da conquista. É de se imaginar que sim. Afinal, o título viria exatamente após o adversário empatar jogo perdido por 2-0 – e com um Maradona bem anulado após escancarar ao mundo há 30 anos como podia encarnar o deus e o diabo da bola. Até aos brasileiros: aquela partidaça foi escolhida para exibição ao vivo ao invés do famoso grande prêmio em que Ayrton Senna celebrou pela primeira vez a vitória com a bandeira brasileira, um dia após a eliminação canarinho -a corrida foi exibida no videotape.
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