Primeira Divisão

Aleluia! Clássico argentino mais realizado, o cordobês volta à elite após 15 anos: Belgrano x Talleres

Um clássico “azulado”, onde um veste a coloração celeste, o outro o tom marinho. Em um, a cor predomina na camisa inteira, no outro se divide harmoniosamente em listras horizontais com o branco. Realizado desde 1914, pode ter menos badalação que outras rivalidades, mas é em todo o seu país o dérbi com mais edições travadas. A descrição no Brasil remeteria a Remo x Paysandu, mas na Argentina, com algumas alterações (a camisa toda azul é celeste, e a listrada é quem leva o azul marinho), descreve Belgrano x Talleres. Se enfrentam pela 393ª vez às 16 horas no Estádio Mario Kempes, neste Sábado de Aleluia. É a primeira vez na elite nacional após quinze anos e a primeira no campeonato argentino após oito. E, em jogos oficiais, é o primeiro dérbi em quatro anos.

Córdoba, sobre quem já dedicamos este Especial sobre sua era dourada, é um mundo à parte na Argentina, algo refletido em um futebol. Ilhada, desenvolveu um sotaque característico (nem sempre inteligível mesmo nas províncias que a rodeiam). E desenvolveu diversas ligas regionais. A mais antiga, compreensivelmente, na região da capital Córdoba. Essa liga foi formalizada em 1913. Sua primeira divisão foi vencida pelo Belgrano, existente desde 1905. Na primeira rodada da edição seguinte, em 1914, o campeão enfrentou um novato na elite cordobesa, o Central Córdoba.

A partida deveria ocorrer em 10 de maio no campo do Agronomía, que não cedeu-o por resolução interna que só autorizava uso para atividades intercolegiais. Ficou para o dia 17, no campo do Belgrano, que alinhou Ochoa, Unamúnzaga e Pacheco, Pereyra, Balbino Lascano e Lutri, Alonso, Ortega, José Lascano, Figueroa e Ernesto Barabraham. O oponente visitou-o com Forelli, Andrade e Ledesma, Carbajal, Salvatelli e M. Ferreyra, T. Ferreyra, Ríos, Martínez, Puymalí e Britos. Só jogaram por 15 minutos: o Central Córdoba, furioso com um gol de José Lascano (da família fundadora de La B, cujas cores foram escolhidas por sua mãe) validado pelo árbitro Nicolás Fortunato, embora o celeste supostamente houvesse recebido em impedimento a assistência de Barabraham, retirou-se do campo. E a liga cordobesa retirou o time, logo readmitido.

Nascia uma rivalidade. E se o jogo tivesse durado 90 minutos? Os celestes defendem que poderia ser pior aos derrotados, surrados naquele mesmo ano por 8-1, em novembro, até hoje a diferença mais elástica no duelo (houve ainda o 9-4 de 1947, também favorável aos celestes que fez 70 anos anteontem) entre Belgrano e Talleres – nome simplificado que o Central Córdoba, campeão de 1915 e 1916, adotaria em 1918. A mudança de nome deveu-se à temperatura que aquele encontro parece ter desde o início. Em 1917, o alviazul Horacio Salvatelli lesionou gravemente o goleiro rival Cardozo, em lance de gol que terminou anulado pelo juiz. “Cenas lamentáveis” se seguiram, com Salvatelli sendo preso. Em retaliação, o Central Córdoba não forneceu jogadores à seleção cordobesa que dali a uns dias enfrentaria a portenha.

Fotos dos dois primeiros clássicos nacionais, em 1974, e ambos na capa da El Gráfico nas boas campanhas de 1977

A resposta da federação foi banir Salvatelli e o clube, cuja popularidade pesou para a decisão ser revista. Pôde voltar, mas extinguindo-se como Central Córdoba para virar Talleres. A dupla praticamente duopolizou a liga cordobesa, salvo títulos bissextos principalmente do Instituto e do Racing local. La T e La B não concordam nem no número de vitórias: os celestes se gabam de ter mais triunfos na contagem geral, enquanto os alviazuis preferem contar só os jogos válidos por campeonatos (costume comum na Argentina, diga-se). O resto do país pôde ter melhor noção a partir de 1968. O campeonato argentino, apesar do nome, tinha filiações restritas à Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe. Nos anos 50, Belgrano e Talleres tentaram se filiar na segunda divisão, sem sucesso. 

Em 1967, então, o campeonato argentino foi renomeado apropriadamente como Metropolitano, com o advento do Torneio Nacional – que reunia os clubes do Metro (a princípio, só os melhores; depois, todos ou quase) com os melhores das ligas do interior. Ao Belgrano coube o orgulho de ser o primeiro representante cordobês no Nacional, em 1968. Mas viu os rivais fazerem campanhas melhores. O Talleres por bem pouco não foi campeão de 1977 (na mais épica final argentina: saiba mais). O Racing foi vice em 1980. Os dois e o Instituto acabaram nos anos 80 filiados no próprio Torneio Metropolitano, pela polêmica Lei 1.309, que conferia esse direito aos times do interior classificados duas vezes seguidas ou três alternadas aos mata-matas do Nacional. A lei hoje é vista como responsável por atrofiar o futebol cordobês, ao desvalorizar a liga local. Antes, ao não haver vagas para todos, um curioso fenômeno ocorria: clubes não classificados emprestavam seus craques, fortalecendo o rival mas podendo valorizar seus jogadores.

Assim, Osvaldo Ardiles, do Instituto de 1973 (que revelou Mario Kempes), jogou o Nacional de 1974 pelo Belgrano e amistosos pelo Talleres. Outro daquele Instituto, Miguel Oviedo seria convocado pela seleção tanto como jogador do Racing cordobês como do Talleres – os três seriam campeões da Copa de 1978, assim como o zagueiro Luis Galván, símbolo tallarin que no fim da carreira também vestiu celeste. Carlos Guerini, revelado no “quinto grande” General Paz Juniors e com passagens por Boca e Real Madrid, brilhou pelas duas principais camisas cordobesas, defendidas também por José Luis Cuciuffo, campeão da Copa de 1986. Mas nenhum vira-casaca fez tanto sucesso na dupla principal como José Reinaldi. La Pepona teve idas e vindas entre La T e La B, sendo o maior artilheiro geral do Belgrano assim como nome ativo das grandes campanhas alviazuis nos anos 70, sendo chamado pela seleção como jogador tallarin.

Reinaldi estava na campanha quase campeã de 1977, a ofuscar bom momento do próprio Belgrano: os celestes, em 5º na classificação geral, ficaram em segundo lugar no seu grupo, mas o regulamento duríssimo previa que só o líder avançava. Foi o Independiente, exatamente quem, adiante, teria de se superar para bater o Talleres na final. E como hoje Belgrano e Talleres podem estar na elite argentina? Em 1985, o torneio Nacional foi extinto. Acertou-se que a segunda divisão do Metropolitano seria nacionalizada para a temporada 1986-87. Em 1986, então, realizou-se um torneio federal entre os campeões provinciais de 1985 para definir os representantes do interior na nova segundona argentina. O Belgrano venceu e se gaba de ser o único clube cordobês campeão de um torneio de elite da AFA. Mas só conseguiu sair da segundona em 1991, ano em que o clássico enfim realizou-se no campeonato argentino.

José Reinaldi: o vira-casaca de mais sucesso, maior artilheiro de La B e jogador de seleção por La T

Entre quase trezentos jogos, um décimo ocorreu em campeonatos da AFA. O clássico cordobês saiu da liga local pela primeira vez em 4 de agosto de 1974, travado no campo neutro do Instituto pelo Torneio Nacional. Miguel Patire abriu o placar para o conjunto do bairro Jardín aos 12 minutos, e Juan Jiménez igualou aos 78 para La B. Novo empate veio em 6 de outubro, um 0-0 no estádio belgranense. Foi o ano em que o futebol cordobês teve sua primeira campanha destacada no Nacional, com o Talleres, treinado pela lenda Ángel Labruna, participando do octagonal final. Foi assim que Labruna credenciou-se para voltar a seu River e tirá-lo em 1975 do maior jejum millonario, dezoito anos pendentes desde 1957, quando o treinador ainda defendia o time de Núñez.

Quem substituiu Labruna no Talleres? Adolfo Pedernera, outra lenda de La Máquina do River dos anos 40. Os alviazuis, em 25 de setembro de 1975, conseguiram a primeira vitória nacional no clássico, um 2-1 (o tallarin Oscar Fachetti abriu o placar de cabeça aos 7, Manuel Magán empatou de pênalti aos 33 e Víctor Binello decretou a vitória aos 72) no campo de La T – mesmo encarando um Belgrano recheado de membros do Independiente tetra da Libertadores entre 1972-75: o bairro de Alberdi havia abrigado o goleiro Esteban Pogany, o armador Hugo Saggioratto e o técnico Roberto Ferreiro. Em 26 de outubro, igualaram em 2-2 no reduto celeste.

Esses foram os únicos clássicos pelo Torneio Nacional. A rivalidade ficou restrita à liga cordobesa até 1991. Nesse período, a torcida celeste, se não podia desfrutar dos mesmos holofotes, podia gabar-se de impôr um tabu de quase quinze anos, desde 1982 – foram 26 clássicos invictos, quantidade nunca alcançada por outra rivalidade argentina (outra semelhança a Remo x Paysandu, onde os remistas cantam 33…). O reencontro na seara nacional em 1991 rendeu até capa da revista El Gráfico, a contar histórias desde a um secretário da fazenda da província perguntar a escalação tallarin a repórteres antes de uma reunião importante; até de um torcedor celeste radicado há cinco anos em Veneza, que viajou por dois dias seguidos para “comer um choripán e ver La B“.

Foi uma convulsão em Córdoba. Canais queriam transmitir o jogo mesmo sem ter comprado os direitos, “por uma questão social”. O Talleres concentrou-se na cidade, “porque para nós este é só um jogo mais”, nas palavras de desdém do técnico Eduardo Luján Manera. Afinal, sua equipe vinha há onze anos na elite argentina e era a líder invicta. Carlos Biasutto, sua contraparte no Belgrano, entendeu melhor. Os celestes se concentraram a 70 km dali, em Las Valquerías, “porque esse é O jogo”. Que teve a maior arrecadação da rodada, 400 mil dólares. Os alviazuis reclamaram de um traumatismo craniano do beque Osvaldo Coloccini (pai de Fabricio) e de uma falta que tirou de campo o astro Marcelo Trobbiani apenas 42 segundos depois que ele, campeão da Copa do Mundo de 1986, entrou em campo.

Cenas do primeiro clássico pelo campeonato argentino, em 1991: Belgrano 3-0. Na foto à esquerda, o lance do gol de Monserrat em seu primeiro toque na bola

42 segundos também foi a diferença entre a entrada em campo de Roberto Monserrat e seu primeiro toque na bola, que resultou no último gol dos 3-0 para o Belgrano no estádio Mario Kempes (então Chateau Carreras), em 27 de outubro. Na revanche, em 19 de abril de 1992, vitória celeste por 2-1 na qual três jogadores foram expulsos antes dos 22 minutos: os alviazuis Gustavo Dalto e Catalino Rivarola (futuro gremista) e o celeste Marcelo Ávalos. Monserrat fez de novo um dos gols, mas perdeu um pênalti que daria nova vitória seguida no 0-0 de 1º de novembro de 1992. Novo 0-0 veio em 25 de abril de 1993. O tabu de La B aumentava, mas ela terminou rebaixada. Logo voltou, e em 3 de dezembro de 1994 o clássico também. E a freguesia se mantinha, com os recém-ascendidos se impondo com um 1-0, gol do matador Luifa Artime, maior artilheiro belgranense contando-se só jogos do campeonato argentino.

Em 4 de junho de 1995, o Talleres jogou já rebaixado o duelo. Arrancou um empate em 1-1. O clássico voltou em 29 de setembro de 1996, agora com ambos na segunda divisão. Para livrar-se do jejum, os alviazuis, supersticiosos, usaram sua “terceira cor”, o grená. Levaram ainda assim de 2-0, gols de Darío Gigena (futuro ponte-pretano) e Horacio García. O fim do tabu veio com juros em 16 de novembro do mesmo ano: treinado por Ricardo Gareca, La T fez 5-0, com três gols no segundo tempo entre os 2 e os 9 minutos. Destaque a José Zelaya, primeiro a marcar três vezes no clássico na esfera nacional.

Não houve nem espaço para gol de honra, pois Artime teve um pênalti defendido por Mario Cuenca. O tabu agora virava tallarin: 1-0 em 15 de dezembro de 1996, 1-0 em 5 de abril de 1997, 2-2 em 15 de novembro de 1997, 2-2 em 14 de março de 1998 (com o goleiro Cuenca marcando de pênalti) e 1-0 em 1º de julho de 1998. Esse último jogo foi válido pela primeira final da segundona. Na partida da volta, o tabu caiu mas quem sorriu foi do mesmo jeito a equipe do bairro Jardín: derrotada de virada no tempo normal por 2-1, ela ganhou nos pênaltis por 4-3, no “dia da freguesia alviazul”. Contamos essa história neste outro Especial.

O Belgrano, em uma repescagem, também pôde subir à elite, que em 5 de dezembro de 1998 voltou a ter o clássico: Talleres 1-0, gol do ídolo Diego Garay a seis minutos do fim. Em 13 de junho de 1999, um modorrento 0-0 satisfez a ambos, que se salvavam do rebaixamento. Diferente de 3 de outubro de 1999, um baile tallarin por 3-1. Gigena agora defendia La T e fez um dos gols, assim como faria dois meses depois sobre o CSA na final da Copa Conmebol, a taça mais expressiva do clube e da província.

À esquerda, clássico em que o Talleres usou (sem sucesso) o grená para tentar afastar jejum de quase 15 anos. Ao meio, a final de 1998 e o “gol do silêncio” em 2007, festas alviazuis

Novo 0-0 em 12 de abril de 2000 foi sucedido por um 1-1 em 5 de agosto. O sofrimento celeste enfim ruiu em 14 de fevereiro de 2001: Julio López, de falta, fez o único gol do clássico – sobre um Talleres classificado à Libertadores de 2002 (ainda a única a contar com um clube cordobês). Nova vitória do bairro de Alberdi veio em 24 de novembro de 2001, também por 1-0. O dia 21 de abril de 2002 rendeu o último clássico na elite. Ameaçado de rebaixamento, o Belgrano, treinado pelo ídolo Tomás Cuéllar (veterano da estreia cordobesa no Torneio Nacional, em 1968) não resistiu e perdeu de 3-1.

O Talleres, porém, começou a flertar com o rebaixamento, do qual não escapou em 2004 mesmo fazendo campanha que ironicamente lhe classificaria à Copa Sul-Americana. O dérbi voltou em 23 de outubro de 2004, na segunda divisão, e deu Belgrano 1-0, seguido em 16 de abril de 2005 por um monótono 0-0. Em 12 de novembro de 2005, nova vitória celeste, por 2-0. La B voltou a ficar com a vitória no encontro seguinte, o 2-1 de 15 de abril de 2006, na campanha que lhe recolocou na elite. Os celestes logo caíram e o dérbi voltou em 3 de novembro de 2007. Foi a tarde do gol del silencio: após cinco anos, o Talleres venceu, gol de Iván Borghello no primeiro duelo sem torcida visitante. Apenas a dos celestes se fazia presente no Chateau Carreras.

Em 3 de maio de 2008, agora só para torcedores alviazuis, o duelo ficou no 0-0. A norma de torcida única, novamente para os celestes, se repetiu em 18 de outubro de 2008 (1-1); e no 0-0 de 29 de abril de 2009, onde o clássico, que vinha se realizando sempre no estádio provincial, voltou à casa tallarin, La Boutique. La T seria rebaixada à terceira divisão. Voltou em 2011, mas sem receber a companhia do rival, recém-ascendido à elite após virar manchete mundial rebaixando o River. Desde então, o clássico só havia se repetido oficialmente em 13 de março de 2013, pela Copa Argentina. De um lado, um clube sólido na elite. De outro, um que estava outra vez na terceirona. E que, mesmo com reservas, venceu por 1-0, gol de Gastón Bottino para a equipe do bairro Jardín.

Já sobre a volta do clássico, não estranhe se em alguma transmissão não entender nada na primeira audição. O característico sotaque local toma algumas licenças poéticas. O dígrafo LL é lido como “I”, tal como fazem os franceses, ao invés do que ordena o castelhano (no qual o som deveria ser o do nosso “LH”) ou o sotaque portenho – que rende uma mistura dos nossos “DJ” e “X”. E, de forma mais marcante, reforça-se a pronúncia da sílaba anterior à tônica – exceto, claro, quando ela já for a primeira ou única sílaba da palavra. No dialeto “cordôbes”, hoje o “Bélgrano” não pegará o “Talheres”, o “Tadjeres” ou o “Taxeres”, e sim o “Táieres”. Já falamos dos primórdios da dupla, e consequentemente, da rivalidade: clique aqui para a nota do centenário tallarin e aqui para a dos 110 anos celestes.

Abaixo, fotos de clássicos diversos. Clique ou espere alguns segundos para avançar uma a uma. Mas abaixo, um pouco mais da história da rivalidade explicada no Twitter oficial do Belgrano.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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