Alejandro Javier Sabella é mais conhecido pelos feitos como técnico: antes de devolver a Argentina às finais (e às semifinais também) de Copa do Mundo após 24 anos e de propiciar que Messi vivesse sua fase mais prolífica na Albiceleste, Sabella já havia levantado com apenas seis meses da nova carreira a Libertadores sonhada havia 39 anos pelo seu Estudiantes. Discreto, El Pachorra também merece ser lembrado pelo grande craque que foi, sobretudo no clube de La Plata e com seus momentos no River, a fazerem do ex-camisa 10 um dos primeiros jogadores que o então fechado futebol inglês importou em massa para além das Ilhas Britânicas. E neste dia 8 de dezembro de 2020, ele nos deixou precocemente.
Nesta matéria, publicada no dia dos 65 anos de Sabella, focamos na carreira inicial, a incluir ainda uma passagem agridoce pelo Grêmio.
Sabella veio da classe média, crescendo na esquina das ruas Vidt e Paraguay, no bairro portenho de Palermo. Filho de um engenheiro agrônomo com uma diretora escolar, não precisou trabalhar na infância mas tampouco usufruía de luxos como comer fora de casa, vestindo-se com roupas feitas pela própria mãe. O dinheiro que sobrava na família era em boa parte usado para mantê-los como sócios, ironia, de um Gimnasia y Esgrima: o de Buenos Aires mesmo, um tradicionalíssimo clube social fundado ainda em 1880 e que inspirou homônimos país afora, ainda que desativasse seu time de futebol competitivo ao ser rebaixado em 1916 (ano em que sediou a primeira Copa América, após ser sede dois anos antes dos primeiros Brasil x Argentina). O pai atuava nas peladas internas do GEBA e os filhos seguiram o exemplo. Alejandro chegou a vivenciar cinco anos de invencibilidade pelo seu quadro e por conta do GEBA fez sua primeira viagem internacional: ao Brasil, para enfrentar em São Paulo outro clube de tradição sem futebol competitivo, o Pinheiros.
Outra ironia: Sabella torcia pelo Boca e, tendo mão destra, já teorizou que não nasceu canhoto nos pés, desenvolvendo sua habilidade na perna esquerda ao espelhar-se no grande ídolo xeneize dos anos 60: Ángel Rojas, o Rojitas, espécie de Riquelme da época – chegando a festejar no jipe do pai a conquista do Nacional de 1969, a única onde os auriazuis terminaram campeões argentinos ao fim de um Superclásico dentro do Monumental. Ele chegou a fazer testes no clube original do coração e também no Racing, sem vingar. E exatamente em 1970 terminou parando no River, por conta da amizade do pai de um colega de GEBA com um delegado millonario. As palavras a partir daqui são tiradas da longa entrevista que ele deu em 2009 à El Gráfico: “me dava vergonha. Mas insistiram tanto que fui e me testei. Quando perguntaram a idade, por conselho desse pai, disse que era de 1955, porque eu era pequenino no físico, embora seja de 1954. Fui bem e tinha que ir na prova definitiva no fim do ano. Tinha pânico de dizer a verdade. Fui, andei bem e quando o delegado me perguntou a idade e disse que era de 1954, quase me mata. Mas me inscreveram do mesmo jeito. Me testou Bruno Rodolfi, um histórico volante do River”.
O tal Rodolfi, de fato, defendera o time por quatorze anos, sendo colega de Di Stéfano nos anos 40. Sabella, por sua vez, ainda nas inferiores conheceu Daniel Passarella, outro torcedor do Boca (e devoto eterno do Rojitas) que viria a assimilar-se riverplatense e com quem construiria sólida relação. Chegaram juntos às seleções juvenis e estrearam no time adulto do River no mesmo ano, em 1974 – ano em que Sabella também ganhou seu apelido mais famoso, do locutor Marcelo Araujo, ainda em atividade. Chamado de Cabezón na infância, virou El Pachorra (“O Bicho-Preguiça”) por prezar pelo hábito da siesta (“não foi porque eu não corria em campo, heim!”, gargalhou naquela mesma entrevista). Também foi chamado de Mago após um amistoso com o River em Misiones onde aproveitou um peixinho para marcar um gol com o calcanhar, após errar o tempo de bola para o cabeceio que originalmente pretendia. A profissionalização significou o fim de seu curso de direito, mas permitiu ao jovem vivenciar de imediato uma das maiores festas do River: a quebra em dose dupla do incrível jejum de dezoito anos que acometia Núñez, finalizado com a conquista tanto do Torneio Metropolitano como da do Torneio Nacional em 1975. O meia deixou quatro gols ao longo das duas campanhas, incluindo um no Estudiantes.
Não que Sabella fosse titular, na sombra de um concorrente ainda mais talentoso e querido na camisa 10: Norberto Beto Alonso, espécie de Zico millonario que integraria a Argentina de 1978. Para 1976, ele ganhou mais espaço com a saída do volante Miguel Ángel Raimondo, formando o quarteto do meio-campo com Alonso, Juan José López e Reinaldo Merlo na campanha finalista da Libertadores, onde o ponto alto foi destronar na semifinal um Independiente que vinha de um recordista tetra seguido no torneio. Sabella esteve nos três jogos da decisão. Outra ironia: o técnico campeão da edição de 2009 terminou vitimado pelo Cruzeiro, que em suas palavras “era uma grande equipe e nós chegamos com vários titulares fora. A amargura foi muito grande. Ainda assim, só tive real dimensão da derrota no ano seguinte, quando o Boca ganhou La Copa. Aí aumentou a frustração”. A boa campanha terminou por render na venda de Alonso ao Olympique de Marselha, mas Sabella passou então a concorrer com Victorio Cocco, um dos quatro maiores campeões profissionais que o San Lorenzo teve no século XX, e Alberto Beltrán, que chegou a ser visto como mais talentoso do que Kempes e Ardiles no elenco em que jogavam no Instituto de Córdoba.
Assim, Sabella não atuou tanto na campanha campeã seguinte do River, no Metropolitano de 1977, onde deixou quatro gols – incluindo contra Independiente e San Lorenzo. A falta de espaço o fez topar uma oferta da segunda divisão inglesa. A polêmica de 1966 a marcar o nome de Antonio Rattín não impedira que o ex-volante do Boca tivesse reputação com a classe operária britânica mesmo na época, e ele se tornara representante do Sheffield United na América do Sul. O alvo inicial do clube era o adolescente Maradona, mas não havia dinheiro. Mario Zanabria, o Riquelme dos anos 70, também foi segurado. Terceira opção, Sabella foi aprovado ao ser assistido pelos emissários dos alvirrubros em um Superclásico na Libertadores de 1978. O mercado inglês havia acabado de abrir-se, importando na mesma leva três recém-campeões mundiais: Alberto Tarantini viveria uma experiência-relâmpago no Birmingham City, ao passo que Ardiles (veja aqui) e Ricardo Villa (aqui), embora não automaticamente, virariam ídolos históricos no Tottenham Hotspur.
Outra ironia? Sabella terminou sua primeira temporada rebaixado à terceira divisão, ainda que em uma edição embolada onde dez pontos separaram o antepenúltimo Sheffield United do 6º colocado (o Notts County). O argentino destacaria esse paradoxo: “fui muito bem a nível individual porque quando elegeram o time do século, em 2000, me colocaram. Significa que algo eu fiz. Caímos para a terceira e as pessoas entraram para nos carregarem nas costas. Nos diziam: ‘no ano que vem, subiremos’. Contas e não acreditam. Não sei como seria agora, mas isso foi incrível”. O argentino não conseguiu o acesso na temporada 1979-80, com o United em 12º enquanto quem subiu à segundona foi justamente o rival Sheffield Wednesday, mas o bom nível individual o fez subir diretamente à elite: foi contratado pelo tradicional Leeds United. “Aí joguei na primeira, mas tive um problema: o técnico que me levou durou cinco jogos, veio outro, e este novo gostava de um futebol a um toque. Os treinos eram todos a um toque, e isso me matou, porque me encantava manter a bola. Não o critico, só digo que ia contra meu estilo, então não joguei muito”.
A falta de espaço rendeu uma das maiores anedotas da raposa Carlos Bilardo. O polêmico Narigón conseguiu a façanha de convencer os cartolas do Leeds a liberarem aquele talento, mesmo reserva, por apenas dois mil dólares, pechincha obscena mesmo para os padrões da época: “Carlos foi com pouca grane e me pediu algo emprestado, se não lembro mal. Brigamos e choramos bastante. Jogamos em um sábado, me lembro, depois fui buscar Carlos na estação de trem, o deixei no hotel e no domingo de manhã passei a busca-lo e nos juntamos no Leeds com o gerente e seu assistente. Os caras estavam apressados porque, imagine, era domingo, que para eles é sagrado e queriam passear com suas mulheres! Eu servia de tradutor. Carlos levou uns recortes de jornais sobre a crise econômica que havia na Argentina e que o Estudiantes estava fazendo um grande esforço. E os convenceu”. De fato, na época a religião anglicana imperava contra partidas de futebol aos domingos, inspirando nota da revista El Gráfico destacando que “o sábado inglês é argentino”, ao reunir Sabella à beira do Tâmisa com Ardiles, Villa e o também talentoso Claudio Marangoni (do Sunderland). Sabella veio a La Plata em 1982 e não tardou a se mostrar um dos maiores custos-benefícios já pagos no futebol.
Sabella vivera na Inglaterra na época dourada do Nottingham Forest e a imagem do Estudiantes poderia ser similar: os platenses tinham mais títulos internacionais (um Mundial e três Libertadores) do que domésticos, erguidos quase na totalidade entre 1967 e 1970 – excetuando o campeonato argentino amador de 1913 e a segunda divisão de 1911 e 1954. O Pincha ainda convivia com a má fama de um time que fora vencedor mais na base da truculência e astúcia do que do futebol bonito. El Pachorra então orquestrou o elenco que faturou o Metropolitano de 1982, o primeiro troféu desde a Era 1967-70, sofrendo inclusive o pênalti que abriu o placar na rodada do título. O feito alçou o técnico Bilardo para a seleção – e Sabella pôde enfim estrear na Albiceleste no primeiro jogo da Era Bilardo, o 2-2 com o Chile em Santiago em 12 de maio de 1983. O chamado não se resumia a uma panelinha: o Estudiantes estava tão bem que, mesmo sob novo comandante, Eduardo Luján Manera, logrou no mês seguinte o único bi seguido dos alvirrubros no campeonato argentino, levantando o Nacional de 1983 (Sabella deu a assistência para abrir o placar na final com o Independiente). Com um detalhe: batalha de La Plata com o Grêmio à parte em julho, aquele Estudiantes foi reconhecido como dotado de um bom futebol aos olhos.
Aquele bi representou os únicos troféus do Pincha na elite no século passado. O clube seguiu no pódio em 1984 (terceiro colocado) e Sabella, na seleção, embora curiosamente só tenha vencido uma partida pela Argentina, mas que partida: o 1-0 sobre o Brasil (gol de Ricardo Gareca) que encerrou um jejum de treze anos desfavorável aos hermanos no clássico. Também só foi derrotado uma vez em oito jogos, justamente em sua involuntária despedida, ainda em 18 de julho de 1984, derrotado por 1-0 pelo Uruguai em Montevidéu. Os empates permearam a trajetória do meia pela seleção, incluindo dois 0-0 arrancados contra o Brasil em solo rival. Dado como contratado pelo Internacional em fevereiro de 1984, terminou efetivamente negociado com o rival Grêmio em janeiro de 1985 – estreando no mês seguinte contra o Cruzeiro, no Brasileirão. Sabella declararia: “fui com 30 anos e pensei: ‘enfim vou treinar menos, me divertir’. Para quê? Fui ao sul do Brasil, em território gaúcho. Cheguei, fui à revisão médica e havia três brasileiros em macas, com cicatrizes de 20 centímetros, todos operados nos ligamentos. Nunca treinei tanto em minha vida como aí, turno duplo todos os dias. Antes do segundo jogo, tinha que subir a escada em espiral da concentração e fiz quase de joelhos, usando as mãos e os pés”.
Sempre extenuado até para aproveitar socialmente Porto Alegre com a família, não se acostumou a cidade e o time em desmanche também não contribuiu para que ele (assim como o clube) se destacasse no Brasileirão – ele já chegara sob a cobrança de preencher no coração gremista a lacuna deixada pelas saídas recentes de Tita e Hugo de León. A avaliação na Placar de sua estreia acabaria por resumir a estadia tricolor do Pachorra: “nota 6. Criativo, mas sem ritmo. Bem marcado”. O argentino pôde levantar no segundo semestre o título estadual, mas no início de 1986 acertou um empréstimo de três meses a seu Estudiantes, de olho em uma possível vaga na Copa do Mundo. Até deixou um gol pelo 16º colocado (de 19 times) contra o Boca já na 32ª rodada do campeonato argentino de 1985-86. Com o ex-mentor Bilardo abrindo espaço mesmo a quem não participara das eliminatórias, discutiu-se sua inclusão até o último momento, mas isso não ocorreu. “Estavam Maradona, Bochini, Tapia e Trobbiani, todos excelentes jogadores, o que posso dizer? Na primeira vez que treinei (com Maradona), foi um baque. Voltei a minha casa totalmente deprimido, pensando que eu não sabia jogar futebol”.
Sabella voltou brevemente ao Rio Grande a tempo de participar do bi estadual seguido com o Grêmio em julho de 1986 e reconheceu alguns ensinamentos assimilados nos pampas: “do Valdir Espinosa, no Grêmio, me ficou uma frase: ‘o futebol é uma luta pelos espaços; o que melhor e mais rápido os ocupa, ganha’. Rubens Minelli se enojava quando tínhamos a bola e não chutávamos a gol”. Mas em agosto El Pachorra já se despedia de vez do Olímpico para ter um terceiro ciclo no Estudiantes ao longo da temporada argentina de 1986-87, sem o mesmo êxito de outrora (12º lugar). Seguiu na temporada seguinte como jogador do Ferro Carril Oeste, premiado pela Unesco na época, mas já não pelo futebol de 14º lugar. O meia estendeu a carreira por mais um ano, no Irapuato da liga mexicana. Em paralelo, seu velho compadre Daniel Passarella também pendurava as chuteiras no River, para já em janeiro de 1990 assumir como técnico do clube. O ex-zagueiro logo chamou o amigo para trabalhar consigo, com Sabella assumindo inicialmente o time B do Millo.
O agora ex-meia então tornou-se auxiliar-técnico quando Passarella assumiu a seleção após a Copa de 1994, seguindo-o fielmente também pela seleção uruguaia, Parma, Monterrey (as malas prontas para o México o fizeram inclusive declinar um convite para ser técnico do Estudiantes ainda em 2004), Corinthians e em nova etapa de River. Então o Kaiser rumou para a (desastrosa) trajetória de presidente millonario. “Livre”, Sabella voltou a ser sondado por ninguém menos que Juan Ramón Verón, o cracaço Verón pai, para assumir no início de 2009 o Estudiantes. “Havia falado com Daniel umas semanas antes, e me disse que se recebesse uma oferta, que aceitasse sem duvidar, que ia ficar contente por mim. Quando passamos do Libertad nas oitavas, aí sim vi que podíamos sonhar em chegar na final. Na fase de grupos, ganhamos de 4-0 do Cruzeiro e as conclusões do corpo técnico foram duas: tomara que não tenhamos que jogar nunca mais contra esse time, e eles chegam à final. Nos pareceu um timaço a despeito do resultado, que havia sido meio mentiroso. Quando nos calhou a final, lembrei que a única vez que cheguei a uma final de Libertadores havia sido em 1976 contra o Cruzeiro a havia perdido”.
“Isso é algo que sempre falamos no plantel: a mente, o equilíbrio emocional são fundamentais. Manter o equilíbrio, que em geral é o primeiro que se perde, é a chave, tanto se vais bem como se te vai mal. Não se desorganizar ante uma adversidade nem fazer-se punir. Quase sempre que expulsam por duplo amarelo, o primeiro é uma tolice absoluta. Por sorte, empatamos rápido. Isso sim foi um golpe enorme neles”, comentaria Sabella sobre aquela final que recolocou o Pincha no topo da América mesmo não saindo do 0-0 em casa (o que segundo o treinador não foi visto como um fim do mundo, com o elenco já escaldado com a final da Sul-Americana de 2008, onde soube vencer fora de casa o Internacional no tempo normal) e começando perdendo no jogo da volta, no Mineirão. Foi a única final Brasil-Argentina de Libertadores onde os hermanos lograram uma virada em solo tupiniquim para serem campeões. O time estaria ainda muito próximo de um título mundial frente ao Barcelona, que forçou a prorrogação já no fim da partida. Em seguida, veio o vice por um mísero ponto no Clausura 2010 e o último título do Estudiantes até hoje, no Apertura seguinte. Um semestre depois, com a queda precoce de Sergio Batista na seleção argentina, Sabella então foi chamado a substitui-lo.
Sabella optou por sair ao fim da Copa do Mundo de 2014, sem trabalhar mais – e comovendo os argentinos com um visível declínio de sua saúde, do qual sua família não fala. Sobre o grande senão da passagem na Albiceleste, a panelinha exagerada com velhos conhecidos de Estudiantes (Marcos Rojo, Federico Fernández, Agustín Orión, Enzo Pérez terminaram na Copa de 2014 ao passo que Christian Cellay, o veterano Rodrigo Braña, Mauro Boselli e “aquele” Leandro Desábato também foram empregados nas eliminatórias), talvez sirvam de antemão as palavras que usou para romantizar sua ligação com os alvirrubros – ao ser indagado em 2009 sobre a mística pincha: “é difícil definir algo que se sente, se palpa, se respira. A mística é um pensamento, são jogadores que vêm ao refeitório de chinelos para pedir água para o mate, são os quadros pendurados na concentração, os nomes de Zubeldía e Prátola nas placas que nomeiam distintos lugares. Em síntese, é sentir-se identificado com um clube. Estudiantes é um clube grande e pequeno ao mesmo tempo, uma mescla de gigante e de família difícil de explicar”.
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