Alberto Márcico, o maestro de nanicos que encerrou pior jejum do Boca
“Talento em sua forma mais pura, mistura de talento sul-americano com dinamismo europeu” é a descrição dada pela enciclopédia oficial do centenário do Boca a Alberto José Márcico, na seção destinada aos cem maiores ídolos xeneizes. Em longa entrevista dada em 2007 à El Gráfico, a última pergunta insinuou a mesma coisa de modo mais poético: “és um correntino com códigos de Barracas e um toque francês. O que prevalece?”. El Beto, que hoje faz 60 anos, curtiu: “uma mescla estranha, não? Mas eu tenho mais de Barracas, sem dúvidas”, brincou o volante que não só soube brilhar os momentos áureos de três times pequenos – nos dois títulos do Ferro Carril Oeste na elite, na melhor campanha do Toulouse na Ligue 1 e no Gimnasia LP sempre no páreo por taças nos anos 90 – como protagonizou o fim do pior jejum nacional de um gigante feito o Boca, seu time do coração.
Mestre na arte de manter a bola arqueando o corpo e cobrindo-se com os braços, gerando beleza seja desviando dos rivais rumo ao gol ou servindo aos pontas (foi essa a definição dada a ele em outro livro de centenário, o do Ferro), Márcico só não foi goleiro e zagueiro. A polivalência de quem começou como meia-armador, avançou para centroavante, ainda nos tempos de Ferro, e seguiu por Boca e Gimnasia quase como um refinado cabeça de área foi valorizada pela visão tática de Carlos Bilardo na seleção também – ainda que a ida a um nanico francês e a concorrência pesada com Maradona e Burruchaga contribuíssem para a ausência do Beto no Mundial de 1986. Márcico nasceu apenas por acaso em Corrientes, perto da fronteira com o Paraguai.
Segundo aquela mesma entrevista (de onde tiraremos a maior parte das aspas dessa nota). “meu pai era capitão de barco e viajava muito, também pelo Brasil e Paraguai. Ficamos aí por um tempo e eu nasci, mas aos 8 meses viemos para cá”, explicou, referindo-se a ter crescido desde pequeno no bairro portenho de Barracas em uma família com cinco irmãos, incluindo um gêmeo não-idêntico. Viviam em um conjunto onde cozinha e banheiro eram compartilhados com outros seis apartamentos. “Em geral não faltava comida. Isso sempre havia, então não passei fome. Complicado era banhar-se: tinha que fazer fila e pôr o querosene acima para esquentar a ducha. Te acostumavas”. A casa onde viviam em Barracas se situava na mesma rua Brandsen que, a nove quadras dali, situa-se La Bombonera, no também humilde bairro vizinho de La Boca. Isso e a própria torcida do pai pelos auriazuis cultivaram desde cedo a paixão do craque pelo clube.
“Tínhamos só 3 carnês de sócio, então entravam três, saía um com os três carnês e fazíamos a típica pedalada. Hoje não é necessário tanta sofisticação: passam por cima das catracas” foi uma das diversas comparações negativas com os tempos recentes feitas por ele, que deu seu jeito de acompanhar as finais do primeiro título do time na Libertadores, em 1977: “nunca vi tão cheio o campo como naquela final contra o Cruzeiro. No desempate, em Montevidéu, também fui com uns amigos. Fui de ônibus, no piso. É certo, não tinha um mango, mas antes era diferente: não tinhas grana e te deixavam subir, de diziam: ‘ok neném, passe’. Ficas pensando que as pessoas nessa época eram mais humanas, não tinha problemas de dindim. Eu tinha 16 anos. E o jogo se atrasou em um dia pela neblina, então fiquei dormindo no busão. Não tinha o que comer, mas o pessoal do Boca te dava algo. Fui sem um mango, com a mesma roupa, todo sujo, e entramos na arquibancada empurrando com meu amigo. Minha mãe quase me mata. Tinha que fazer isso, não podia não ir à final”.
O sonho de defender o clube do coração se cumpriu perto dos 32 anos (“no meu primeiro dia na Bombonera, entrei no campo vazio e não podes imaginar minha emoção. No dia que estreei, assim que pisei no gramado, olhei para o lugar onde ia sempre como torcedor. Não podia acreditar. Quando garoto, vivia no Boca. Passava minhas férias na piscina do Boca, conheci minha primeira namorada no Boca”), mas poderia ter vindo bem antes. Márcico não deixou de tentar a peneira por lá quando ainda tinha 15. “Joguei um rachão, mas não me olhavam. Meu irmão gritava aos técnicos: ‘olhem este, que é torcedor do Boca, por que não o observam?’. Nada aconteceu. No Chacarita, também me despintaram. Num teste é preciso ter um pouco sorte para que te vejam. Hoje te dão mais bola, é diferente, porque virou negócio. Me testei no Racing, onde estavam [Juan Carlos] Cacho Giménez [consagrado lá como jogador e técnico nos anos 50]. Fiquei, mas como cheguei depois das inscrições, não podia jogar. Me aborrecia como louco. Então saí. Tinha quase 17 anos”.
“Dois anos depois, já bem grande, com 19 anos e meio, um amigo me comentou que estavam testando no Ferro. Fui. Quem fazia o teste? Cacho Giménez. ‘Conheço você’, me disse. E em seguida se lembrou e me mandou jogar. Fui bem e me disse que ia me chamar em pouco tempo”. E assim começou a meteórica trajetória dele no clube do bairro de Caballito. “Não tive muito tempo. Uma semana depois, ligou para casa e me convocou para jogar uma partida oficial do sub-19, contra o All Boys. Não tinha nem chuteiras, então fomos a uma loja de esportes, porque conhecíamos o dono e compramos um par. No dia seguinte fui ao banco, perdíamos de 3-0 e me fez entrar nos últimos 15 minutos. Entrei e meti um gol impressionante. No outro dia, me inscreveu. 15 minutos e dentro. Assim são as coisas do futebol: sempre precisas de um toque de sorte. Assim comecei a carreira no futebol, com quase 20 anos, sem ter feito juvenis”.
“Notei nos primeiros tempos [essa diferença], porque me cansava muito. O tema era no físico, não o futebolístico, porque eu vinha jogando na favela por grana, na favela da rua Luna, perto do campo do Huracán. Sábado e domingo jogávamos por uns trocados todo o dia. Nesses fins de semana muitas vezes duplicava meu salário com o que ganhava jogando. Mas não havia problemas, nem brigas, não se jogava com má intenção, havia códigos na favela. Antes, agora é diferente. Agora os pivetes vão te roubar”. Ele enfim estreou no time adulto em 6 de agosto de 1980, já pela 34ª rodada do Torneio Metropolitano realizando a primeira das 210 partidas – curiosamente, também contra o All Boys, vencendo fora de casa por 4-1. Foi usado em todas as partidas restantes, embora ainda se alternasse com o classudo paraguaio Julio Jiménez; no Torneio Nacional, só foi usado quatro vezes.
Mas o ano seguinte seria um bom presságio. Márcico foi usado trinta vezes no Metropolitano (com dois gols marcados) e quinze no Nacional. E o Ferro, historicamente um time das últimas posições e colecionador de rebaixamentos, foi vice nos dois torneios. Demérito ainda mais inexistente ao considerar-se que para aquele ano o Boca sacudiu o mercado com a vinda de Maradona, e o River respondeu trazendo Kempes. A aposta em Maradona logo se cumpriu, com os auriazuis voltando a ser campeões argentinos depois de meia década. Mas não foi fácil: a taça veio na rodada final, com um só pontinho a mais do que o Ferro de Márcico. Os verdolagas já haviam sido capazes de bater fora de casa o Independiente em Avellaneda, o rival Vélez, o Estudiantes (todos por 1-0), o Instituto de Córdoba (em 7-3 sob aplausos da própria torcida adversária) e o Huracán (2-0). Na 20ª rodada, ganharam em casa do San Lorenzo por 2-1, contribuindo para o posterior rebaixamento azulgrana, o primeiro de um gigante na Argentina.
Então veio a sequência mágica para o goleiro Carlos Barisio e seu muro defensivo com Mario Gómez, Héctor Cúper, Juan Rocchia e Oscar Garré, completados pelo volante Gerónimo Saccardi: ficaram intransponíveis pelos dez jogos seguintes, gerando um recorde de 1.071 minutos ainda vigente na Argentina. A sequência incluiu um 1-0 sobre o River em Núñez e um 3-0 no Clásico del Oeste com o Vélez (normalmente dominante no dérbi, La V Azulada viraria freguesa só naqueles dourados anos 80 do rival, premiado até pela UNESCO na época) e um 4-0 na tarde em que o recorde anterior foi quebrado. Márcico inclusive anotou um dos gols dessa goleada que não impediu fair play do adversário Instituto nos aplausos ao recordista Barisio a partir dos 23 minutos do segundo tempo, quando houve a quebra. A invencibilidade foi estendida com um 2-0 no Rosario Central, um 1-0 como visitante do Racing até o time empatar em 1-1 em casa com o Talleres, em gol sofrido quando só faltavam dois minutos para acabar a partida.
A sequência serviu para que o Ferro se igualasse na liderança ao vibrante Boca maradoniano, mas a quebra aparentemente gerou certa ansiedade. O jogo seguinte foi justamente um duelo direto em La Bombonera, já pela antepenúltima rodada, com a empolgada torcida visitante preenchendo as duas arquibancadas fornecidas. Afinal, a diferença de camisas não se fazia sentir tanto nos confrontos diretos, onde o Boca simplesmente não conseguiu vencer em Caballito nenhum deles entre 1974 e 1991. A muito custo, o talismã Hugo Perotti (pai de Diego Perotti, hoje na Roma) achou o único gol da partida, em favor dos auriazuis. Aquela foi apenas a terceira derrota do Ferro no torneio, e a última. O Boca ficou então dois pontos na frente (valor da vitória na época, que não era três), mas foi derrotado na rodada seguinte em Rosario para o Central – com direito a Maradona perdendo pênalti. E o Ferro abriu 3-0 no Huracán.
Mas o adversário, enervado com zombarias a seu declínio como grande, simplesmente buscou o empate em 3-3 dentro de Caballito. Na rodada final, Márcico e colegas até mantiveram o 3-0 aberto diante do Atlanta, mas o empate em 1-1 do Boca com o Racing serviu-lhe para coroar Dieguito, que dessa vez não perdeu o pênalti assinalado. Uma pena: semanas depois, Márcico perdeu o pai, que nunca o pôde ver campeão. Ele e colegas souberam manter a boa fase para o Nacional: liderou o grupo que tinha o River de Kempes, vencido nos dois duelos diretos, inclusive com gol de Márcico. Nos mata-matas, eliminou San Lorenzo, Gimnasia de Jujuy e, especialmente, o rival Vélez nas semifinais. O Vélez, mesmo sob reforço de seu maior matador, o ainda atacante Carlos Bianchi, e tendo eliminado o Boca maradoniano no mata-mata anterior, perdeu por 2-1 em casa e não passou do 1-1 em Caballito. O adversário na final? O River, que, em campanha acidentada, cresceu na hora certa e venceu por 1-0 os dois jogos, coroando o irregular Kempes como ídolo – o atacante voltou de longa suspensão exatamente para o jogo derradeiro e marcou o gol.
Recolhendo os frutos da experiência, o elenco demonstrou em alto estilo como aprendera a lidar melhor com a pressão dos momentos decisivos: não só foi campeão no primeiro semestre de 1982. Foi campeão invicto, algo só visto duas vezes no profissionalismo argentino até então. Enigmático para os grandes e devastador para os pequenos, aquele Ferro de 1982 foi criticado como um time que ganhava jogando feio. Fama um tanto injusta a quem soube vencer por 4-0 fora de casa tanto o Independiente como o rival Vélez em meio às duas fases de grupos. Ou a quem era reconhecido pelo fair play, sem ceras ou violências. Nas semifinais, mais quatro gols nos dois jogos: 4-0 em casa sobre o Talleres e 4-4 em Córdoba, antes da coroação frente o Quilmes. Nem River e Boca haviam conseguido uma taça invicta na era profissional. O Millo só conseguiu isso uma vez, já em 1994, com o rival conseguindo em 1998 (no primeiro troféu da Era Bianchi) e em 2011. O “clube dos profissionais invictos” só reúne esses elencos e dois do San Lorenzo, o do Metropolitano de 1968 (eliminando o recordista Carrizo nas semifinais) e o do Nacional de 1972.
A ressaca foi grande em Caballito, com o Ferro terminando em 9º no torneio do segundo semestre; para Márcico, o melhor momento foi marcar o único gol no clássico com o Vélez. Em um grupo duríssimo com Estudiantes e o potente Cobreloa da época, o Ferro caiu ainda na primeira fase da Libertadores, mas seu craque estava com cartaz para estrear na seleção. Foi na primeira convocação do ciclo de Carlos Bilardo, já para a Copa América. Ele estreou em uma data marcante, na vitória sobre o Brasil que desfez 13 anos de jejum sem triunfos no clássico. Os cartolas logo lhe taxaram em 350 mil dólares para afastar os olhares do América de Cali, cujo cartel vinha turbinando o clube com argentinos. Para o Metropolitano de 1983, o Ferro recuperou-se com a liderança no primeiro turno, onde chegou a ganhar de 4-0 do Boca com Márcico anotando o quarto. Era La Máquina Verde a pleno vapor.
No fim, terminou em 3º lugar a dois pontos do campeão Independiente – fazendo falta os pontos perdidos na polêmica derrota na 20ª rodada contra o futuro vice San Lorenzo, que perdia por 1-0 e partiu para cima do árbitro ao ter um gol anulado; havia regra impondo expulsões se algo assim ocorresse, mas ela não foi aplicada contra os gigantes e sim contra os pequenos, pouco depois: nada menos que cinco verdolagas (Garré, Cañete, Arregui, Brandoni e Noremberg) foram expulsos e o concorrente direto virou sem dificuldades para 2-1. Mas o bronze amargo foi prévia do grande Torneio Nacional que o Ferro faria em 1984, com uma única derrota. Márcico foi o goleador do elenco, mesmo que com apenas cinco gols. Reflexo de uma mudança visível em relação a 1982, onde o time criava dez chances para aproveitar uma, para agora criar menos mas ser mais contundente.
“Diziam que jogávamos sem pressões, mas nos pressionávamos nós mesmos. No Ferro já não bastava ser vice”, depôs o craque ao livro do centenário do clube sobre aquele momento. O que não mudavam eram as críticas de futebol feio desferidas pelos adversários que, mais prestigiados por público e mídia, se mostravam incapazes de bater naquele intruso. A torcida respondeu primeiro, com o cântico “dizem que somos um time entendiante/que especulamos, que jogamos para trás/me chupa um testículo, todo o jornalismo/a Caballito cada vez eu quero mais”. E os jogadores deram a resposta na final, construindo com 35 minutos de primeiro tempo um 3-0 dentro do Monumental sobre o River. Foi a grande exibição da carreira de Márcico (“inesquecível, queria não terminasse mais. O Monumental ficou mudo, todos os jornais me deram 10”).
No lance do segundo gol, Beto deu a assistência no limite da linha de impedimento para Noremberg disparar legalmente sozinho. E o próprio Beto marcou o terceiro, de pênalti. E quase veio um bi seguido, novamente no embalo dele, avançado para centroavante e convertido em um goleador: fez 17 gols (incluindo os dois de um 2-0 no rival Vélez, deixando o dele também no 1-0 sobre o Boca e no 1-1 com o River) em 35 jogos no Metropolitano, onde os de Caballito lutaram pela taça até a rodada final, a premiar pela primeira vez o Argentinos Jrs. Márcico terminou o ano eleito como o melhor jogador do futebol argentino, realizando ainda 11 de suas 16 partidas pela Argentina. O bom momento esportivo, porém, já escondia desacertos financeiros internos. O craque, que perdeu a pré-temporada ocupado com a seleção, já atuava sem contrato.
“Essa diretoria encabeçada pelo [presidente Santiago] Leyden, que era honesta e cuidava do clube com todo o seu amor, aí se equivocou. Não queriam largar nada. Se quando fomos campões nos presentearam com um chaveiro de prata. Um chaveiro pelo primeiro campeonato da história do clube! No fim, perderam um capital valioso”. Ele ainda seguiu em Caballito por mais um semestre, sendo mais uma vez o artilheiro do elenco, agora no Nacional de 1985. Foram dez jogos e cinco gols, dois deles em um 3-0 no Independiente. O time só perdeu duas vezes, caindo já na quinta fase. Sentindo que era o momento de ir ao exterior, Beto rumou por 120 mil dólares ao Toulouse ainda antes da Libertadores. Em sua primeira temporada na França, contribuiu com dez gols na melhor campanha do Toulouse até então na Ligue 1, o 4º lugar.
Mas desde que deixou a Argentina, o Beto foi esquecido das convocações; sua última partida no ciclo de Bilardo deu-se ainda em 26 de maio de 1985, no 3-2 sobre a Venezuela, no primeiro jogo das eliminatórias. Na temporada pós-Copa, seu Toulouse eliminou o Napoli maradoniano na Copa da UEFA e foi ainda além na Ligue 1, com o 3º lugar no embalo de 14 gols do argentino em 25 partidas. Até hoje, essa colocação não foi superada pelo time. Mas Márcico permaneceu esquecido, agora para a Copa América sediada na Argentina. E o time não repetiria campanhas tão boas depois, tirando de vez suas chances de sonhar com um lugar na Copa de 1990, ainda que chegasse a ser oficialmente observado pelo auxiliar Enzo Trossero. O 9º lugar foi o melhor que veio até Márcico despedir-se dos franceses, já em março de 1992. Indagado por uma suposta falta de ambição em procurar um clube mais forte na Europa, explicou: “eu estava muito bem e meus filhos também, não queria sair”.
“O pessoal do Toulouse não queria me deixar ir. No dia em que apareceu a oferta do Boca, dez dirigentes se reuniram comigo e atiraram sobre a mesa um contrato em branco por dez anos, de dois ou três como jogador e o resto como técnico ou gerente. E eu não o aceitei, meu objetivo era jogar no Boca, não pensava em outra coisa. Os caras não me entendiam, me puniram. Inclusive colocaram um coquetel molotov na porta da casa do presidente. Eu tinha uma boa relação com o presidente. Um dia fui comer na sua casa e lhe disse que jogar no Boca era um sonho da vida inteira, assim terminou amolecendo”. O passe foi pago não pelo clube e sim pelo empresário Alejandro Romay, em troca da transmissão televisiva de quatro jogos dos auriazuis. Márcico estreou pelo time do coração em 29 de março de 1992, no 2-0 sobre o Platense. Seu primeiro toque na bola foi com estilo, de calcanhar, e ele ainda cavou um pênalti. Logo os primeiros gritos de “Olé, olé, olé, olé, Beto, Beto” já começavam.
O primeiro gol veio na quinta partida, contra o Unión, onde também sofreu uma lesão no ciático. Márcico foi barrado pelos médicos de treinar, embora jogasse com infiltrações. Segundo ele, por conta disso terminou inchando, gerando a impressão de jogar acima do peso. Em jejum desde aquele título arrancado contra o Ferro em 1981, o clube manteve-se no páreo pelo Clausura até pouco antes da reta final, mas não manteve o mesmo ritmo do Newell’s. Os rosarinos seguraram o 1-1 na Bombonera na 12ª rodada e os bosteros só acumularam metade da pontuação em disputa nas seis rodadas seguintes, ficando em 4º e caindo nas semifinais da liguilla para o Gimnasia LP. A seca caseira, foi amenizada com a Copa Master, troféu oficial da Conmbeol que reunia os vencedores da Supercopa, vencendo-se por 2-1 o Cruzeiro em maio. Já o jejum doméstico enfim seria resolvido no Apertura 1992.
Com o Boca invicto nas 14 primeiras rodadas, Márcico até reapareceu na seleção após sete anos. Foi em 23 de setembro, em 0-0 com o Uruguai em Montevidéu pelo troféu binacional Copa Lipton. Como as vitórias só valiam dois pontos na época, o River seguiu no páreo e mantinha chances na última rodada. O suspense aumentou quando, mesmo na Bombonera, o San Martín de Tucumán abriu o placar. Márcico brincou na entrevista, confessando que chegava a desabafar “vocês querem morrer todos aqui” contra os adversários antes dos xeneizes alcançarem o empate que bastava para o desjejum – comemorando tão energicamente que o astro caiu junto com o alambrado onde celebrava. A tranquilidade não foi mesmo duradoura, diante do racha interno entre as panelinhas falcones e palomas. Sem manejar o vestiário, o maestro uruguaio Oscar Tabárez, com falta de resultados em 1993, terminou demitido. E o retorno de Márcico à seleção terminou se resumindo àquele jogo. Fernando Redondo se firmava e o veterano ficou de fora da Copa América.
Para Márcico, aquela rixa interna não era para tanto: “nos equivocamos em não frear essa bola de neve. Havia afinidades como acontece sempre em todos os planteis. Chino Tapia e Esteban Pogany não gostavam de algumas atitudes do Mono [Carlos Navarro Montoya], e metiam corda em mim, queriam que eu fosse o capitão. Depois falamos com o Mono e lhe dissemos: ‘está bem, Mono, siga você como capitão, mas lute de outra maneira pelos prêmios’. Queríamos que fosse mais enérgico”. Nisso o clube caiu para 7º no Clausura 1993, embora depois vencesse, em julho, a Copa Ouro. Era outro torneio caça-níquel mas oficial da Conmebol, configurado em quadrangular entre os vencedores de 1992 da Libertadores (São Paulo), da Copa Conmebol (Atlético), da Supercopa (Cruzeiro) e da Copa Master, o próprio Boca, que se viu enfrentando três brasileiros. Na semifinal, bateu-se um São Paulo que acabara de ser bi da Libertadores e, na decisão, os argentinos bateram o Atlético. Na intertemporada, Márcico ainda marcou único gol de um duelo com o Barcelona em um torneio em Tenerife.
Sob essa ressaca, o time começou muito mal no Apertura 1993, com seis gols marcados nos oito primeiros jogos – com quatro vitórias e quatro derrotas. Também caiu na primeira fase da Supercopa. O técnico Jorge Habbeger deu então lugar ao sábio César Menotti, que deslanchou o time, a assumir na 12ª rodada. Só viria outra derrota, com o grande momento sendo um 6-0 em um Racing que liderava o torneio. O Boca, embora nesse mesmo período tenha perdido de 6-1 para o Palmeiras e ficado na lanterna de seu grupo na Libertadores de 1994, saltou naquele Apertura 1993 (finalizado só em março de 1994) para uma colocação a dois pontos do campeão River. Só que o time decaiu para um 7º lugar no Clausura 1994 e um 13º no Apertura. Mas dessa vez foi bem na Supercopa, chegando à decisão após anos seguidos caindo logo no primeiro mata-mata. Os avanços mantiveram Menotti no cargo, mas o vice-campeonato fez El Flaco cair ainda antes do fim do tenebrosos Apertura, onde, para arrematar, o River foi campeão invicto pela única vez, com direito a um 3-0 na penúltima rodada em plena Bombonera.
Após um tempo sob comando interino de Enrique Hrabina, o Boca recontratou para 1995 o mesmo treinador do maradoniano título de 1981, o ex-lateral Silvio Marzolini. De fato, o time ficou sem perder as sete primeiras partidas, que incluíram a maior vitória xeneize sobre o Independiente, um 5-0. Já Márcico, no alto dos seus quase 35 anos, deixou o gol dele em um 4-2 sobre o River dentro do Monumental. Ausente da seleção desde o breve retorno em 1992, até recebeu uma convocação de Daniel Passarella, mas não chegou a entrar novamente em campo pela Albiceleste. E seu clube terminou perdendo fôlego na reta final, parando no 4º lugar. No Boca, por sua vez, a reação para o Apertura foi contratar ninguém menos que Maradona e Claudio Caniggia, o que relegou o veterano. “Foi a única vez em que estive excedido de peso. Marzolini me disse que ia jogar com Diego e depois me mandou sempre ao banco. Aí perdi a motivação de treino. Não estava em uma idade para sentar no banco, era uma idade para jogar”.
Márcico ainda assim figurou em 14 jogos da campanha que liderava de modo invicto o Apertura até a antepenúltima rodada. O time então perdeu dois jogos seguidos, foi ultrapassado por Vélez e Racing e chegou à rodada final súbita e melancolicamente já sem chances. El Beto passou a treinar em separado e a torcida do Ferro sonhou por uns dias com o retorno do ídolo. Mas ele preferiu voltar a jogar sob seu antigo treinador em Caballito, que agora trabalhava no Gimnasia LP: era Carlos Griguol, que o observou pessoalmente em um jogo-treino contra os dispensáveis do Boca. “’Quero que venhas, mas tens que perder 6 quilos pelo menos’, me disse. E fui”. E ele mostrou que, em forma, ainda tinha muito a oferecer: ficou a dois gols da artilharia do Clausura 1996 na campanha em que os platenses sonharam com a taça. A bela campanha teve direito a um 6-0 sobre o Boca (curiosamente, com três gols de Guillermo Barros Schelotto) dentro de La Bombonera, que ali inaugurava seu setor VIP. Márcico, de pênalti, deixou o dele, sem comemorar, embora fosse ovacionado pela plateia.
O Gimnasia ainda repetiu o placar contra o Racing, mas um empate na rodada final justo no clássico com o Estudiantes estancou o time um ponto atrás do campeão Vélez. Ironicamente, o goleado Racing depois derrotou o Lobo no jogo-extra de vices (o time de Avellaneda fora o vice dos velezanos no Apertura) pela outra vaga na Libertadores de 1997. Márcico, infelizmente, não pôde oferecer muito mais. Uma séria lesão em 1997 o afastou dos gramados por quase um ano. Voltou a tempo de figurar em dez jogos de nova campanha vice-campeã, no Apertura 1998, embora a campanha invicta do primeiro Boca de Carlos Bianchi impedisse uma concorrência séria pelo título.
Depois que parou, Márcico teve duas experiências em comissões técnicas: foi assistente de Oscar Tabárez em 2002 e o título do Apertura pareceu ao alcance quando os xeneizes seguravam no duelo direto em Avellaneda contra o líder Independiente. O resultado igualava ambos na liderança, mas o Rojo empatou aos 41 do segundo tempo. A diretoria optou por trazer Bianchi de volta para 2003, ano em que Beto foi um dos técnicos do Nueva Chicago. “Cometemos um erro: confiar em 2 ou 3 dirigentes nos quais não tínhamos que ter confiado. Pedíamos um jogador e nos traziam outro, que ainda por cima era mais caro e não queríamos. No momento aceitamos, mas foi um erro. Depois um dos dirigentes teve um processo criminal porque recebeu muita grana por fora…”. Recusando diversas ofertas para virar comentarista, passou a viver um rodízio entre Argentina e França, onde mantém uma escolinha na cidade de Auch, vizinha a Toulouse.