Nossa forma de homenagear o mítico Nelson Mandela é relembrar os africanos que já passaram pelo futebol argentino, o que inclui até uma antiga estrela dos próprios Bafana Bafana. Aliás, uma vitória sobre a África do Sul foi considerada o primeiro grande triunfo internacional do futebol hermano.
O cenário portenho não é exatamente cosmopolita fora da América do Sul, mas já teve reforços além-mar. Afinal, foram os britânicos que introduziram o football na Argentina e foram a base dele até mais ou menos cem anos atrás, no início dos anos 10 do século XX. Um, inclusive, veio da África do Sul, então colônia: o centroavante Charles Whaley, que chegou a jogar pela Argentina. Foi o artilheiro do campeonato argentino de 1906. Naquele mesmo ano, a seleção sul-africana chegou a fazer uma excursão pela América do Sul.
Composta inteiramente por brancos de origem britânica (os de origem holandesa abraçaram mais o rúgbi), ela era forte. Travou doze jogos. Venceu por 6-1 um combinado uruguaio em Montevidéu e por 6-0 um brasileiro em São Paulo. Na Argentina, também deixou goleadas elásticas: 14-0 em um time universitário; 6-0 no Belgrano Athletic, time de Whaley; 9-0 em um combinado rosarino; 4-1 em outros, do campeonato argentino e da seleção anglo-argentina; 5-1 no Quilmes… ela só não venceu uma única partida, contra o maior time argentino da época, o Alumni, que ganhou por 1-0 em 24 de junho.
Na mesma gira, os visitantes tiveram revanche e ganharam por honrosos 2-0. Um dos jogadores da excursão ficou na Argentina e passaria a jogar no próprio Alumni (saiba mais do clube clicando aqui e aqui): outro centroavante, Harold Henman, que, como Whaley, igualmente defendeu a seleção argentina (já em outubro daquele 1906). Eles, aliás, tiveram os nomes “nacionalizados” para Héctor e Carlos, respectivamente. Seus respectivos clubes, de futebol hoje desativado, eram os maiores rivais do campeonato argentino e atualmente se enfrentam, curiosamente, nos de rúgbi.
Mas o intercâmbio com a África não passou muito disso, a não ser indiretamente, com negros da própria América do Sul e, mais raramente, dos poucos afro-argentinos (clique aqui). Um destes, o zagueiro José Ramos Delgado, um dos maiores ídolos do Santos, era filho de um imigrante de Cabo Verde e em 25 jogos pela seleção foi capitão 16 vezes. Desse arquipélago, aportou em 1973 o atacante Adriano Tomás Custódio Mendes, com passaporte português – Cabo Verde foi colônia até 1975. Se radicou em La Plata e começou nos juvenis do Gimnasia, mas se profissionalizou no rival Estudiantes.
Debutou em 1981 e ficou até 1984, integrando o time que no primeiro semestre de 1983 foi duas vezes campeão argentino (clique aqui), pelo Metropolitano de 1982 só concluso no ano seguinte e pelo Nacional próprio de 1983. Foram as únicas taças do clube entre a geração tricampeã da Libertadores no fim dos anos 60 e pós-2006, quando Verón voltou. Mas Custódio Mendes jogou bem pouco. Se destacou no Temperley, para onde foi em 1985: 7 gols em 23 jogos nas últimas participações da equipe na elite.
Ele jogou ainda no Colón, no San Martín de Tucumán, no Racing de Olavarría e no Chacarita, parando em 1998, em uma volta ao Temperley. Entre 1986 e 1993, Juan Carlos Ecomba veio da Guiné Equatorial para jogar nas divisões mais baixas da Argentina. Passou por Nueva Chicago, Chacarita e Deportivo Riestra, dentre outros.
Os anos 90 já viram mais africanos, a começar pelo goleiro Efford Chabala, que passou pelo Argentinos Jrs em 1991. Foi um dos zambianos que nas Olimpíadas de 1988 golearam a Itália por 4-0. Chabala não fez sucesso e logo voltou à Zâmbia. Infelizmente, estava naquele acidente aéreo de 1993 com demais colegas da promissora geração dos Chipolopolo, altamente cotada para a Copa 1994.
A década que viu um búlgaro no Newell’s (Velko Yotov, colega de Stoichkov na Copa 1994) e um georgiano no Boca (Giorgi Kinkladze, ídolo do Manchester City) abriu as portas em 1995 para vários africanos. O de mais renome na época foi o camaronês Alphonse Tchami, que também havia jogado a Copa 1994. Ficou três anos ao lado de Maradona e Caniggia no Boca, chegando a marcar contra o River e a aparecer duas vezes seguidas na capa da El Gráfico. Mas marcou só 11 vezes em 48 jogos.
Também em 1995, o Newell’s recebeu o meia Ernest Mtawalli, que não ajudou a prestigiar muito o futebol do seu Malaui; e, ao Ferro Carril Oeste, veio um conterrâneo de Mandela: Theophilus “Doctor” Khumalo. Ele estreou com um golaço no Independiente, mas também não durou – há quem diga por não receber devidamente seu salário. Um ano depois, estava entre os campeões da Copa da África de 1996, que marcou a entrada de sua seleção ao torneio, do qual era sede.
Os dois gols do título, sobre a Tunísia, vieram de assistências de Khumalo. Esse troféu aumentou a euforia esportiva do país, que no ano anterior vencera a Copa do Mundo de Rúgbi, também em sua estreia na competição e em casa. Se nos rugbiers só havia um negro (Chester Williams), suficiente para ajudar a cativar seus pares a torcer pelos Springboks, nos Bafana Bafana o capitão era um branco (Neil Tovey), primeiro caucasiano a receber o troféu da Copa da África.
Khumalo também esteve na primeira participação sul-africana no mundial da FIFA, em 1998, e chegou a marcar em amistoso contra o Brasil em 1997 quase vencido (os brasileiros perdiam por 0-2, mas conseguiram virar). Ao visitar a Argentina em 2009 como embaixador da Copa 2010, fez questão de ir ao antigo clube: clique aqui para ver essa notícia no próprio site do Ferro.
Em 1997, dois vieram e, por motivos diferentes, logo saíram. Nii Lamptey, campeão do mundial sub-17 de 1991 por Gana, apareceu no Unión, mas uma desgraça familiar o fez voltar a seu país. Já Tobi Mimboe, outro camaronês, assinou com o San Lorenzo afirmando que havia jogado duas Copas do Mundo pelos Leões Indomáveis. Mas dois jogos bastaram para os dirigentes perceberem que foram enganados e o dispensarem. Entre 1999 e 2000, o angolano Hugo da Silva deixou 22 gols em 67 jogos por Comunicaciones e Excursionistas.
Em 2001, a Argentina hospedou o mundial sub-20. E, mesmo passando por uma de seus piores crises econômicas, atraiu etíopes desesperados em fugir do caos em seu país. Três (o goleiro Getachew Solomon, o meia Abubakar Ismael e o atacante Seman Hussein) tentaram carreira por Buenos Aires, mas não foram aprovados e voltaram em 2002. Foram temporariamente acolhidos na casa da namorada que um deles arranjou. No período, um declarou com emoção: “é a primeira vez que me festejam um aniversário. E nunca haviam me presenteado um bolo”.
Também em 2001, veio ao Atlético de Rafaela um de Uganda: Ibrahim Sekagya, hoje no New York Red Bulls. Integrou o elenco que tirou em 2003 o Ferro Carril Oeste da 3ª divisão. Mas foi no Arsenal que fez história: impactou ao marcar sobre o River o aguardado gol 80.000 da era profissional. Ficou no time de Sarandí até 2007, saindo após a campanha que classificou-o pela primeira vez à Libertadores. Uma pena: não ficou para o inesperado título da Sul-Americana naquele mesmo ano.
A história mais recente é a de Bayan Mahmud, órfão desde 2005 por guerras tribais em Gana. Em 2010, entrou clandestinamente em um contêiner, sem saber o destino do navio. Foi bem acolhido pela tripulação depois de descoberto, mas ficou inicialmente três dias só após chegar em Buenos Aires. Por sorte, encontrou senegaleses que lhe arranjaram uma pensão para refugiados no bairro de Flores. Jogando partidas em praças, foi descoberto por um olheiro do Boca. Passou a ser cuidado pelo clube, já se radicou legalmente na Argentina e hoje está à espera de uma chance de Carlos Bianchi.
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