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Adeus eterno ao “outro” paraguaio Cabañas, grande ídolo do Boca

No Brasil, falar de um paraguaio de sobrenome Cabañas remete diretamente ao baleado atacante que personificou uma das maiores reviravoltas do futebol, entre o América-MEX e o Flamengo na Libertadores de 2008. Mas antes de Salvador Cabañas, Roberto Cabañas González dignificou (muito mais) o futebol paraguaio para além das fronteiras guaranis. Atacante ótimo no cabeceio e raçudo como um xerifão da zaga, brilhou já veterano também no futebol argentino em um Boca em crise. Campeão da Copa América, vencedor no celebrado Cosmos e trifinalista da Libertadores, ele foi repentinamente vitimado por um ataque cardíaco neste dia 9 de janeiro.

Cabañas foi revelado no Cerro Porteño em 1978. Não chegou a entrar em campo na campanha semifinalista da Libertadores daquele ano, mas pertenceu ao elenco da seleção campeã da Copa América do ano seguinte – ainda que tenha jogado só os últimos dez minutos da segunda final, na derrota de 1-0 para o Chile em Santiago; a Albirroja foi campeã ao empatar uma terceira partida (por sinal, na neutra Buenos Aires), após ter ganho a primeira por 3-0 em Assunção.

Em 1980, ainda no Cerro, fez três gols em cinco jogos na Libertadores, insuficientes para avançar da dura primeira fase (só classificava-se o líder). Mas dali foi pinçado pelo Cosmos nova-iorquino, tal como o compatriota Romerito. Dois títulos nacionais e diversos regionais depois, veio em 1984 ao ascendente América de Cali, equipe que não tinha um campeonato colombiano sequer até 1979 e que – impulsionada pelo cartel de drogas da cidade, é verdade – chegaria a três finais seguidas da Libertadores além de ser penta seguido na Colômbia entre 1982-86.

Presente nos dois últimos títulos do penta nacional, Cabañas também esteve nas três Libertadores perdidas. As duas primeiras, para argentinos: Argentinos Jrs em 1985 (na semifinal, o paraguaio marcou duas vezes em um 4-0 sobre, ironia futura, o Peñarol) e River em 1986, ainda que tenha marcado gol na decisão. Futuramente, viraria ídolo boquense em parte exatamente pelas constantes provocações ao River. Em 1987, no elenco que tinha os argentinos Julio César Falcioni no gol e Ricardo Gareca na dupla ofensiva, Cabañas marcou nos dois primeiros jogos da final contra o Peñarol, mas foi expulso no terceiro e viu o vice mais dramático, pois o América era campeão até o último lance da prorrogação: falamos aqui.

Como americano, Cabañas foi essencial também na classificação paraguaia à Copa de 1986 (marcou dois nas repescagens contra Colômbia do futuro colega Navarro Montoya e Chile), a única disputada pela seleção entre 1958 e 1998. Em 1986, marcou dois cada sobre duas celebradas seleções daquele ano: um 2-1 em amistoso pré-Copa contra a Dinamarca, que varreria adversários mais tradicionais no mundial, e outros no 2-2 contra a Bélgica, quarta colocada no México.

No Cosmos com Beckenbauer e em outra superequipe, o América de Cali trivice da Libertadores. É o primeiro em pé no time dos argentinos Falcioni (goleiro) e Gareca (segundo agachado)

Cabañas ainda passaria pelo futebol francês entre 1988 e 1991, tendo como melhor momento a artilharia da segundona de 1989 pelo Brest. Foi já com trinta anos que ele, nascido em 11 de abril de 1961, veio ao futebol argentino. O Boca havia vendido à Fiorentina a revelação Batistuta em agosto. Em setembro, o paraguaio estreou. Começou com tudo: na segunda partida, incendiou a Bombonera ao fazer os três gols da virada para 3-2 sobre um Vélez que com quinze minutos vencia por 2-0.

O paraguaio não chegava em um momento qualquer do clube. Os xeneizes não eram campeões argentinos havia dez anos, desde o maradoniano Metropolitano de 1981. Naquele mesmo ano, haviam batido na trave da maneira mais dolorosa. Haviam vencido, mas não levado: ainda com Batistuta, ganharam o Clausura 1991, mas a temporada ainda tinha um campeão único, a ser definido em uma final entre os líderes de Apertura e Clausura caso fossem diferentes.

Sem a dupla dinâmica Batistuta e Latorre, cujo sucesso teve efeito reverso de desfalcarem o time na final por serem convocados à Copa América, o Boca foi derrotado em plena Bombonera pelo Newell’s de Marcelo Bielsa – contamos o drama aqui. Para a temporada seguinte, a AFA resolveu que Apertura e Clausura premiaram cada um campeões argentinos em separado. Em um total de sete gols em dez participações, Cabañas marcaria ainda dois em um 3-3 contra o Deportivo Español (hoje sumido, mas um time chato contra os grandes na época) e outro sobre o Independiente.

O Boca só perdeu duas vezes, mas empatou dez dos 19 jogos. Foi vice, mas sem brigar a sério, sete pontos atrás (quando a vitória só valia dois e não três) do campeão – justo o River. No torneio seguinte, Cabañas não foi individualmente tão bem. Fez só dois gols em treze jogos. O Boca, que chegou a co-liderar na altura da 11ª rodada, murchou nas seis últimas após levar de 3-0 para o Rosario Central. Por outro lado, ganhou em maio um troféu continental: a obscura Copa Master, que reunia os vencedores da Supercopa Libertadores. Marcou o único gol na semifinal contra o velho rival Olimpia.

A Copa Master, sobre o Cruzeiro, foi um aperitivo para um desafogo. Já eram onze anos sem ganhar o campeonato argentino, até hoje o maior jejum nacional do Boca (falamos aqui). O paraguaio foi o artilheiro do elenco que encerrou a seca, com sete gols, incluindo dois no troco no Rosario Central, que teve os 3-0 devolvidos. Na penúltima rodada, quando marcou em um 3-1 fora de casa sobre o Platense, cumpriu com antecipação promessa de andar de joelhos. Para melhorar, o vice foi o River.

Um dos três gols que fez no começo avassalador contra o Vélez. E catimbando contra o River: conseguiu ser ídolo contra o rival mesmo sem marcar gols

Só que o vestiário se dividiu entre duas panelinhas, Halcones (“falcões”) e Palomas (“pombas”). De um lado, Márcico, Saturno, Giunta e Sergio Martínez. De outro, Navarro Montoya e Simón. O paraguaio se viu no fogo cruzado entre novatos e velha guarda, provocados de pé-frios em discussões sobre quem seria o capitão (Montoya, por um voto a mais, levou sobre Márcico), direito dos reservas aos prêmios financeiros pelo título e suspeitas de repasse aos dirigentes, por Montoya, de segredos de vestiário. Cabañas marcou só um gol no campeonato seguinte e saiu ao fim do primeiro semestre de 1993 – curiosamente, seu penúltimo jogo nessa primeira passagem pelo Boca foi um 0-0 contra a seleção paraguaia.

Cabañas ainda intercalou outros dois períodos no Boca. Um, no segundo semestre de 1994, com só quatro jogos, todos no Apertura, após um ano no Barcelona equatoriano; e, após um retorno ao Cerro Porteño, fez uma única partida como xeneize no segundo semestre de 1995, na derrota em casa para o São Paulo pela Supercopa – quando os auriazuis usaram reservas na partida que precedeu o retorno de Maradona no campeonato argentino.

A idade pesava e já não foi o mesmo também nas voltas ao Paraguai (Libertad) e Colômbia (Independiente Medellín). No auge, somou vinte gols em 81 partidas pelo Boca, considerando amistosos. Uma média não tão alta, desvantagem reforçada por jamais ter marcado em Superclásicos. O que não o impediu de tornar-se “o arquétipo de jogador que encontra um lugar no coração dos fãs”, nas palavras da enciclopédia oficial do centenário boquense, em 2005: adorava jogar contra o rival. Foi escolhido entre os cem maiores ídolos do Boca tanto nesse livro como em edição especial da revista El Gráfico, em 2011. O blog Imorrable Boca dá pistas:

“Caso atípico o de Roberto Cabañas. Atípico, porque não era nem volante nem defensor. Era um atacante hábil e goleador. Mas também um verdadeiro selvagem na hora de repartir. El Paragua era vivíssimo para bater. Sua especialidade eram as cotoveladas. Nos escanteios, nunca ninguém via nada, mas o defensor que o marcava sempre terminava com a boca ou o nariz sangrando. Com um excelente estado atlético, Cabañas saltava como coelho para meter soladas descomunais. (…) Ele sozinho descontrolava os Hernán Díaz, os Astrada, os Comizzo. Impossível esquecer o chutão que meteu na Bruja Berti [nota do Futebol Portenho: Berti era ex-jogador do Boca], já farto de suas manhas. E sendo expulso ele também, abandonou o campo de jogo do Monumental a passo mais lento que tartaruga manca, exasperando ao limite os de Núñez (…). El Paragua jogava também com a língua. Imperdível quando lhe perguntaram por que o River não podia ganhar do Boca durante os anos 90. Cabañas, sem rodeios, disparou seguro ‘queres o quê, se são galinhas'”.

Descanse em paz, Paragua!

Um dos gols na trajetória redentora de 1992, no clássico com o San Lorenzo, rendeu a capa à direita – onde o artilheiro dos campeões festeja abraçado por Márcico.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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