Maior artilheiro do campeonato argentino com 295 gols, todos pelo Independiente, onde também é o maior goleador, o paraguaio Arsenio Erico faria hoje 105 anos. Um de seus famosos fãs foi Alfredo Di Stéfano, a esclarecer-lhe após a fama que queria apenas ser “um imitador seu”, embora ironicamente o Huracán tenha contratado o já veterano Erico em 1947 exatamente em tentativa de repor a perda do empréstimo de Di Stéfano, devolvido ao River. Outro fã, tardiamente, foi o escritor Eduardo Sacheri, cuja paixão pelo Independiente não soará estranha a quem já assistiu ao filme O Segredo dos seus Olhos, inspirado em conto seu. Assim, ao invés de simplesmente repetirmos o nosso Especial publicado no centenário do atacante, vale traduzir um conto de Sacheri dedicado a Erico.
Outro exemplo da paixão roja de Sacheri, vale mencionar, é que o maior técnico do clube, José Omar Pastoriza, foi postumamente homenageado por ter inspirado os comandados na epopeia do título nacional de 1977, o que teria permitido ao escritor “uma última volta olímpica com o pai enquanto ele dava os últimos dribles na morte”. Em dezembro de 2011, ele então publicou o conto abaixo na revista El Gráfico. Cabe desde já o adendo de que na ocasião do centenário de Erico, em 2015, difundiu-se revisionalmente a autoria de 295 gols dele e não 293 como tradicionalmente se contabilizava, isolando-o à frente de Ángel Labruna (maior figura do River) como maior artilheiro do Argentinão. Essa concorrência com Labruna também é mencionada no conto, inclusive.
O original em espanhol pode ser visto clicando aqui. Eis, enfim, nossa versão:
“A tarde em que Erico fez um gol para mim”
O velho era espanhol e tinha sempre a delicadeza de passar bem colado na linha das casas, para que nós não tivéssemos que interromper as partidas. Suponho que alguma vez soube seu nome, mas se extraviou para mim em algumas das muitas dobras que tem o esquecimento. Eu sim lembro, por outro lado, de sua imagem e de sua voz.
Era baixo e maciço, e se notava que havia sido um homem forte. Tinha a pele de um rosa vivo e sanguíneo de quem se havia criado ao sol e à intempérie. Usava o cabelo muito curto, e me fazia lembrar de uma escova de cerdas grossas e brancas, patas postas acima. Sempre andava com uns calções negros e abolsados, seguros por um cinturão igualmente negro, acima do umbigo; e com uma camisa branca com o botão do pescoço desprendido e as mangas recolhidas por cima dos cotovelos. Vestia-se, em suma, como deviam vestir-se os velhos de sua aldeia, na Espanha, quando ele era um garoto. E ele trouxera a si essa lembrança com a qual os imitava em sua própria velhice, como trouxe o sotaque cheio de Zês e de Ésses que aos outros garotos soava estranho, mas me agradava porque me fazia lembrar de meu tio Vicente, que também era espanhol e havia sido o mais parecido que tive de um avô.
Desde que o velho saía de sua casa até que dobrava na esquina, se nos surpreendia jogando a bola, não nos tirava de vista. E se desviava da rua não era pelo temor de receber uma bolada, e sim porque gostava de ver o jogo que jogávamos. E a nós, por nossa parte, nos encantava tê-lo de público durante esse momentinho que demorava em passar até a rua da estação. Jamais falamos dele entre nós, mas todos queríamos reluzir diante do velho. Os mais hábeis se prodigavam em dribles, e resistiam – mais do que de costume – em largar a bola a um companheiro. Os que tinham bom arremate provavam sorte desde ângulos impossíveis ou distâncias desaconselháveis. E os goleiros deixavam, com gosto, o pelo dos cotovelos no asfalto voando para a foto dos olhos celestes daquele velho.
Nunca nos dirigia a palavra se estávamos jogando. Unicamente o fazia se nos encontrava matando o tempo contra a parede de alguma casa. Nessas ocasiões, nos saudava com um “buenos días” sonoro e grave, com seus dois Ésses bem postos. Como nos caía bem, lhe devolvíamos o cumprimento. Depois nos perguntava sobre a escola ou nos comentava algo do clima, ao estilo de “amanhã chove”. Não lembro se acertava.
De futebol nunca falávamos, embora fosse o futebol que cimentava nossa cumplicidade. Nós sabíamos que o velho sabia. De futebol, sabia. Alguma vez a bola nos havia escapado até o sítio por onde o velho vinha caminhando, e essas são circunstâncias onde se mede o que se sabe de futebol. É verdade que a essa altura da colheita, o velho não era precisamente ágil. Porém, para nos devolver a bola jamais o vimos cometer o sacrilégio de agachar-se para nos dar com a mão, nem chutar a bola de bico, nem deixar a perna rígida e estendida sem flexionar o joelho, nem mandar a bola a quatro metros do garoto mais próximo, nem nenhum desses pecados capitais que delatam os que não sabem jogar futebol. Claramente, o velho se situava entre os que sim, sabiam. A esperava medindo o pique e a velocidade, e punha o pé de lado para deixa-la mansa, e no pé, do jogador mais próximo.
Uma só vez falamos de futebol. Tínhamos o campo armado sobre o pavimento da [rua] Guido Spano, e internamente tinha um humor de mil demônios porque Andrés me havia metido três gols ao grito de “Gol, golaço do Boca”.
Não vi o velho vir, porque com todos os poros palpitando vingança acabava de receber a bola porquinha a três metros do arco contrário, que tinha nada menos que Andrés de goleiro. Sem sítio na alma para sutilezas estéticas, pus na bola uma queimada feroz e entrou como um balaço à meia altura, e saí gritando “Gol, Golaço, Golaço do Independiente”, alargando as sílabas como se escutava fazer o Gordo Muñoz nos relatos da Rádio Rivadavia.
Em minha corrida de festejo me topei com o velho, que me olhava e sorria. Já tinha dois motivos de felicidade: o gol e que o velho o tivesse visto. Mas além disso me falou: “olá, muchacho, és do Independiente…”, me perguntou afirmando. Quando me viu concordar, agregou: “sabes quem vive aqui a umas poucas quadras?”. Não. Não sabia. E por isso fiquei olhando-o, esperando que me dissesse. Ao meu redor se haviam juntando o resto dos garotos, salvo o pobre Andrés que devia estar recuperando a bola desde terras inóspitas e distantes. “Aqui perto, na rua Aristóbulo del Valle”, disse o velho, aumentando o suspense. “Arsenio Erico”, terminou, e ficou vendo nossas caras.
Suponho que essa história soaria melhor se eu escrevesse que ficamos pasmos, ou que nos entreolhamos incrédulos, ou que nos enchemos de orgulho. Mas, em honra à verdade, direi que não nos moveu um pelo. Corria o ano de 1979, e Erico havia deixado de jogar três décadas atrás. Além disso, como todos os garotos, pensávamos que o mundo havia nascido conosco. Nossa ignorância não molestou o velho. Nos olhou bem com seus olhos claros e sentenciou: “o máximo artilheiro do futebol argentino. Um goleador como não houve outro”. Talvez foi a forma que o velho disse. Essa frase fácil e ajustada, dita nessa voz um pouco cavernosa e cheia de sons de outras terras. É verdade que a princípio esse nome me soou estranhíssimo. O “Arsenio” me soou “arsênico”, uma substância tenebrosa que meu irmão maior ameaçava, mais jovem, em me colocar no cacau da tarde. E o sobrenome me soou “Perico” [Periquito, em espanhol] e achei graça um pouco. De modo que suponho que a primeira imagem que me veio à cabeça teria sido de um papagaio venenoso.
Por sorte, o velho ainda tinha uma bala no cartucho. Andrés, a quem em algum ponto do orgulho deveria estar doendo meu chumbaço à meia altura, contou, com ares de superioridade, que seu avô lhe havia comentado algo a respeito, porque o tal Erico havia sido ídolo do Boca. Foi então quando o velho o olhou com um ligeiro sobressalto e – me pareceu – com uma deixa de malícia. “No Boca? Não, muchacho. Erico jogou no Independiente – e por fim agregou -: Sempre”.
Esse foi o momento definitivo em que Arsenio Erico entrou na minha vida. Quando o velho o nomeou e o situou a escassas quatro quadras da minha casa e das de meus amigos. Quando juntou essas palavras mágicas em uma conjuração invulnerável. Quando penso nesse nome, me sai assim: “Arsenio Erico. Goleador. Independiente. Sempre”. Todas essas palavras vêm juntas.
Na realidade, e pelo que soube depois, até o próprio velho ignorava que Erico havia morrido um par de anos antes dessa conversa que tivemos na rua. E que também havia jogado algumas partidas no Huracán e também na sua terra paraguaia. Mas eram outros tempos. E os jogadores lendários eram nem mais nem menos que isso. Não eram deuses, nem estrelas de publicidade, nem comentaristas televisivos. Não participavam involuntariamente em enquetes massivas lançadas pelos jornais esportivos; em parte porque os jornais esportivos não tinham razão de ser em um mundo em que as pessoas se ocupavam também de outras coisas. Acho graça um pouco do desespero de alguns estatísticos que ultimamente descobriram um par de gols repentinos de Ángel Amadeo Labruna, que os faz situa-lo acima de Erico na tabela definitiva dos gols de bronze. Será porque a comichão da exatidão lhes coça demais? Será porque são do River? Será porque os molesta que o máximo goleador do futebol argentino tenha nascido no Paraguai? Será por algo que ignoro?
O que sim acredito é que esses perfeccionismos deixam de lado o essencial. Nem a Erico nem a Labruna lhes deveria importar demais um gol a mais, ou um gol a menos. Com certeza, lhes bastava saber que as pessoas os admiravam e que os defensores os temiam.
Esses jogadores deixavam entalhes na história do esporte mas depois, quando paravam, faziam precisamente isso. Paravam. Não ficavam tirando cômputos exaustivos. Labruna se tornava técnico e, entre outras façanhas, devolvia ao River, nos anos 70, toda a sua glória. Erico, com o dinheiro que havia juntado – que certamente não foi muito, e sem dúvida foi menos que o que hoje em dia recebe qualquer cabeça de bagre de meio cabelo com um par de anos em um clube de primeira divisão – comprou para si uma casinha perto da estação de Castelar, e deixava que o tempo o fosse sumindo no esquecimento.
Isso sim, suponho que o grande Erico teria se molestado que alguns torcedores do Independiente, hoje em dia, usem a palavra paraguaio quando querem insultar alguém. Paciência: pois se o gênero humano tem algo em abundância, são os imbecis. Os goleadores não sobram, mas os imbecis abundam.
De todos os modos, gosto de pensar em Erico aí, na rua de sua casa na rua Aristóbulo del Valle, tomando o mate com o sol deitando-se do lado da estação do trem, passando seus últimos anos a quatro quadras da minha casa e das de meus amigos. E pensa-lo nessa tarde em particular, quando voltou a converter um gol inesquecível, embora fosse através da conjuração dos lábios de outro velho, para presenteá-lo a mim. Erico. Goleador. Independiente. Sempre.
O velho espanhol nos cumprimentou e foi embora. E nós seguimos a partida. Depois… depois crescemos.
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