Há 45 anos, começava a sangrenta ditadura militar argentina. Que não esperou pelo Mundial de 1978 para utilizar politicamente o futebol. Essa história começa no próprio dia do golpe.
A derrubada da presidenta María Estela Martínez de Perón, mais conhecida como Isabelita, foi rápida e se consumou nas primeiras horas do dia 24 de março de 1976. A medíocre e inepta viúva de Perón, e também originalmente sua vice na eleição de 1973 (o general faleceria no cargo menos de um ano depois), não teve condições de resistir. Naquele dia, os argentinos, perplexos, acordaram com a notícia de que havia um novo regime.
O autodenominado “Processo de Reorganização Nacional” não quis saber de problemas. Dividiu os três principais canais privados de TV (9, 11 e 13) entre as três forças armadas, e o dia 24 de março foi dedicado a programas especiais e pronunciamentos mostrando os fundamentos do novo regime. A programação normal foi quase toda suspensa temporariamente, e espetáculos culturais foram praticamente proibidos por alguns dias.
No entanto, o futebol escapou ileso. No dia seguinte ao golpe, o Estudiantes de La Plata bateu a Portuguesa da Venezuela por 2-1 pela Copa Libertadores daquele ano. No final de semana, a rodada do Torneio Metropolitano se desenvolveu como previsto na tabela. Os novos donos do poder pareciam saber muito bem que não convinha privar a população de seu esporte favorito.
No dia do golpe, a seleção argentina estava a milhares de quilômetros de seu pais. O golpe a surpreendeu em meio à uma excursão justamente pelo Leste Europeu, e naquele mesmo dia havia uma partida contra a Polônia, em Chorzów. A delegação foi informada bem cedo do acontecido, graças ao relato de José María Muñoz, lendário narrador da rádio Rivadavia, que cobria a viagem da Albiceleste.
O plantel teria ficado devastado, e vários jogadores, como Mario Kempes (de família ligada ao peronismo), chegaram a chorar, enquanto outros se preocupavam com a situação dos familiares. Os mais exaltados, como Kempes e Héctor Scotta (que no ano anterior estabelecera um recorde de gols em uma só temporada no futebol argentino, 60, vigente até hoje; seu irmão Néstor jogou no Grêmio), eram da opinião de que a partida deveria ser cancelada, possibilidade que chegou a ser discutida pelo plantel.
Embora notório filiado ao partido comunista, o próprio técnico Menotti buscou tranquilizar o grupo e a partida se realizou normalmente. Em algumas versões, teria havido um telefonema de Buenos Aires para Pedro Orgambide, chefe da delegação argentina, comunicando que a partida deveria obrigatoriamente ser disputada. Ao fim, a Argentina entrou em campo e bateu os poloneses por 2-1, com gols de René Houseman e Scotta.
Logo nas primeiras horas daquele dia, um comunicado oficial havia informado a população de que toda a programação de TV daquele dia havia sido suspensa, exceto a transmissão de Argentina e Polônia, levada ao ar pela TV Pública. Evidentemente, se avaliou que privar a população de ver a seleção de seu país era um péssimo começo para um regime imposto pela força. De fato, os revoltados Kempes e Scotta trataram de fazer as malas.
Kempes foi ao Valencia e o Scotta, ao Sevilla, sabendo ambos que sairiam do radar da seleção – em uma geração de ouro que abarcava inclusive o normalmente esquecido interior argentino e em tempos nada eurocentristas, Menotti dava mais atenção a algum destaque da liga provincial cordobesa do que a alguma europeia (justificativa que o zagueiro Alberto Tarantini daria em 1979 ao buscar sair do Birmingham City para o Talleres). El Gringo Scotta fez seus gols na Espanha mas nunca mais reapareceu na seleção e Marito só voltou a defende-la em plena Copa, após hiato de dois anos: foi o único “estrangeiro” convocado, com as notícias de suas artilharias em La Liga conseguindo cruzar o Atlântico em tempos nada digitais dos meios de comunicação.
Nesse episódio, muitos eventos posteriores apareciam já em germe. Um dos protagonistas é José María Muñoz, que informou a delegação argentina do golpe e em breve seria um dos maiores apoiadores do regime, eternamente lembrado por ser um dos grandes nomes envolvidos no uso político do mundial de 1978 pela ditadura. Outro jornalista envolvido na transmissão da partida, Fernando Niembro (então na TV Pública), foi quem anunciou à nação o perdão de Carlos Menem aos militares envolvidos em violações dos direitos humanos. Niembro era então porta-voz do governo menemista; hoje, trabalha na Rádio 9 e na Fox Sports.
Mas o que é mais evidente é que, desde o primeiro dia, a ditadura argentina tinha um olhar especial para o futebol. O esporte escapou ileso de todas as proibições daqueles primeiros dias de regime, e seguiu sua rotina normalmente. A seleção foi a única exceção ao cancelamento da programação normal dos canais de TV naquele dia, garantindo a diversão tão amada no país. Os carrascos já sabiam que poderiam se aproveitar da paixão de seu povo pelo futebol, e a infâmia do Mundial de 1978 foi nada mais que o auge dessa relação, que foi forte desde o princípio.
AGRADECIMENTO – Várias informações contidas neste texto foram obtidas nas discussões do grupo “Historia y Estadísticas del Fútbol”, do facebook, imprescindível para os que têm interesse na História do Futebol.
Nota originalmente publicada em 2012. Abaixo, alguma das manifestações de hoje e dos dias anteriores feitas pelos clubes (todos os 26 da elite publicaram notas oficiais e muitos reabilitaram em seus quadros sócios desaparecidos). Vale ainda resgatar nota de 2015 sobre a relação da seleção com as Avós da Praça de Maio, a de 2017 sobre o capitão que abriu politicamente mão de ir à Copa 1978 (Jorge Carrascosa) e sobre como Cruijff fez o mesmo ao saber que um colega de Barcelona quase teve o pai morto por engano pelos militares argentinos.
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Não é de hoje que Niembro fala (e faz) boludices... Ótimo saber disso.
Pelo que li sobre o Kempes, inclusive colocando no verbete dele na wikipedia, a família dele era ligada ao peronismo. Não à toa, naquele mesmo 1976 foi jogar no Valencia, e teria levado os familiares mais próximos consigo.
Caio, já vi que vc fez grandes artigos na Wiki (Kempes, Francescoli, Guillermo B. Schelotto), qual mais você fez?
Sabia que a ditadura usou do futebol, mas esse fato de tudo na tv ser cancelado menos o futebol é novidade pra mim.
Lisonjeado, Willian, haha!
Bom, dos que foram oficialmente reconhecidos como bons ou destacados pela comunidade da wiki, estão os do Maradona, Cruijff, Di Stéfano, Romário e Doval, pelo que eu lembro de cabeça (não entro mais lá com a mesma frequência de antes).
Dei uma trabalhada também, para ficar apenas no futebol sul-americano, nos de Ghiggia, Obdulio Varela, Schiaffino, Sastre, Carrizo, Gatti, Chilavert, Petkovic e outros...
Grato pela deferência! Um abraço