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65 anos de Oscar Ortiz, ponta da seleção de 1978, ex-Grêmio e ídolo de San Lorenzo e River

“Eu não posso deixar de driblar. Olha, se o zagueiro vem em mim e eu passo a bola, ele vai pensar o quê? Que esse tipo aí não joga nada. E se enche de moral. O drible tem a propriedade de desmoralizar o zagueiro, de deixa-lo inseguro e isso, de certa forma, é benéfico para a equipe” – em depoimento à Placar em 1976.

Um dos mais ácidos cronistas esportivos da Argentina era Dante Panzeri. Ao mesmo tempo idealista e anti-peronista, o ex-editor da saudosa El Gráfico expôs seu sarcasmo no título de um de seus livros, chamado “Dirigentes, Decência e Pontas” por tais elementos serem aquilo que o futebol argentino estaria em falta (será atualíssimo?). Era tão exigente para pontas que chegava ao cúmulo de achar Garrincha superestimado. Em poucos dias, se completarão 40 anos sem Panzeri, falecido em 14 de abril de 1978, pouco antes da Copa do Mundo em seu país. Acabou privado de assistir algumas firulas de Oscar Alberto Ortiz, que ontem fez 65 anos, talvez comemorando o título estadual do Grêmio. Para muitos, El Negro foi precisamente o último ponta genuíno do futebol argentino.

O apelido provinha em um país embranquecido em que a palavra é empregada frequentemente mesmo para quem tem mais fenótipo indígena, caso de Ortiz, do que propriamente africano. Outra particularidade está na origem da carreira: em tempos ainda mais machistas que os atuais, quem lhe fez jogar futebol foi sua mãe – e mais por pressão do que por incentivo. O jogador declararia ver o esporte apenas como profissão. Em 1976, um belo perfil da Placar ressalvou que, ao ser requisitado aos 15 anos de idade por emissários do San Lorenzo, foi com temeridade que a promessa reagiu em ter de deixar sua Chacabuco e seus pais para viver na “perigosa” Buenos Aires. Na mesma nota, disparou:

“Futebol é uma coisa muito triste. Quando eu era menino, tinha uma ideia muito romântica do futebol. Em minha ingenuidade, achava que esse jogo deveria ser assim como no palco. Não digo um palco em que os jogadores deveriam apresentar sua arte. Já não tinha essa pretensão. Mas algo em que cada um procuraria mostrar para o público o melhor de si mesmo. E que tudo mais carecia de importância. Mas não é assim, e até hoje não me conformo que não seja. Sou um frustrado. Ou é o dirigente que tenta enganar, ou é o técnico querendo modificar o seu estilo, o público que exige vitórias e mais vitórias. Um mundo tão enganoso, que muitos astros – eu vi, ninguém me contou – acabaram tão miseráveis como iniciaram. Por isso, sou um sujeito curtido, que não vê encanto em nada que não seja o jogo em si. Futebol é uma coisa muito triste. Amanhã podem lhe virar a cara”.

San Lorenzo e River, as camisas pelas quais mais brilhou

Ele foi revelado pelo San Lorenzo, fazendo sua primeira partida em 2 de junho de 1971, em derrota de 1-0 para a seleção da base naval de Bahía Blanca, nessa cidade. A segunda partida já foi válida pelo campeonato argentino, em 25 de agosto, pela 30ª rodada do Metropolitano de 1971, em empate em La Plata com o Estudiantes em 0-0 – ocasião em que o treinador Rogelio Domínguez o usou para substituir Enrique Chazarreta. Na rodada seguinte, ele, estreando no Gasómetro, já era titular em vitória sobre o Newell’s por 2-1. Mas Ortiz não foi meteórico. Só voltou a ser usado na 38ª rodada, a última, ainda que novamente como titular, no 3-1 sobre o Argentinos Jrs.

No Torneio Nacional, apareceu primeiramente na terceira rodada, saindo do banco. E foi só, não participando mais da campanha finalista da competição. Não entrou em campo no vitorioso Torneio Metropolitano de 1972, reaparecendo na 3ª rodada do Torneio Nacional (5-0 no Lanús, como titular), onde os cuervos também fora campeões – tornando o clube do bairro de Boedo o primeiro a ganhar no mesmo ano as duas competições domésticas. Ortiz só foi usado outras duas vezes no Nacional, em ambas saindo do banco: na 12ª rodada, em vitória de 3-0 no seu primeiro clássico com o Huracán, no estádio do Racing (substituindo Rubén Ayala); e na final contra o River, entrando no lugar do autor do gol do título, Luciano Figueroa (sem relação com o ex-jogador da seleção, Rosario Central, Cruz Azul, River, Boca e Emelec).

Foi a partir de meados de abril 1973 que o ponta-esquerda começou a ter uma sequência da partidas, rendendo inclusive seu primeiro gol, abrindo o placar em 4-1 sobre o Estudiantes. Nessa época, realizou sua única partida na campanha semifinalista da Libertadores de 1973, precisamente na noite da eliminação para o campeão Independiente, onde substituiu o volante Roberto Espósito. Em 1973, marcaria outros três gols, incluindo contra River e Racing, além de contribuir com generosas assistências a Carlos Veglio e Héctor Scotta. Em 1974, Ortiz já era titular absoluto. De menor a maior, o San Lorenzo terminou campeão do Torneio Nacional, o último dos quatro títulos erguidos no ciclo vitorioso de 1968-74, sem ninguém para imaginar que nova taça na elite argentina só viria em 1995.

El Negro inclusive marcou um dos gols do título, garantido somente na última rodada do octogonal final. Foi o terceiro em vitória de virada por 3-2, em 22 de dezembro, permitindo ao Ciclón ficar um ponto acima do Rosario Central de Mario Kempes – ainda que o próprio Central terminasse, pelo regulamento, ficando com a vaga na Libertadores; eram duas, definidas em um quadrangular envolvendo campeões e vices do Metro e Nacional (virou um triangular, pois os canallas foram vices em ambos). Ortiz não voltou à Libertadores, mas chegou à seleção, estreando pela Argentina em 18 de julho de 1975, em vitória por 3-2 sobre o Uruguai – foi o primeiro triunfo da Albiceleste no estádio Centenário após 19 anos.

A estreia ocorreu a despeito do clube terminar somente em 11º no Metropolitano, mas fazendo o artilheiro do torneio: Héctor Scotta, autor de 32 gols, muito dos quais ele próprio confessou dever aos precisos cruzamentos do Negro Ortiz – ele próprio disse que seu desempenho individual em 1975 teria sido superior ao de 1974. No Nacional, a equipe se recuperou e ficou a três pontos do título. Scotta foi novamente artilheiro, com 28 gols – em 21 rodadas. Ortiz foi novamente bastante prestigiado pelas assistências, além de marcar seus golzinhos (nove, incluindo seu único no clássico com o Huracán, em empate em 2-2). Os sessenta gols do Gringo Scotta ainda são um recorde individual em uma única temporada no país, treze à frente da marca então recordista de Arsenio Erico, a vigorar desde os menos retrancados anos 30.

No Grêmio, foi ambíguo. Ainda assim, o Tricolor o homenageou em 2014, conjuntamente com o San Lorenzo, antes do duelo pela Libertadores

Assim, o assistente Ortiz jogou mais duas vezes pela seleção, ambas em fevereiro de 1976, em triunfo de 3-2 sobre o Paraguai em Assunção e em derrota para o Brasil em Buenos Aires por 2-1, partidas válidas pela Taça do Atlântico. Aquela dupla não permaneceria muito mais tempo no time: em meados de 1976, o centroavante foi ao Sevilla enquanto Ortiz foi ao Grêmio, onde por sinal havia jogado Néstor Scotta (que como tricolor chegou a ser considerado o autor do primeiro gol do Brasileirão), irmão de Héctor. Fatores puramente econômicos levaram à transferência de um jogador pouco radiante com o trabalho; ir ao exterior vinha significando o afastamento da seleção na época. Ortiz reforçou juntamente com o compatriota Agustín Cejas um Grêmio desesperado para evitar um octacampeonato estadual do arquirrival Internacional. Além da sequência por si só angustiante, isso ainda superaria um orgulho gremista, hepta nos anos 60.

O octa colorado, porém, de fato se confirmaria, deixando as impressões gremistas sobre Ortiz ambíguas – como na Placar, que já deu veredito classificando-o tanto como “irregular” e contratado contra a vontade (clique aqui), além de “mau exemplo” como alguém que só “marcou três gols e não fez mais do que duas dúzias de bons cruzamentos” (aqui); como também um “herói do ataque em tempos de vacas magras” (aqui), visão corroborada pela homenagem mútua que Grêmio e San Lorenzo prestariam ao jogador antes do duelo de ambos pela Libertadores em 2014. Fato é que sua substituição de sucesso no Rio Grande por uma revelação do América Mineiro chamada Éder faria a torcida gremista se dar ao luxo de não sentir maiores saudades do hermano, cuja saída terminou um ótimo negócio também para si próprio.

Ortiz foi contratado pelo River em 1977 e já em março daquele ano reaparecia no radar de Menotti, retornando à seleção (em 1-1 com o Irã) e participando ativamente da bateria de amistosos pré-Copa realizados pela Argentina ao longo daquele ano. E foi também ao longo de 1977 que o Torneio Metropolitano daquele ano se arrastou, finalizado somente em novembro. Ortiz mantinha as credenciais na seleção ao participar ativamente do título do River na competição, sendo usado em 35 rodadas, deixando cinco gols próprios (incluindo novamente na partida do título, curiosamente de novo sobre o Ferro Carril Oeste, derrotado por 4-2; fez o último) e diversos outros alheios, fornecidos a Leopoldo Luque ou Víctor Marchetti.

Terminou convocado à Copa do Mundo. Foi nos últimos amistosos, já em março e abril de 1978, que ele marcou seus únicos dois gols pela Argentina, nas vitórias de 3-1 sobre a Irlanda e 3-0 no Uruguai. No mundial, Ortiz começou no banco, com o matador Mario Kempes e o carismático René Houseman na titularidade das pontas. Houseman, falecido há três semanas, teve uma estreia apagada e foi igualmente sem brilho no segundo jogo, onde Ortiz estreou no torneio – não para substitui-lo, e sim para entrar no lugar do infeliz Norberto Alonso, que se lesionara apenas nove minutos depois de ele próprio ter entrado para substituir o armador José Daniel Valencia. El Negro entrou aos 27 do segundo tempo e se não foi notado, ao menos foi pé-quente: no minuto seguinte, Luque marcou o gol da vitória sobre os franceses.

Só que a alegria de Luque deu lugar ao luto: o centroavante perdeu o irmão em um acidente de carro pouco depois e obteve licença de Menotti. Foi por conta dessa tragédia que o técnico passou a usar Kempes como centroavante. As pontas passaram a ficar com Ortiz e Daniel Bertoni, com o declínio de Houseman abrindo a outra vaga do setor. A combinação de início não deu certo, derrotada pela Itália na última rodada da fase de grupos; a última chance concreta argentina foi exatamente de Ortiz, que tentou um chute colocado após livrar-se na ponta da grande área de dois adversários, já no segundo tempo, ainda antes do gol sofrido.

Houseman e Ortiz, cada um em uma ponta, puderam ser colegas no Huracán, em 1981. À direita, ele no Independiente campeão de 1983 – embora como reserva obscuro

Na partida seguinte, Menotti deu nova chance a Houseman, que terminou substituído por Ortiz aos 18 do segundo tempo, com a partida ainda em 1-0 sobre a Polônia. Dali pela frente, o jogador do River viraria o dono da ponta-esquerda. Contra o Brasil, mesmo caçado por Toninho Baiano, quase fez o gol da vitória, chutando livre para fora um cruzamento rasteiro de Bertoni. Mesmo substituído (aos 31 do segundo tempo, por Alonso), não saiu mais dos titulares mesmo com o retorno de Luque: Menotti apenas realocou Kempes, dessa vez como armador na vaga de outro apagado na Copa, Valencia. O trio ofensivo ficou em Bertoni-Luque-Ortiz.

No polêmico 6-0 sobre o Peru, Ortiz apareceu especialmente no lance do quinto gol, curiosamente marcado por Houseman, que, substituindo Bertoni aos 20 do segundo tempo, teve apenas o trabalho de escorar para o gol vazio um dos perigosos cruzamentos do Negro. Na decisão, porém, Ortiz esteve apagado. Aos 30 do segundo tempo, deu lugar a Houseman, que pôs mais fogo pelo setor. Depois da Copa, Ortiz foi vice-campeão nacional pelo River ainda em 1978. Em 1979, o clube, tal como o San Lorenzo em 1972, faturou tanto o Metropolitano como Nacional; o ponta esteve respectivamente em doze e em cinco rodadas, prejudicado por uma suspensão.

O ano de 1979 foi o último dele na seleção. Ortiz se lesionou em excursão dela à Europa, sendo autorizado a voltar à Argentina. No voo, um incidente de descompostura nunca totalmente esclarecido supostamente envolvendo mistura de álcool e antibióticos por parte do jogador lhe provocou aquela suspensão, a marcar involuntariamente o fim do seu ciclo na Albiceleste; a última partida foi um reencontro com a Holanda, em jogo realizado na suíça Berna em 22 de maio, pelo torneio que celebrou os 75 anos da FIFA. Em paralelo, o River emendou os dois títulos daquele ano com um tricampeonato seguido, faturando o Metropolitano de 1980. Ortiz, relegado com o treinador Labruna abrindo mão de pontas em um novo esquema tático, jogou nove partidas. Deixou seu grande momento para um Superclásico histórico.

Foi quando El Negro marcou um dos gols em uma vitória de 5-2 sobre o Boca em La Bombonera, a maior goleada millonaria em duelos contra o rival na casa dele; tarde de “um Ortiz que muitas vezes complica com a simples ameaça de suas devastadora habilidade. Isso foi o River”, como assinalou a El Gráfico. Ortiz ainda marcou outra vez no dérbi naquele ano (foram seus únicos gols no confronto), em empate em 2-2. Ficou em Núñez até 1981, mas já sem participar do Torneio Nacional – a ponto de dizer que uma vez fora, não pisaria nunca mais ali. Seu destino foi, heresia, o Huracán, tradicional rival do San Lorenzo, recém-rebaixado. Curiosamente,  naquele ano foi colega de Houseman nos dois clubes. Ortiz não marcou exatamente época como quemero, mas o time de Parque de los Patricios, em contraste com o vizinho na segundona, fez um bom Metropolitano de 1982.

O Globo ficou um sexto lugar a três pontos do quarto, além de vitórias sobre os demais grandes; Ortiz chegou a ser ventilado pela seleção, mas declarou que ela não significava nada para ele, assim como o futebol, um mero “meio de vida”. Aquele Huracán tinha consigo um outro ex-sanlorencista, o volante Claudio Marangoni. Ambos terminaram adquiridos pelo Independiente. Maranga se sobressaiu em Avellaneda, mas Ortiz não, ainda que tenha integrado o elenco campeão do Metropolitano de 1983 – onde foi usado apenas no segundo tempo da 9ª rodada, um 0-0 em casa com o Racing de Córdoba. Com apenas 30 anos, cansado do futebol e já sendo proprietário de um leque de imóveis no tranquilo bairro portenho de Caballito, optou por dar a carreira por encerrada. Com a certeza de ter agradado sua mãe e todos os amantes do jogo, cujas mãos ficavam “vermelhas de tanto aplaudir”, nas palavras do livro oficial do centenário do River. Talvez até as mãos de Dante Panzeri.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

5 thoughts on “65 anos de Oscar Ortiz, ponta da seleção de 1978, ex-Grêmio e ídolo de San Lorenzo e River

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