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Já teve time chamado Buenos Aires na capital argentina. Fundado há cem anos e representado em Copa

Dentre as semelhanças no futebol de Londres e Buenos Aires, estão a imensidão de clubes espalhados por cidade e região metropolitana e a paixão notável de seus torcedores, não raro reconhecida como superior a demonstrada pelos brasileiros a seus times. E, em meio a tanta variedade de times, destaca-se também a ausência de algum a levar a cidade no nome. Na capital britânica, isso talvez se deva ao fato de que a City of London tenha oficialmente a reduzidíssima extensão de uma milha quadrada (aquilo normalmente designado como Londres na verdade se refere à Grande Londres), repleta de escritórios no que é o coração financeiro do país, sem espaço físico para sediar um hipotético London FC. Em Buenos Aires, já foi diferente.

Afinal, o primeiro football club do país e das Américas se chamava Buenos Aires FC, cuja fundação completou o sesquicentenário (150 anos) no ano passado. Só que ainda nos primórdios o BAFC adotou o rúgbi, em tempos nos quais a palavra football também poderia designar essa modalidade, estando ainda presente em muitos dos nomes oficiais em clubes que praticam a bola oval. Como pioneiro, o time participou do primeiro campeonato argentino de futebol em 1891, e só. Ficou na lanterna e voltou-se de vez ao outro esporte bretão. Hoje ele existe exatamente como Buenos Aires Cricket & Rugby Club e já contamos sua história em dois Especiais: clique aqui e aqui.

Posteriormente, Isla Maciel, cidade na municipalidade de Avellaneda, viu o nascimento do Buenos Aires Isla Maciel. O time teve vida curta, mas em 1º de fevereiro de 1918 fundiu-se com o Sportivo Argentino, criado por dissidentes do Boca. Fundava-se então o Club Sportivo Buenos Aires, logo inscrito no equivalente à segunda divisão. O uniforme lembrava mesmo a da seleção, mas em tom de azul mais escuro. Se o atual clássico de Isla Maciel se dá entre Dock Sud e San Telmo, na época os representantes mais expressivos eram o Sportivo e outro sumido, o Boca Alumni.

O Sportivo Buenos Aires, como o novato ficou conhecido, apareceu na elite em 1920, promovido em uma disputa política entre duas entidades que se proclamavam como a associação argentina: no ano anterior ocorrera uma cisão, com cada associação tendo a sua liga até uma reunificação vir em 1927. Reconhecida perante a FIFA, a Associação Argentina de Football manteve Boca e Huracán como os principais times. O Sportivo  apareceu na dissidente Associação Amateurs, a reunir Racing, Independiente, San Lorenzo e River. Ainda sediado em Isla Maciel, ficou em 16º em um torneio de 19 times. Chegou a levar de 9-0 do Atlanta na segunda rodada, conseguindo a primeira vitória só na nona, em 2-1 fora de casa sobre o Ferro Carril Oeste. Acabou não jogando as duas partidas finais.

As campanhas continuaram na rabeira da tabela até um 10º lugar em 1923 ser seguido de um 8º em 1924 (edição que teve como artilheiro um jogador do clube: Ricardo Lucarelli) e 1925, ano que o clube deixou Isla Maciel. Não foi para muito longe, continuando às margens do Riachuelo, agora no bairro portenho de La Boca – ocupando o último estádio que o River (que em 1923 havia se mudado à fina zona norte portenha após quase ter virado vizinho do Sportivo na Isla Maciel) teve por lá. 

Localização dos antigos campos do Sportivo Buenos Aires (hoje, do San Telmo) e do Boca Alumni em Isla Maciel e Carlos Peucelle em 1941, quando pendurou as chuteiras no River

O time não chegou a ir muito além do que já havia feito. Ficou em 19º entre 26 clubes em 1926; 20º de 34 no torneio unificado de 1927; 24º de 26 em 1928; 12º em um grupo de 17 no de 1929; e 11º no torneio de 36 times de 1930, o último campeonato antes de uma nova cisão no ano seguinte. A nova cisão criou um campeonato abertamente profissional. O Sportivo foi deixado de fora dos rebeldes, que não aceitavam a imposição da associação em manter as quase quatro dezenas de times na elite, com aqueles sem apelo econômico sendo ignorados pela nova liga – esse foi o motivo da discussão e não exatamente a manutenção do amadorismo. De fato, não é uma ironia ter se mantido na associação amadora o time que indiretamente rendeu um apelido chamado de Los Millonarios

Para chegarmos lá, precisamos antes relembrar os jogadores mais destacados dos alviazuis. O primeiro a defender a seleção foi o zagueiro e lateral Rodolfo Orlandini, a estrear pela Argentina em 14 de julho de 1927. Ele faria parte de todos os torneios disputados pela Albiceleste nos três anos seguintes: as Olimpíadas em 1928, a Copa América em 1929 e a primeira Copa do Mundo, em 1930, ano em que passou a defender o Estudiantil Porteño. Jogou boa parte da Copa, incluindo as semifinais. Embora não tenha participado da decisão, conseguiria uma transferência ao futebol europeu. Que foi histórica.

Argentinos já vinham jogando na Europa desde o início do século, incluindo na seleções francesa (Félix Romano, em 1913) e italiana (Eugenio Mosso, em 1914). Julio Libonatti, em 1925, se tornou o primeiro a emigrar após formar-se no futebol argentino, indo do Newell’s ao Torino. Vice olímpico em 1928, Raimundo Orsi em seguida trocou o Independiente pela Juventus. No caso de Orlandini, porém, pela primeira vez um clube argentino recebeu dinheiro pela transferência. Nada menos que para o time mais vezes campeão italiano até então, o Genoa, a tirar do Sportivo também Rodolfo Orsi (que precisou pagar 5 mil pesos para ir embora). Os rossoblù também contrataram do Huracán o artilheiro da Copa, Guillermo Stábile. Orlandini ganhou ali a Serie B de 1935.

Em 21 de julho de 1928, foi a vez de estrear pela seleção o ponta-direita Carlos Peucelle, revelado por sinal no San Telmo, time criado no bairro portenho de mesmo nome mas que se fincaria em Isla Maciel exatamente no estádio que outrora era do Sportivo. Diferentemente de Orlandini, Peucelle teve uma transcendência muito maior na seleção e na história do futebol argentino. El Barullo defendeu a Albiceleste por mais de dez anos. Já trintão, chegou a marcar três vezes por ela em uma só partida em 1940. Nada menos que numa goleada de 6-1 sobre o Brasil. Ainda jovem, marcou um dos gols na final da Copa de 1930, empatando provisoriamente em 1-1 o duelo contra os uruguaios.

Foi exatamente por contratar Peucelle em 1931 que o River passou a ser apelidado de Los Millonarios. Justificou a aposta com uma trajetória das mais vitoriosas por um clube que tinha até então um único título na elite, no longínquo 1920. Ganhou o campeonato em 1932, 1936, 1937 e 1941, quando pendurou as chuteiras em alto estilo. À beira da aposentadoria, era o ponta-direita inicial do elenco que seria apelidado de La Máquina. Era quase um assistente técnico enquanto ainda jogava, convencendo o treinador Renato Cesarini a deslocar para centroavante o outro ponta, o solidário Adolfo Pedernera. Depois de parar, virou técnico dos juvenis, função na qual convenceria Cesarini a dar espaço à revelação Alfredo Di Stéfano.

À esquerda, argentinos antes do duelo contra o México na Copa de 1930. Peucelle e Orlandini são os dois primeiros jogadores em pé. À direita, Peucelle comemora com Stábile na final

A partir de 1929, o Sportivo tornou-se o primeiro clube argentino a visitar as três Américas, reforçando-se com jogadores de outros clubes como alguns que defenderiam a seleção na Copa de 1930 – foram o casos de Juan Bottaso (Argentino de Quilmes), Alejandro Scopelli, Manuel Ferreira (ambos Estudiantes) e outros com passagem pela Albiceleste, como Felipe Cherro (Sportivo Barracas), Juan Arrillaga (do Quilmes e futuro jogador do Fluminense) e Miguel Ángel Lauri, do Estudiantes e que defenderia também a seleção francesa. Após ser a primeira equipe de hermanos a jogar no México e nos EUA, em fevereiro, a viagem ganhou etapa brasileira, já em março de 1930, com jogos contra combinados paulista, carioca e contra o Hespanha, atual Jabaquara. No caminho, chegou a empatar em 2-2 em Lima com a seleção peruana.

Além de Orlandini e Peucelle, só outro jogador defendeu oficialmente a Argentina vindo do Sportivo. O seu caso simboliza o contexto novo dos anos 30. Em 1931, como já dito, o Sportivo não foi visto como interessante para integrar a liga profissional, que rompeu com a Associação reconhecida pela FIFA. Por um lado, o campeonato profissional “pirata” era o apreciado por público e mídia. Por outro, quem jogava pela seleção eram os atletas das equipes “amadoras” (entre aspas pois também eram pagos, na surdina). Em 1935, a associação oficial se rendeu e foi absorvida pela liga profissional. Não a tempo de enviar os atletas profissionais à Copa do Mundo de 1934.

Assim, a Argentina foi à Copa de 1934 com uma equipe tecnicamente bastante inferior ao potencial real, caindo logo no primeiro duelo ainda que tenha dado trabalho à Suécia. Essa seleção contou com dois do Sportivo: os laterais Ernesto Albarracín, que jamais entrou em campo, e Arcadio López (estreante pela seleção exatamente no ano de 1931, em embate em 4 de julho contra o Paraguai). López, daquele pelotão, viria a ser justamente quem mais êxito posterior teve; defenderia a seleção até 1939, como jogador do Ferro Carril Oeste e também do Boca, que o comprara do Ferro mediante a entrega de uma arquibancada (!). Também esteve no Flamengo.

A fusão das associações em 1935 colocou os times “amadores” na segunda divisão profissional. O Sportivo, que em 1931 fundira-se com o Club Social Buenos Aires e se mudara ao bairro de Monte Castro (no centro-oeste portenho), já não vinha fazendo bonito mesmo em uma liga mais fraca: com exceção ao ano de 1931, onde ficara em terceiro, ficou na rabeira da tabela da elite amadora que subsistiu de 1932 a 1934. No profissionalismo, chegou a cair para a terceira divisão.

O Buenos Aires desafiliou-se da AFA em 1942, após participar de outras estatísticas: o primeiro adversário do primeiro técnico oficial do Independiente (Zoilo Canaveri, em 1929) e o adversário do Nueva Chicago na inauguração do estádio verdinegro, o República de Mataderos, em 1940.

Argentina na Copa de 1934. Arcadio López é o penúltimo jogador em pé e teve depois relativo êxito no Boca. Na imagem direita, está atrás de Ricardo Alarcón. Ambos jogaram no Flamengo

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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