Primeira Divisão

55 anos de um Boca x River histórico. E decidido por brasileiros em cada um

Ontem, o River amenizou um pouco a ressaca da Libertadores, conquistando o bi seguido na Copa Argentina. Mas é possível que a eliminação continental tenha sido fichinha perto de outra decepção doméstica millonaria, a completar 55 anos igualmente ontem. Afinal, foi diante do grande rival (a quem por sinal, por conta do título de ontem, enfrentará de modo inédito na Supercopa Argentina). E em tempos conturbados de um jejum que chegaria a incríveis dezoito anos em Núñez. Esse Superclásico dos mais históricos praticamente valeu um campeonato disputado pelos arquirrivais mais midiáticos da Argentina. E teve tempero brasileiro nos dois lados.

Era a penúltima rodada do campeonato argentino de 1962. Em dado momento, quem parecia que ganharia o título era o surpreendente Gimnasia LP, treinado pela lenda Adolfo Pedernera, considerado por Di Stéfano o maior jogador que vira. Foi naquela campanha que o time começou a ser apelidado de Lobo. Seu início não foi dos melhores, mas chegou a vencer nove jogos seguidos e liderar a cinco rodadas do fim. Foi quando perdeu em casa para um Vélez que terminaria em antepenúltimo. Na rodada seguinte, levou de 4-0 do Atlanta. Acabou ultrapassado pela dupla Boca e River e à altura da penúltima rodada as chances de título já se resumia aos dois. Foi quando se enfrentaram.

Boca e River, ao começar aquele 9 de dezembro de 1962, estavam empatados na liderança, cada um com 39 pontos, e se enfrentariam na Bombonera. Ambos já estavam há um tempo considerável sem obter o torneio: oito anos para o Boca, enquanto o River entrava no quinto ano, igualando sua outra maior seca, entre 1947 e 1952 (mal sabendo que o jejum da vez viria a durar aqueles dezoito anos). O que, naturalmente, só poderia aumentar as temperaturas daquele dérbi.

O River contava com o artilheiro do torneio, o supergoleador Luis Artime, recém-contratado junto ao grande Atlanta do início da década. Artime, uma versão argentina de Gerd Müller, marcara por sinal duas vezes no Superclásico do primeiro turno, também histórico: vitória millonaria em casa por 3-1, de virada, com os três gols caseiros vindos cinematograficamente em três minutos seguidos, dos 5 aos 8 do segundo tempo. Ainda assim, o Boca terminou a primeira metade na liderança, com três pontos de vantagem sobre os de Núñez e o Independiente.

Silvero, Rattín, Marzolini, Orlando, Roma, Simeone; Pueblas, Menéndez, Valentim, Pezzi e González. A escalação de 9 de dezembro de 1962 

Os reforços boquenses Carmelo Simeone (também apelidado de Cholo mas sem parentesco com o técnico do Atlético de Madrid, que do xará só herdou o apelido), Alberto González (ex-colega de Artime no Atlanta), José María Silvero e Norberto Menéndez – este, antigo ídolo do River nos anos 50 – vinham se adaptando bem aos remanescentes dos fracos anos anteriores: o volante Antonio Rattín, o lateral Silvio Marzolini, os brasileiros Paulo Valentim e Orlando Peçanha e aquele quem personificaria o título, o goleiro Antonio Roma. A ponto de na Argentina a data ser mais relembrada como “o dia em que Roma pegou o pênalti de Delém”, vide imagem que abre a matéria.

Sem sobressaltos, os xeneizes já haviam liderado no início e estavam invictos antes daquela derrota para o River, mais errático (depois de ganhar o clássico no primeiro turno, perdeu em casa para aquele forte Gimnasia), na 14ª rodada. Os auriazuis, porém, ficaram três rodadas sem vencer, entre a 20ª e a 22ª: empataram com o San Lorenzo e foram derrotados em casa para Rosario Central e para aquele Gimnasia fora; e folgaram na 23ª. O River, invicto nos oito jogos entre a 16ª e a 25ª rodadas e vencedor em seis delas (folgou na 17ª), conseguiu alcançar e superar em 2 pontos (valor da vitória na época) os bosteros, na 24ª.

Na rodada seguinte, porém, o Millo perdeu para o Huracán em Parque de los Patricios, enquanto o Boca venceu em seus domínios o Ferro Carril Oeste, reigualando a dupla. Cada um venceu todos os seus jogos dali até aquela 29ª rodada (ultrapassando nesse processo o Gimnasia), onde, segundo a El Gráfico, espectadores experientes em Superclásicos jamais viram recepção, barulho, duelos verbais e fogos de artifício na mesma intensidade antes.

Roma; Silvero, Simeone, Rattín, Orlando e Marzolini; Héctor Pueblas e Menéndez; Paulo Valentim, Miguel Pezzi e González, treinados por José D’Amico, foram os boquenses titulares há 55 anos, recebendo a escalação adversária do técnico Jorge Kistenmacher, formada por Amadeo Carrizo; Mario Ditro, Marcelo Sainz, Vladislao Cap e José Varacka; Marcelo Etchegaray, Martín Pando e Juan Carlos Sarnari; Artime e os brasileiros Delém e Roberto Frojuello.

River brasileiro: Roberto marca na vitória sobre o Real Madrid no Bernabéu. À direita, Delém nos anos 90 como técnico juvenil de sucesso dos jovens Almeyda e Ortega, dentre outros

De acordo com reportagens da época, os anfitriões jogaram mal e um tanto desorganizados. As chances mais claras teriam sido do River. Mas o Boca abriu a contagem, aos 15 minutos, de pênalti. Paulinho Valentim, maior artilheiro xeneize contra o maior rival pelo campeonato argentino (e quem marcara na derrota no primeiro turno), venceu o veterano Carrizo, que caiu para a esquerda enquanto a bola foi no canto oposto: 1-0. Ex-artilheiro do Botafogo, havia sido importado em meio à febre argentina por jogadores brasileiros no início dos anos 60, quando os tupiniquins estavam em alta por conta dos títulos mundiais. 

Após o gol de Valentim, seguiu-se um impasse, com os vencedores procurando manter a vantagem impedindo os visitantes de jogarem, enquanto estes corriam atrás do prejuízo, mas sem efetividade. Até que, a cinco minutos do fim, o árbitro Carlos Nai Foino assinalou outro pênalti, desta vez para os riverplatenses. O encarregado para cobrar foi outro brasileiro: Vladém Lázaro Luiz Quevedo.

Mais conhecido como Delém, o ex-Vasco vinha sendo o único a vingar na legião brazuca contratada para vestir a banda roja no ano anterior – ele, Roberto e o campeão mundial em 1958 Moacyr vieram após vencerem pela seleção a Copa Roca de 1960 (por jogarem no exterior, eles e os brasileiros do Boca como Orlando e Valentim acabaram não se mantendo na seleção para a Copa de 1962). Em 1961, gols dele e de Roberto inclusive haviam feito o River vencer no Santiago Bernabéu o Real Madrid multicampeão europeu e que não era derrotado por estrangeiros em casa havia oito anos.

Entendendo-se bem com Artime, Delém era o terceiro na artilharia do campeonato, com 19 gols (incluindo o outro gol millonario no Superclássico do primeiro turno) e também nos três jogos anteriores ao daquele Superclásico; o último, justamente de pênalti, em um 3-1 no Rosario Central. Já havia convertido outros dois penais no torneio, ambos em um 4-1 no Vélez. Foi também de pênalti que ele havia marcado no Real Madrid. Sempre no canto direito do goleiro oponente. Contra ele, estava El Tano Roma. Robusto e alto (tinha 1,90 m), ofuscava seus arcos ao agir como um urso, em depoimento de outro histórico atacante riverplatense, Ermindo Onega. 

Um ataque do River com cinco brasileiros: Delém (segundo agachado), Moacyr (o negro) e Roberto (quinto). À direita, Delém às lágrimas há 55 anos

Roma começara como titular em 1962, mas, após a 5ª rodada, perdeu a posição para o reforço Néstor Errea enquanto ocupava-se com a seleção para a Copa do Mundo do Chile, tendo reassumido o posto já na 17ª. Há 55 anos, Roma e Delém correram para a bola naquele pênalti. O brasileiro, para chutá-la e o goleiro, adiantando-se em dois ou três passos, para intercepta-la e jogá-la para escanteio. A irregularidade clamorosa do boquense foi reclamada pelos rivais, mas o juiz Nai Foino foi inflexível. Sustentou que “um pênalti bem batido é gol, então não protestem”, enquanto a massa bostera invadia o campo e interrompia a contenda por onze minutos.

Outra versão atesta que foi exatamente por conta da numerosa invasão que Foino nem pensou em ordenar nova cobrança: “Estão loucos, querem me fazer apitar de novo o penal… olhe a gente que tem! Que querem, que me matem?”, teria dito o árbitro a Menéndez, sobre reclamações de Cap e Varacka. Como se a crueldade fosse pouca, Delém mal pôde sentir-se em luto na hora, trombado, zombeteiramente ou não, por um adversário que corria para abraçar Roma (veja no vídeo inserido no tweet reproduzido mais abaixo).

Ao fim, o River Plate deixou o gramado ainda com chances de título, mas a impressão geral, como reportou na época o La Nación, era a de que o campeonato acabara ali. De fato, há quem esqueça que o River poderia forçar um jogo extra caso se reigualasse ao rival na última rodada, em que venceu por 4-1 exatamente o Gimnasia, em La Plata. Mas o Boca, ao qual bastava um empate, garantiu a taça ao também marcar quatro gols no outro platense, o Estudiantes.

O lance que definiu o campeonato de 1962 continuou a marcar e praticamente resumir a carreira dos envolvidos. Roma (falecido em fevereiro de 2013, após uma de suas últimas aparições públicas, emocionado, ser justamente nas lembranças dos 50 anos daquele momento) naturalmente seria lembrado como ídolo pela dúzia de anos em que protegeu as metas do Boca, mas aquela defesa bastou para inseri-lo no panteão da instituição. Delém, por seu lado, afirmou que sempre seria lembrado pelo pênalti que perdeu, não importasse o que fizesse pelo River. E fez muito, sobretudo comandando as categorias de base nos anos 90, conforme contamos aqui.

Roma, que “passou à história” não só por causa daquele pênalti, contrastando com Delém. À direita, capa pós-jogo da El Gráfico

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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