150 anos da primeira partida de futebol na Argentina

A mídia esportiva argentina ontem focou-se em uma data histórica: os dez anos da última Libertadores do Boca. Somente algo assim poderia (injustamente) ofuscar que efeméride em tese mais importante, voltada para o “ano um” do futebol argentino, o de 1867. Foi o ano da fundação dos dois primeiros times a jogarem partidas entre si no país, o Rosario Cricket Club (depois Rosario Athletic Club e atual Club Atlético del Rosario, mas mais conhecido como Plaza Jewell, sua sede), em março; e do Buenos Aires Football Club, em maio. Em 20 de junho, veio o primeiro jogo de football, ainda de modo interno no BAFC. Essa partida, possivelmente a primeira de futebol das Américas também, completou ontem seu sesquicentenário.

O Buenos Aires FC surgiu exatamente com o propósito dessa partida, realizada já no inverno portenho. Foi oriundo do Buenos Aires Cricket Club, este fundado em 1864. A comunidade britânica na Argentina era bastante numerosa e trouxe seus esportes mais cedo ao Rio da Prata do que no Brasil. Sem surpresas, era o críquete a modalidade inicialmente mais difundida – o jogo de tacos, normalmente praticado no verão, foi o primeiro esporte bretão a se profissionalizar, ainda no século XVII. A ponto da equipe de Sussex desfazer em 2003 um jejum de 164 anos, talvez a maior seca dentre todos os esportes no mundo, conforme sugerido pelo General Managers.

Esse esporte não sedimentaria fora do Império Britânico, só conseguindo popularidade na terra natal e nas colônias caribenhas, das Índias e Austrália. Mas foi tentado também nas zonas de influência. O Vitória, da Bahia, foi fundado em 1899 voltado para essa modalidade, enquanto os primeiros campeonatos cariocas de futebol contaram com o “clássico dos ingleses”, travado desde os tempos de críquete por Paissandu (de 1872) e Rio Cricket (de 1897). Muito antes, já às margens do Rio da Prata, surgiu o Montevideo Cricket Club, de 1861. Ele viraria o primeiro clube a praticar football fora do Reino Unido. Ou melhor, o rúgbi.

Na época, a palavra football poderia designar códigos diversos e o rugby football era um deles, do colégio da cidade de Rugby. Apenas em 1863 é que foi regulamento o association football, o “futebol da associação”, em referência à The Football Association, a federação inglesa. É de association que surgiu a abreviação soccer, ainda na Inglaterra. Embora a palavra esteja mais associada aos EUA, o Reino Unido é que é a pátria da World Soccer, uma das mais famosas revistas de futebol do mundo, por exemplo. Alguns dos primeiros clubes de futebol ainda se definem como Association Football Club, como o Sunderland, Swansea City, Hull City e Leeds United, nas primeiras divisões inglesas.

Do mesmo modo, não são raros os clubes de rúgbi definidos como Rugby Football Club (Bath, London Irish, London Welsh, Northampton Saints, Sale Sharks e Worcester Warriors) ou só Football Club mesmo – o exemplo mais célebre é o do Barbarians, formalmente um clube mas na prática um combinado mundial para jogos festivos, havendo também os casos de Harlequins – (fundador tanto da primeira federação de futebol como da primeira de rúgbi), Saracens e Leicester Tigers.

O jogo da bola oval seria por sua vez regulamentado em 1871. E, embora as regras da bola redonda estivessem regulamentadas desde 1863, aquela partida de 1867 tinha regras bem diferentes das conhecidas hoje. Não haviam goleiros e a bola poderia encostar livremente no braço, desde que não fosse agarrada. Também não havia travessão, apenas os postes verticais, como no futebol australiano. Talvez ainda só tenham sido admitidos passes para trás (regra ainda vigente do rúgbi, aliás), pois a mudança permitindo os passes para frente viera somente no ano anterior, em tempos de comunicação internacional mais demorada.

A bola só poderia ser disputada após a cobrança de um lateral se antes tocasse no chão, e o lateral era oferecido à equipe que havia posto a bola para fora. Não havia expulsões, muito menos cartões. Penalidades geravam bola parada onde haviam sido cometidas, de modo que não havia marca do pênalti.

Foi mais ou menos assim que em 20 de junho de 1867 teriam se enfrentado os times do Sr. Thomas Hogg e o do Sr. Walter Head. Que não foram onze contra onze, e sim oito contra oito (embora fosse o feriado do dia da bandeira, alguns dos que inicialmente jogariam preferiram apenas assistir como seria a ocasião), com cada lado se diferenciando pela cor dos gorros. No assassino frio de Buenos Aires de fim de junho, os de Hogg cobriram a cabeça com o vermelho e os de Head, com o branco.

Thomas Hogg se alinhou com J. Hogg, T.B. Smith, W. Forrester, Bond, E.S. Smith, N.H. Smith e Ramsbotton. Já Walter Head foi acompanhado por H.J. Barge, Best, U. Smith, Wilmott, R. Ramsay, J. Simson e W. Boschetti, provavelmente o primeiro de sangue latino no futebol argentino. Era uma quinta-feira e o jogo se deu perto de onde se situa o planetário Galileo Galilei, no fino bairro de Palermo (há placa relembrando a ocasião). Os membros do BAFC não conseguiram encontrar outro local e precisaram solicitar o terreno do Buenos Aires Cricket Club.

A peleja começou às 12h30 e terminou duas horas mais tarde, com Hogg batendo por 4-0 Head, cujo melhor jogador, na opinião do jornal The Standard, foi Barge. Na mesma notícia, o Standard divulgou que um novo jogo foi marcado já para 29 de junho. Já sobre a partida inaugural, o jornal não divulgou nada muito além dos participantes, local e horário. O relato mais completo foi proporcionado por Walter Head em seu diário. Como muitos pioneiros do futebol, incluindo na Argentina, ele era maçom (fora na taverna anexa à primeira Grande Loja Maçônica, em Londres, que as regras do association football foram criadas em 1863) e não esconde isso:

“20 de junho, quinta-feira. Por ser feriado e o dia da partida de futebol, J. Hogg e eu tomamos o trem das dez da manhã para Palermo para marcar o terreno, pois havíamos combinado em jogar no campo de críquete. Logo após colocar as bandeirinhas, fomos à confeitaria, onde comemos pão com queijo e bebemos cerveja (porter). O resto dos jogadores chegou no trem das doze. Não pudemos reunir mais de oito de cada lado e isso fez com que o esforço fosse realmente muito pesado. Jogamos durante duas horas e terminamos extenuados. Voltamos à cidade no trem das três e meia e imediatamente procedi a me trocar, pois ia jantar com Barge antes da reunião da Loja.

Minha costa doía tanto que, de repente, pareceu me tirar o apetita já que apenas toquei alguma coisa. Jantamos no Louvre com Kohman e bebemos champanhe e claret. Tive que aguentar até às sete, pois nossa Loja abria apenas nessa hora e são extremamente pontuais, sobretudo porque essa noite era a instalação do Venerável Mestre. Éramos quase cem e tudo se estendeu até às dez da noite, sendo eu o secretário. Ao sair, fui diretamente ao Temple e de imediato à cama, mas caramba!, quase não dormi, pois minha costa doía tanto que só pude fechar os olhos e em nenhuma posição fui capaz de descansar muito tempo. Tive então a certeza de que estava lesionado internamente (provavelmente nos rins), após o forte golpe no flanco que acidentalmente recebi em uma carga de J. Hogg”.

O jogo seguinte, de 29 de junho, já foi sucedido por outro em 9 de julho. E vieram muitos mais. Com o tempo, o Buenos Aires FC, assim como o Montevideo Cricket e o Rosario Athletic, trocaria o futebol pelo rúgbi (o BAFC oficialmente se fundiu com o Buenos Aires Cricket nos anos 50, formando o atual Buenos Aires Cricket & Rugby Club), deixando a bola redonda após participar do primeiro campeonato argentino dela (o mais antigo do mundo fora do Reino Unido), em 1891.

Mas a semente estava plantada: um dos sócios do BAFC, James Oswald Anderson, foi o principal entusiasta em prol da realização do primeiro campeonato de rúgbi fora do Reino Unido também, em 1899, sendo presidente da federação oval em 1905. Mas também se tornaria o pai da seleção argentina de futebol, em 1902, esporte no qual fora artilheiro do campeonato argentino de 1896. Conforme mostramos aqui, ele igualmente praticava o críquete, o esporte original dos pioneiros de 150 anos atrás – quando, involuntariamente, a era dos tacos na Argentina começava a ruir (especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial) para dar lugar aos footballs…