70 anos de Jorge Olguín, campeão da Copa 1978 e maior representante do San Lorenzo na seleção
Originalmente publicado nos 65 anos do craque, em 2017, revisto e atualizado
Quando o lateral Mariano Pernía, ex-reserva do Independiente, foi chamado de emergência pela seleção espanhola à Copa de 2006, no lugar do cortado Asier del Horno, fechava uma cicatriz familiar: seu pai, Vicente Pernía, zagueiro ídolo do Boca nos anos 70, ficou de fora do Mundial de 1978, ausência das mais criticadas. Um programa humorístico da época dizia que o Pernía pai era o postulante “triste”, enquanto o concorrente, por contar histórias ao técnico César Menotti, era o “alegre”. Era Jorge Mario Olguín, recordista no San Lorenzo de jogos pela seleção (só entre as oficiais, foram 36) e único jogador de linha e único titular que, ainda como jogador do clube do Papa, ganhou uma Copa do Mundo. Brilhante também no Argentinos Jrs campeão de quase tudo entre 1984-85, o defensor faz hoje 70 anos.
“Dizer ‘Olguín é alegre’ era uma crítica, embora parecesse o contrário. Não me afetou, mas a meu filho no colégio sim. Os outros garotos o zombavam e vinha chorando a casa. Até hoje muitos me seguem perguntando se eu era o alegre ou o triste, porque as pessoas se lembram que eu era achincalhado pela crítica. Uma vez falei com [o humorista Mario] Sapag, era um cara sensacional. O que ia lhe dizer, que não fizesse mais? Se era seu trabalho…”, começou Olguín em entrevista à El Gráfico em 2014, tamanha ainda é a repercussão daquela história. Da entrevista, extrairemos suas outras declarações.
Olguín nasceu em Dolores, no interior da província de Buenos Aires, mudando-se a Mar del Plata com dois anos em função da profissão de policial do pai. Começou na base de um dos principais clubes do balneário, o Alvarado – como atacante, talvez daí seu hábito de sair jogando. Entrou no time principal ainda com 13 anos, de improviso para substituir um lateral direito ausente (“depois, todos criticaram Menotti porque supostamente me havia improvisado de lateral, mas eu joguei de lateral no Alvarado e me testei como lateral no San Lorenzo, conhecia a posição”). Foi descoberto pelo San Lorenzo em um quadrangular que envolveu ainda Rosario Central, Quilmes e a seleção marplatense.
Em Buenos Aires, vivia na pensão do clube: “passava todo o dia jogando bola com a torcida e também com os garotos do Huracán, convivíamos totalmente, não havia os problemas de agora. A demolição do Gasómetro foi um golpe duro para mim, já havia ido ao Independiente, mas estava atado e uma linda etapa da minha vida, foram 13 anos no clube, a base sobre o que me formei”. Teve a primeira oportunidade no time azulgrana adulto em 1971, na marra: os profissionais haviam aderido a uma greve geral da categoria e o clube precisou cumprir tabela com seus juvenis.
Até mesmo o treinador, o ex-goleiro flamenguista Rogelio Domínguez, deu lugar – na súmula daquela 8ª rodada do Torneio Nacional, constou como técnico a lenda Diego García, velha glória dos anos 20 e 30 e ainda o segundo maior artilheiro sanlorencista. Olguín teve o luxo de estrear com direito a golzinho, empatando provisoriamente de pênalti em 1-1 contra o Guaraní Antonio Franco. Mas os adultos do adversário souberam ganhar por 3-2 em pleno Gasómetro.
Olguín torcia pelo Racing na infância, mas anos antes de defender ironicamente o rival Independiente ele já havia deixado o clubismo em casa em sua segunda partida oficial pelo Ciclón: novamente de pênalti, fez o segundo gol azulgrana no triunfo por 3-2 dentro de Avellaneda sobre a Academia, na rodada seguinte. Ele jogou também a 10ª, no 1-1 com o Vélez, e para a 12ª a greve já havia terminado. Era a rodada dos clássicos e ainda assim o River preferiu punir seus titulares, suspendendo-os para um duelo que se revelaria histórico contra o Boca, mas o Sanloré não teve a mesma coragem diante do rival Huracán (derrotado por 3-0) e Olguín já não voltou a atuar na temporada que terminaria com vice-campeonato.
Seu estabelecimento no time principal foi mesmo gradual. O clube do bairro de Boedo, no ano seguinte, tornou-se o primeiro a faturar no mesmo ano os principais torneios domésticos do país, o Metropolitano e o Nacional. Mas sem influência de Olguín, que só atuou quatro vezes no Metro (da 7ª à 10ª rodada) e nenhuma no Nacional. Um pouco porque a defesa titular estava sólida. E também porque, sendo daqueles zagueiros bastante técnicos que se aventuravam a sair jogando, desesperava técnicos resultadistas que teve no time, casos de Juan Carlos Lorenzo (o treinador do mágico 1972) e de Carlos Bilardo (do problemático 1979, ano em que a crise fez o clube vender o estádio Gasómetro e alguns de seus principais jogadores, caso de Olguín e também Claudio Marangoni e o veterano Narciso Doval).
“Se cortasse e desse um chutão, era o mesmo que nada, porque a bola voltava ao rival”, justificava sobre a preferência em sair jogando. “É uma das coisas que El Flaco [César Menotti] me respeitou à morte. Lembro que quando cheguei ao Argentinos [como técnico], pedi ao Flaco [Rolando] Schiavi que tentasse sair jogando. ‘Mas se eu não posso driblar um cone’, me disse. ‘Só lhe estou dizendo que pare a bola e a dê a um companheiro’, respondi, porque ele rechaçava tudo o que vinha ou a atirava para cima. Isso lhe serviu e aprendeu muitíssimo”. Hoje trabalhando na própria escolinha, Olguín analisou que “se trabalha muito mal nas divisões inferiores. A prioridade de muitos coordenadores é obter resultados, não formar garotos. Em muitas equipes da primeira divisão vejo defeitos conceituais terríveis, sobretudo na defesa, onde joguei”.
Começou a ganhar espaço em 1973, após a saída do técnico Lorenzo. Osvaldo Zubeldía, multicampeão na Libertadores pelo Estudiantes, assumiu e pôs Olguín (cogitado a voltar a Mar del Plata para jogar em outro San Lorenzo, o marplatense) como zagueiro, a posição que mais se identificaria, a ponto de ainda achar-se que seu uso como lateral na Copa de 1978 foi um improviso. Ricardo La Volpe, o outro único jogador que venceu uma Copa como sanlorencista (terceiro goleiro em 1978), declararia sobre o colega: “há técnicos que te dizem: atiramos a bola para cima e buscamos o rebote. Outros dizem: saímos jogando rápido pelas laterais. El Flaco Menotti, um maestro para mim, foi desses últimos. Por algo pôs Olguín de lateral no Mundial quando era zagueiro: queria uma saída clara”.
Foi Zubeldía quem indicaria Olguín a Menotti. Eternamente grato, o zagueiro buscou afastar Zubeldía do antijogo associado ao nome do ex-técnico daquele mal afamado Estudiantes. “Te pegava na nuca, mas te pegava porque queria te pegar, não porque Zubeldía mandasse. Ele queria que a equipe jogasse. Falando com muita gente daquela época, estavam de acordo que os que iniciaram essas coisas foram os jogadores. Tudo o que atribuem a Zubeldía, na realidade ocorria com Bilardo: a armadilha, tirar vantagens”. A equipe de Zubeldía, armada “com muito sacrifício”, terminou campeã nacional de 1974, o único título de Olguín como titular absoluto no San Lorenzo. A primeira convocação à seleção veio em março de 1976, entrando literalmente em uma fria: Julio Asad precisou ser cortado e Olguín estreou contra a União Soviética, em famosa partida marcada pela neve em Kiev; foi a estreia oficial também de Daniel Passarella.
No espaço de uma semana, foram três jogos no Leste Europeu: 1-0 nos soviéticos no dia 20, 2-1 na Polônia no dia 24 e derrota de 2-0 para a Hungria no dia 27. Início que rendeu histórias da Cortina de Ferro: “não havia tempo para tirar o visto, então me mandaram o visto de Asad. Sabes o que era a Rússia em 1976? Eram todos soldados, não havia civis. Entreguei o passaporte e começaram a ver o visto e minha cara, e com os dedos, me diziam ‘três, dois, três, dois’, eu não entendia. Depois, caí: no passaporte dizia Jorge Mario Olguín e no visto, Julio Asad. Não havia problemas com a foto, o problema era a diferença na quantidade de nomes. Fiquei nesse aeroporto, sentadinho em um banco, com um susto tremendo! Veio o embaixador e resolveu”. A viagem terminou com duas partidas não-oficiais, contra o Hertha Berlim em 30 de março (derrota de 2-1) e Sevilla (0-0 em 1º de abril).
Olguín manteve continuidade, com direito a um outro curioso jogo não-oficial pela seleção, contra os antigos rivais marplatenses do Alvarado (6-0, em 22 de setembro)… e ganhou ainda em 1977 a posição de Pernía, para a fúria da numerosa torcida do Boca (“com a seleção, jogamos a final do torneio de Mar del Plata com o Boca. O estádio era todo do Boca, parecíamos uma seleção estrangeira. Ganhamos de 1-0, mas todo o estádio estava contra, uma coisa de loucos”). Olguín foi irrepreensível durante quase todo o mundial. Na final, sua nota na El Gráfico foi 9. Só não levou 10 por um erro quase crucial: ter hesitado em acompanhar Rob Rensenbrink no célebre lance que resultou em bola na trave argentina no último minuto do tempo normal.
“Se entrasse, teria que cortar meus testículos”, admitiria ele, elogiado pelo próprio quase-carrasco – quando Resenbrink faleceu em 2020, o maior especialista brasileiro em futebol holandês (o blog Espreme a Laranja, de Felipe dos Santos Souza) dedicou-lhe nota fúnebre registrando que o craque laranja (que, além do título à Oranje, também teria garantido a artilharia do mundial se aquela bola entrasse) reconhecera que Olguín pudera se recuperar a tempo de atrapalha-lo na conclusão, obrigando-o a chutar de primeira. Eleito para a seleção da Copa do Mundo, por ela jogou um 2-2 contra o Cosmos no famoso amistoso em que Cruijff atuou pela equipe ianque, ao lado de Beckenbauer.
O ápice se contrastou com o pós-Copa: “dez dias depois, lembro que jogamos contra o Argentinos no campo do Atlanta, de noite, cem pessoas nas arquibancadas, um frio… nos convidavam de vinte países diferentes, mas tínhamos que seguir em nossas equipes”. Sem receber salários, processou o San Lorenzo. Ficou sem clube. Sentindo-se ameaçado de perder lugar na posição, fez um acordo com Julio Grondona, recém-empossado presidente da AFA: retirava o processo com o San Lorenzo e acertava com o Independiente, outrora presidido por Grondona. Aceitou a proposta e deu certo: manteve-se na Argentina e acumulou 24 jogos oficiais seguidos, uma das melhores marcas de sempre.
Olguín ainda é o único que defendeu a Albiceleste vindo tanto dos azulgranas como dos rojos. Em Avellaneda, foi campeão argentino em 1983, mas ficou menos reconhecido do que poderia: segundo ele, porque o técnico José Omar Pastoriza preferiria pôr o amigo Enzo Trossero (curiosamente, outro racinguista na infância). Somou vinte aparições na campanha campeã, a última delas ainda na 30ª das 38 rodadas de um título marcado por se garantir em pleno Clásico de Avellaneda – contra um rebaixado Racing.
Além de não se imortalizar naquele dérbi dos mais históricos, Olguín saiu do Independiente antes do clube jogar a vitoriosa Libertadores (e Mundial) do ano seguinte. Uma transferência para o River se encaminhou e ele chegou a fazer fotos com o uniforme millonario, mas jamais foi chamado para assinar o contrato. O destino foi o Argentinos Jrs. E justamente no clube menos pensado, viveria o esplendor da carreira; por ter revelado Maradona, a equipe até agigantou sua expressão internacional, mas sua torcida ainda tem porte de equipe de bairro.
Olguín seria fundamental nos outros feitos que alavancariam a imagem externa do Argentinos. O clube de La Paternal, que convivia com o rebaixamento, resolveu jogar o fino da bola em vez de se preocupar apenas em roubar pontos. Em 1984, foi campeão argentino pela primeira vez, algo distante até nos tempos de Maradona (vice em 1980, mas muitos pontos atrás do campeão River), com Olguín marcando o único gol na partida decisiva, contra o Temperley. Em 1985, veio um bi seguido. E, sobretudo, a Libertadores, com direito a vencer no Rio de Janeiro tanto Vasco como Fluminense na primeira fase, com autoridade raramente reconhecida pelos próprios brasileiros (vide vídeo acima), que tanto atribuem insucessos locais meramente à “catimba” portenha.
A qualidade daquele Argentinos seria provada no Mundial Interclubes, que esteve a sete minutos de ser vencido sobre a poderosa Juventus. Os bichos colorados cairiam nos pênaltis (Olguín acertou sua cobrança), momento que o defensor, agora um líbero, considera o mais triste da carreira. O clube ainda esteve no páreo na Libertadores de 1986, só caindo no triangular-semifinal no critério de desempate com o River após serem necessários três jogos contra o Millo. No último deles, com prorrogação e tudo, o 0-0 favoreceu o concorrente, que teve as duas traves salvando uma cobrança de falta de Olguín – que era ótimo na bola parada.
A fase era tão boa que o veterano, ausente da seleção desde a eliminação contra o Brasil na Copa de 1982 (como tantos remanescentes de 1978), teve chances reais de ir à Copa do Mundo de 1986. Mas, desaprovando os métodos de Bilardo (agora técnico da seleção; “era um cara que se preocupava mais com o rival do que com a própria equipe, sua obsessão era defender, te fazia olhar mil vídeos para ver como o outro jogava e não para lhe corrigir”), não retornou as ligações do treinador. Ao todo, foram 60 jogos oficiais pela Albiceleste e outros 32 não-oficiais, nos quais marcou seu único gol – em um 4-1 em 18 de junho de 1981 sobre a seleção da província de Santa Fe, pela qual jogaram Leopoldo Luque e Edgardo Bauza.
Ex-colegas de Olguín naquele Argentinos Jrs não ousaram tanto contra Bilardo e estiveram no México, casos do talismã Pedro Pasculli (também aniversariante nesse 17 de maio, aliás) do craque autossabotado Claudio Borghi e do titularíssimo Sergio Batista – que, ao ser criticado já na Copa de 1990, declararia que “as pessoas sempre precisaram implicar com alguém: em 1986 com [Oscar] Garré, em 1978 com Olguín. Isso me tranquilizou, porque Olguín era um jogador impressionante”. O defensor penduraria as chuteiras em 1988, campeão por todas as camisas onde passou.
https://twitter.com/Argentina/status/1526563195350945793
https://twitter.com/AAAJoficial/status/1526561739487207425
Pingback: Covid-19 leva José Rafael Albrecht, um dos maiores defensores-artilheiros do futebol
Pingback: 35 anos do primeiro rebaixamento de um gigante: o do San Lorenzo
Pingback: Néstor Clausen, o único titular do Independiente campeão continental nos 80 e 90
Pingback: Juan Carlos "Toto" Lorenzo: (muito, muito) mais que o maior técnico do Boca no século XX
Pingback: Argentina e Holanda, uma ligação histórica para além das (muitas) Copas do Mundo
Pingback: Jogar por Boca e River, por Racing e Independiente: a carreira única de Osvaldo "Japonês" Pérez
Pingback: César Luis Menotti, o técnico da Copa 1978 que a seleção teve graças ao Juventus-SP