Relembre o “Eurocelta”, impulsionado por argentinos em Vigo na virada do século
Facundo Roncaglia marcou e o Celta do técnico Eduardo Berizzo, que tem de argentino também Roberto Cabral, quase fez o crime em Old Trafford – perdeu no último lance o gol da classificação, fora de casa sobre o poderoso Manchester United, à final da Liga Europa. Foi a melhor campanha continental da equipe de Vigo, que na virada do século, com Berizzo de jogador e outros hermanos, chegou a ser apelidada de Eurocelta, agora superado. Mas que merece ser lembrado.
O Eurocelta não foi a primeira colônia argentina em Vigo. Serviu justamente de redenção à frustração da temporada 1958-59: os galegos, contando com Alfredo Rojas (que havia ido à Copa do Mundo da Suécia e seria matador no Boca, indo também à Copa 1966), Diego Bayo (elegante armador do Gimnasia LP) e Raúl Gómez, ex-Rosario Central, terminaram rebaixados. O time havia sido 7º na temporada anterior, com Ernesto Gutiérrez e José Vigo (que sobrenome apropriado!), figuras históricas de Racing e Huracán respectivamente.
O meia Hermes Desio veio da reserva do Independiente em 1994 para ser o primeiro argentino do Celta noventista, saindo após duas temporadas. Não ficou para o Eurocelta, iniciado na temporada 1998-99 com a chegada do armador Gustavo López, maior ídolo que o Independiente teve nos anos 90, fundamental no bi da Supercopa Libertadores em 1994-95. Gustavito ficaria em todo o ciclo, até 2007, incluindo a decadência culminada em rebaixamento em 2004. Identificou-se tanto que radicou-se em Vigo, trabalhando como comentarista no Canal+ espanhol:
“Há tanto tempo que estou aqui… quando vivia na Argentina era jovem, solteiro; hoje estou casado, tenho três filhos, uma vida muito tranquila, não há problemas com a segurança, me sinto bem. Vigo é uma cidade bonita, cômoda, as pessoas são muito amáveis”, declarou em 2011 à revista El Gráfico. Sobre a experiência esportiva, proferiu o seguinte: “sempre estive cômodo no Celta e me senti muito querido. Conquistamos coisas importantes, também”.
“O Celta é um clube ao qual sempre tudo lhe custou muito, e me sinto feliz de ter jogado tantos anos aí. Acredito que só nos faltou conseguir um título. E dentro do campo me divertia. Depois, por exemplo, em um momento o Chelsea veio me buscar, mas o Celta não quis me vender”.
O argentino chegou a um clube que já vinha forte, em 6º na liga em 1998 e classificado à Copa da UEFA. Subiu para 5º em 1999, a um ponto da classificação à Liga dos Campeões e a quatro do vice Real Madrid. Na Copa da UEFA, caiu nas quartas-de-final para o Olympique de Marselha após bater dentro da Inglaterra Aston Villa e Liverpool. Três argentinos chegaram então para a temporada 1999-2000: Nelson Vivas, zagueiro da seleção que havia ido à Copa de 1998, foi emprestado pelo Arsenal inglês; Fernando Cáceres, outro zagueiro ex-seleção em Copa (a de 1994) e raro jogador que a defendeu tanto por River como por Boca, vinha do Valencia; e o atacante Mario Turdó, saído do Independiente.
Vivas e Turdó saíram ainda naquela temporada. Já El Negro Cáceres ficaria até 2004. Figura em outra equipe pequena espanhola, o Real Zaragoza campeão da Copa do Rei em 1994 e da Recopa Europeia em 1995, não era de marcar gols mas chegou a fazer no clássico galego, que vivia o auge naqueles tempos de Super Depor do La Coruña (campeão espanhol naquela temporada 1999-2000). Foi no dérbi mais longo, forçando prorrogação na Copa do Rei contra o Deportivo. As penalidades iam chegando, mas o próprio Cáceres foi expulso e o rival empatou no finzinho do tempo extra com outro argentino, José “Turu” Flores.
Cáceres, infelizmente, hoje sofre as sequelas de um atentado à bala na cabeça do qual sobreviveu por milagre. “Fui colega dele em Zaragoza e Vigo, fomos companheiros e tínhamos uma relação muito boa. Me causou uma grande tristeza o que aconteceu”, afirmou Gustavo naquela entrevista. Naquela temporada 1999-2000, o Celta ficou “só” em 7º em La Liga, mas deslumbrou a Europa. Na Copa da UEFA, o Balaídos viu seus homens aplicarem 7-0 no Benfica e 4-0 na Juventus. O anticlímax veio nas quartas-de-final, contra a camisa menos pesada do Lens. Após 0-0 na Galiza, os espanhóis abriram 1-0 já no segundo tempo na França, mas sofreram virada-relâmpago e foram eliminados.
A temporada 2000-01 rendeu o único título ao Eurocelta: a desvalorizada Copa Intertoto, dividida com Stuttgart e Udinese. O foco foi no cenário doméstico, com o 6º lugar no campeonato e sobretudo a final da Copa do Rei. O clube chegou a ser declarado na época “o melhor do mundo” pela IFFHS. No elenco, López e Cáceres eram agora acompanhados por Pablo Cavallero, goleiro reserva da seleção de 1998 e vindo do Espanyol recém-campeão da própria Copa do Rei em pleno centenário dos catalães; e Berizzo, zagueirão que vinha do grande River dos anos 90, só se ausentando por lesão da Copa de 1998. Outro a vir da Argentina era o peruano Juan Jayo, ex-Unión.
O atual técnico Toto Berizzo destacou-se, curiosamente, pelos gols na Copa: somou três, um contra o Leganés e outros em cada semifinal contra ninguém menos que o Barcelona. Na decisão, o quarteto argentino, unido às panelinhas brasileira (Giovanella e Catanha, que adotara a seleção espanhola) e russa (Valeriy Karpin e Aleksandr Mostovoy) foi todo titular e abriu o placar, mas tomou a virada do Real Zaragoza, que matou o jogo ao fazer 3-1 nos acréscimos do segundo tempo.
A novidade para 2001-02 foi o zagueiro Sebastián Méndez, com passagem pela seleção e forjado no grande Vélez dos anos 90. O clube ficou em 5º, mas sofreu decepção na Copa da UEFA, eliminado pelos tchecos do Slovan Liberec, que conseguiram o 3-0 em casa após vitória espanhola de 3-1 no Balaídos. Ainda assim, Gustavo López e Cavallero terminaram convocados à Copa do Mundo, onde o goleiro foi titular da Albiceleste. Berizzo também estava apto para ir ao mundial da Ásia, mas de novo foi prejudicado por lesão (no ligamento do joelho).
A melhor temporada foi a seguinte. O quinteto recebeu a companhia do volante Eduardo Coudet, do River seguidamente campeão doméstico na época. El Chacho pouco acrescentou, mas os compatriotas fizeram o serviço e terminaram em 4º, com a inédita vaga na Liga dos Campeões – ainda que na fase preliminar, onde eliminaram o Slavia Praga.
Ironicamente, o sucesso seria a ruína do Eurocelta. Na fase de grupos da Liga dos Campeões de 2003-04, vitórias sobre o Ajax de Ibrahimović e, em pleno San Siro, sobre o Milan de Kaká. Os galegos só caíram para os Invencibles do Arsenal daquela temporada, nas oitavas. Mas o foco na Liga dos Campeões cobrou o preço em La Liga: o time terminou rebaixado. O que não impediu que Cavallero, que chegou a atuar com nariz quebrado naquele mata-mata contra os ingleses, ainda chegasse a jogar mais algumas vezes pela Argentina, mas tanto o goleiro como Cáceres logo saíram.
O time imediatamente subiu à elite, como vice da segundona de 2004-05, ainda com Berizzo (que dali foi pendurar as chuteiras no Cádiz), López e Méndez. A estes dois juntou-se o lateral Diego Placente, ex-seleção na Copa de 2002. A recuperação parecia fantástica, com o 6º lugar na temporada 2005-06 e outra classificação ao continente, à Copa da UEFA. Méndez, que nunca foi titular absoluto, saiu após essa temporada, vindo ao San Lorenzo para vencer o Clausura 2007.
O cenário de 2003-04, porém, se repetiu em 2006-07: queda nas oitavas continentais (para o Werder Bremen em grande fase sob o hoje flamenguista Diego) e rebaixamento doméstico. Placente foi ao Bordeaux e López praticamente pendurou as chuteiras, embora fosse ao Cádiz. O Celta teria de esperar meia década para voltar à elite, em 2012. “Estão constantemente ao teu lado. Sentes a decepção de cair da elite, mas, como as lesões, ir à série B é uma possibilidade que forma parte da tua profissão de jogador”, analisou Gustavito.
Infelizmente (ou não…), o clube se ausentará da Europa para a próxima temporada. O empenho no continente cobrou um modesto 12º lugar na Espanha e uma eliminação para o Alavés nas semifinais da Copa do Rei. Melhor sorte e Berizzo e comandados ano que vem!
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