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80 anos de Miguel Ángel López, tetra da Libertadores e técnico do Maracanazo argentino

Originalmente publicado no aniversário de 75 anos, em 2017

O Independiente teve diversos ídolos Miguel Ángel, versão castelhana de Michelangelo. O mais recente, o ex-craque Brindisi, treinou no biênio 1994-95 o elenco campeão vencedor do único troféu argentino comemorado entre 1989 e 2002, da primeira Supercopa do clube e da única Recopa do Rey de Copas. Só o ciclo tetra seguido na Libertadores (recorde exclusivo do Rojo) e do primeiro Mundial do clube, entre 1972-75, teve o volante Raimondo, o goleirão Santoro e o zagueiro López. Só que falar apenas no sobrenome López também pode remeter a Gustavo, o cérebro do elenco treinado por Brindisi. Mas fale em El Zurdo (“O Canhoto”; a pronúncia é “surdo” mesmo) e a torcida roja saberá do único de quem se trata: do tal zagueiro Miguel Ángel López, que hoje faz 80 anos. Aliás, foi também sucessor de Brindisi em 1995 e igualmente campeão da Supercopa, no Maracanã.

Nascido no interior cordobês, López conseguiu o feito de chegar aos palcos principais do futebol argentino sem passo prévio pelos gigantes da terra natal. Como havia sido volante nas inferiores, esse zagueiro não sabia só ser um bom marcador como tinha um bom manejo da bola. Em Córdoba, só passou pelo Unión Central e pelo Universitario, vindo então à província de Buenos Aires para exercer o serviço militar obrigatório. Colocado em regimento da cidade de Junín, acabou conciliando as forças armadas com o principal clube local, o Sarmiento, em jogos da segundona.

López no Ferro (enfrentando o Independiente), River e no Atlético Nacional (ao lado de Francisco Maturana. O goleiro, Raúl Navarro, foi argentino da seleção colombiana)

A estreia na elite veio em 1964, com a camisa de outro clube sinônimo de Libertadores, o Estudiantes. Mas saiu antes do time de La Plata imaginar essa relação. Em 1967, enquanto os ex-colegas venciam o campeonato argentino furando o oligopólio que perdurava desde 1930 entre os cinco grandes (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), López estava no Ferro Carril Oeste – um clube rico no poliesportivo mas modesto no futebol. Havia se envolvido em uma troca de jogadores com os verdolagas. Mas a mudança lhe fez bem.

Aquele beque que estreara em março pelo time do bairro de Caballito chegou em outubro à seleção argentina, em um 1-1 amistoso com o Paraguai em Assunção. Afinal, o Ferro havia feito um bom Metropolitano, a três pontos de classificação às semifinais, até vencendo em Avellaneda o Independiente. O desempenho do zagueiro o levou a um gigante. Ainda não o Independiente, e sim ao River.

Estreia pela seleção argentina, ainda como jogador do Ferro. Foram só duas partidas. O goleiro Buttice (America-RJ, Bahia e Corinthians), o outro López (Internacional) e Fischer (Botafogo e Vitória) jogaram no Brasil

Foram três temporadas agridoces em Núñez: López e o Millo faziam boas campanhas, mas os títulos insistiam em escapar. Em nada ajudava o clube viver em jejum desde 1957. Já era o maior da história millonaria no ano em que o zagueiro chegou, seca que duraria muito mais tempo ainda (dezoito anos, até 1975). Em 1968, o elenco caiu na semifinal do Metropolitano para o campeão San Lorenzo e perdeu o triangular final do Nacional para o Vélez, sendo prejudicado no confronto direto com o campeão – um empate que poderia ter sido vitória não fosse um gol evitado pela mão de um zagueiro adversário, irregularidade não notada pelo árbitro.

Em 1969, o River foi goleado na final do Metropolitano pelo nanico Chacarita e perdeu o Nacional na última rodada, em casa, em confronto direto com o arquirrival Boca. Em 1970, viu o Independiente levar nos critérios de desempate o Metropolitano graças a um gol que o concorrente fez no rival Racing nos minutos finais. No Nacional, perdeu as vagas nas semifinais por um ponto a menos que o Gimnasia LP… aquele River, por ironia, forneceria mais de um membro do tetra seguido do Independiente, casos do goleiro José Pérez, do lateral/técnico Roberto Ferreiro e dos zagueiros Francisco Sá (maior campeão do torneio) e El Zurdo López.

López venceu como reserva a Libertadores de 1972. A foto é pela de 1973: Raimondo, Commisso, Santoro, Sá, López e Pavoni; Bertoni, Galván, Maglioni, Semenewicz e Mendoza

López chegou a Avellaneda em 1971, a tempo de ser enfim campeão argentino, ainda que por uma reviravolta: o Vélez encantava no Metropolitano e seria campeão se derrotasse em casa o time instável do Huracán, mas mesmo assim e abrindo o placar, perdeu de virada. A derrota velezana permitiu que o Rojo, ao vencer o Gimnasia, terminasse campeão. A vaga na Libertadores, por sua vez, veio após tira-teima com o vice do Nacional (o Metropolitano só passou a dar vaga direta em 1973), o San Lorenzo – um troco saboreado apenas uma semana depois de ter sido eliminado pelo próprio Sanloré nas semifinais daquele Nacional. Uma dinastia estava prestes a começar…

Em meio ao tetracampeonato seguido que viria na Libertadores, El Zurdo participou principalmente nos títulos de 1973 e 1974, compondo uma defesa sólida com Pancho Sá no miolo de zaga e com as laterais fechadas por Eduardo Commisso e por Ricardo Pavoni. Em 1972, López ainda concorria com o uruguaio Luis Garisto e não chegou a participar das finais com o Universitario, mas eventualmente conseguiu inverter a situação para a edição 1973 a ponto de o próprio Garisto ser negociado em 1974; outra opção regular na defesa foi o coringa Alejandro Semenewicz, também escalável mais à frente, como volante.

Francisco Sá, Miguel Santoro, Rubén Galván, Miguel López, Eduardo Commisso e Ricardo Pavoni; Agustín Balbuena, Alejandro Semenewicz, Eduardo Maglioni, Ricardo Bochini e Daniel Bertoni: o Independiente, enfim com o troféu do Mundial Interclubes

Mesmo sem ter sido titular na volta olímpica de 1972, López foi, como muitos daquele time, convocado pela seleção para a disputa da Taça Independência – uma Minicopa feita pelo Brasil na celebração dos 150 anos do grito do Ipiranga. Fez na derrota de 3-1 contra Portugal sua segunda e última aparição pela Albiceleste, cinco anos depois da estreia ainda como atleta do Ferro Carril Oeste. Na ocasião do Mundial Interclubes, já passou a ocupar a vaga de Garisto para os duelos com o Ajax, sem impedir o triunfo dos holandeses. Segundo ele, a maior satisfação naquele ciclo foi mesmo o primeiro título no Mundial, já na edição de 1973. Para muito além do feito esportivo…

Seu pai estava sob câncer terminal na época e López só viajou após se assegurar com o médico de que, apesar do estágio avançado da doença, o prognóstico estimava ainda uma sobrevida suficiente para aguardar a volta da viagem à Itália para o duelo (diante da recusa do Ajax, a vice europeia Juventus concordou em substituir os holandeses no tira-teima). “No regresso, a primeira coisa que fiz foi meu pai. Estava prostrado na cama. Lhe perguntei como estava, me olhou e disse: ‘como eu poderia estar? Agora morro tranquilo'”, relembrou recentemente, ainda emocionado. Em paralelo, já havia faturado naquele 1973 a Copa Interamericana ainda válida pelo ano de 1972. Em 1974, além de nova Libertadores, também foi festejada nova Interamericana, extinto tira-teima entre os vencedores da Libertadores e da Concachampions.

Independiente desfila o troféu de campeão do mundo. Atrás do goleiro (outro Miguel Ángel, o Santoro), um López cabisbaixo: perdia o pai para o câncer

O Mundial Interclubes, por sua vez, ficou indefinido com a recusa do Bayern Munique e só veio a ser travado já no primeiro semestre de 1975, e esdruxulamente o vencedor seria o Atlético de Madrid, até hoje jamais campeão da Liga dos Campeões. No fim do mesmo semestre, começou nova Libertadores. López já não estaria na maior parte desse título: lesionou-se com menos de meia hora na estreia e em sua ausência Semenewicz foi improvisado na zaga. Conseguiu voltar justamente para a finalíssima em campo neutro contra a Unión Española. Disputou os 90 minutos e pôde aparecer na foto com a taça. Foi o fim do seu ciclo: em 1976, enquanto os ex-colegas falhavam na tentativa de um pentacampeonato, López vencia a financeiramente atrativa liga colombiana pelo Atlético Nacional.

Ele emendou no time de Medellín o início da carreira de treinador. Seu feito mais bonito, porém, foi adotar um garoto das ruas colombianas, registrado também como Miguel Ángel López. Na nova carreira, voltou em 1979 a Buenos Aires para treinar o Argentinos Jrs de Diego Maradona. Apesar do prodígio emendar artilharias nos torneios argentinos, ainda pesava mais a estrutura modesta do clube, que não ia além de um 5º lugar no Torneio Metropolitano e calhava de ser sempre eliminado na fase de grupos dos Torneios Nacionais. Pois sob o trabalho técnico de López vieram a melhor campanha até então de Dieguito e do próprio time: a equipe do bairro de La Paternal, ainda virgem de títulos na primeira divisão, foi vice-campeã do Torneio Metropolitano de 1980.

Independiente campeão da Libertadores 1974: Gay, Pavoni, López, Raimondo, Sá e Commisso; Bertoni, Saggioratto, Bochini, Galván e Balbuena

Depois, enfim avançou aos mata-matas no Nacional, com o desfalque do astro para a seleção fazendo-se sentir na queda nas quartas-de-final. Mas esse trabalho bastou para render a López um primeiro retorno ao Independiente, em 1981. Sem engrenar no Metropolitano, o Rojo decolou para o Nacional de 1981: parou nas semifinais apenas pelo critério do gol fora de casa, após dois empates com o futuro campeão River. Era o suficiente para deixar López sob prestígio, bastante: era ele a opção inicial para suceder César Menotti como treinador da seleção após a Copa de 1982.

O que acabou brecando Julio Grondona (ele próprio ex-presidente do Independiente) de promove-lo à Albiceleste foi a forma conturbada com a qual López deixou o clube, saindo às turras com o presidente rojo Pedro Iso, amigo de Don Julio. López acabou eventualmente rumando pelo Boca, treinando o período institucionalmente turbulento entre 1983-84, suficiente para fazer dele uma rara figura a trabalhar para as três maiores torcidas argentinas.

Como técnico de Maradona no Argentinos Jrs: foram vices argentinos em 1980, pódio mais alto do clube até então

De lá, foi ao América do México, clube e país onde mais fez seu nome como técnico. Foi bicampeão mexicano em 1984 e 1985 e vencedor da Concachampions de 1993. A seleção argentina hospedou-se nas instalações do América do Zurdo durante a Copa do Mundo de 1986. O outro time onde foi campeão continental como técnico foi, é claro, o Independiente, onde o tempo permitiu redimir-se pelo trabalho agridoce de 1981-82. Foi no segundo semestre do ano de 1995.

O Rojo vinha da ressaca do elenco vitorioso de Brindisi, com mais de meio time debandando após a Recopa, ainda em abril. Sem os astros Islas, Usuriaga, Rambert e Hugo Pérez e com Garnero recuperando-se de grave lesão, os remanescentes treinados por López (que sucedia a estadia interina do ex-colega Pavoni), que antes de sua chegada vinham de sofrer goleadas de 4-1 para o River, 3-0 para o Vélez e 5-0 para o Boca, não enchiam tanto assim os olhos. Quando chegou, não retomou o mesmo futebol de Brindisi e sofreu vaias, mas refutava que seu time jogasse mal:

“Com o canhoto, o Boca começou direito”: a espirituosa matéria sobre López treinando o Boca. Ex-jogador do River e ídolo no Independiente, López foi raro homem a trabalhar para as três maiores torcidas da Argentina

“Não estou de acordo, nossa equipe jogou quase sempre bem. Empatou muitos jogos, mas perdendo gols no arco contrário. Contra o Banfield, por exemplo, erramos 14 gols. Mas não, como aqui só se critica pelo resultado, diziam: ‘o Independiente foi um desastre’. Nesse jogo contra o Banfield, contra o San Lorenzo e frente ao Estudiantes, a equipe esteve brilhante. Sim, brilhante, só faltou definir melhor. Mas neste país, parece que desde há um tempo mudou o gosto pelo futebol: agora se diz que uma equipe de futebol é difícil se ela se mete toda atrás e complica a vida, não a que toca e trata de chegar harmoniosamente ao arco rival”, defendeu-se à El Gráfico pós-título da Supercopa.

Quando contestado sobre por que jogava então com um só atacante e três volantes, respondia: “o futebol se analisa pelo que ocorre em campo, não pelo prévio. O que ocorre é que muitos vivem sujeitos a sistema convencionais, que foram realidade no seu momento, mas que hoje estão modificados. E como não se conhece o tema, atacam. Como se jogar com três atacantes garantisse um bom ataque. O futebol não é ofensivo nem defensivo. Se trata de jogar bem ou mal. Se ponho três atacantes e não chego, não sou ofensivo, sou inofensivo, joguei mal”.

Vinte anos de diferença entre o técnico López com a Supercopa 1995 e o Independiente tetra da Libertadores, em 1975: Commisso, Galván, Sá, López, Pérez e Pavoni; Balbuena, Semenewicz, Bochini, Ruiz Moreno e Bertoni

De um modo ou de outro, López e o Independiente conseguiram o bi da Supercopa, fazendo do Independiente o maior campeão também desse torneio, mesmo com uma campanha errática de só duas vitórias em oito jogos. Já o vice Flamengo, buscando salvar seu centenário, vinha vencendo todos, tanto dentro como fora de casa, perdendo apenas nos 2-0 sofridos em Avellaneda. No Maracanã, cenário da foto que abre essa matéria, mais de cem mil viram os comandados do Zurdo anularem Sávio e Romário, segurando com o regulamento firmemente no braço a derrota de 1-0.

Detalhamos neste outro Especial como foi a trajetória para a única volta olímpica que uma equipe argentina deu no Maracanã, executada pelo ex-zagueiro aos abraços com o filho adotivo. López acabou radicando-se na Colômbia e foi rememorado em especial por duas vezes em 2020: em fevereiro, quando fez 78 anos, Maradona fez questão de homenagear no Instagram o antigo mestre: “um dos melhores técnicos que tive em minha carreira, (…) um cara vencedor, como pessoa e como jogador, (…) obrigado por tudo o que aprendi a teu lado”. Em agosto, foi pelo susto de quase falecer após um infarto. No último mês, garantiu à El Gráfico que já estava bem, “mas ponham que eu não tenho emprego, hehe”.

De terno e gravata comemorando a Supercopa 1995 nos vestiários do Maracanã. À direita, na volta a Avellaneda com o troféu – é o homem à direita na fila superior

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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