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Há 75 anos, o jovem Papa acompanhava o San Lorenzo campeão argentino

Colombo, Vanzini, Zubieta, Blazina, Grecco e Basso (ex-Botafogo); Imbelloni, Farro, Pontoni (ex-Portuguesa), Martino (ex-São Paulo) e Silva

Versão revista e atualizada de matéria publicada originalmente nos 70 anos, em 2016

“Ao ler suas palavras, estão vindo à minha memória belas lembranças, começando desde a minha infância. Seguia, aos dez anos, a gloriosa campanha de 1946. Aquele gol de Pontoni!”. Isso está registrado em carta de 20 de março de 2013, com o selo do Vaticano, ao presidente do San Lorenzo. Era um documento formal do Papa Francisco apenas uma semana depois do conclave. O Sumo Pontífice assegura que viu todos os jogos que o time do coração fez em casa naquele ano, em que os azulgranas desmistificaram a endeusada La Máquina e tiveram o melhor ataque da década: El Terceto de Oro, a repercutir também na Europa. A conquista, a única entre 1936 e 1959, fez ontem 75 anos.

Os anos 40 tiveram talvez a geração mais dourada do futebol argentino. Ela teve o azar de não disputar mundiais, mas sobrou nas Copas América, com quatro títulos em cinco participações, ultrapassando o Uruguai em taças. Três (1945, 1946 e 1947) foram seguidos, ainda um recorde único da Argentina no torneio. E embora tenham vindo em anos seguidos, apenas cinco jogadores estiveram presentes em todo o ciclo. E só um foi titular absoluto, o riverplatense Félix Loustau. Ele pertencia ao famoso quinteto ofensivo de La Máquina, o famoso esquadrão do River naqueles tempos: Juan Carlos Muñoz (presente só na Copa América de 1945), José Manuel Moreno (só na de 1947), Adolfo Pedernera (só na de 1946), Ángel Labruna (idem) e Loustau.

Uma ironia é que esses cinco só jogaram oficialmente (desconsiderando-se amistosos) dezoito vezes juntos, ainda que só perdessem duas. Mas a ironia maior é na maior parte do tempo em que contou com os cinco, o River não terminou campeão. O time ganhou em 1941 e o apelido surgiu em 1942, em novo título. Loustau estreou ali, sendo a última peça a se juntar. Mas os cinco só jogaram juntos em 1942 na estreia dele; a taça veio com Aristóbulo Deambrossi, outrora dono da vaga de Loustau, substituindo o lesionado Muñoz na outra ponta. Em 1943 e em 1944, ano em que os cinco estiveram juntos mais vezes (ainda assim, em só seis jogos em cada um), a taça terminou com o Boca.

Ainda em 1944, Moreno, descrito pelos mais antigos como mais habilidoso que Maradona, transferiu-se ao futebol mexicano. E sem ele, o River voltou a ser campeão em 1945. Em 1946, o craque voltou à Argentina para comoção geral, na 13ª rodada: um 5-1, com três gols dele, sobre o Atlanta no estádio do Ferro Carril Oeste, cujos alambrados desabaram tamanha a multidão. Aqueles cinco atuariam juntos mais cinco vezes. Mas nem La Máquina (75 gols em 1941, 79 em 1942, 66 em 1945) nem o bicampeão Boca (79 gols em 1943, 82 em 1944) marcaram tantas vezes na década quanto os 90 do San Lorenzo de 1946. No máximo, igualaram: em 1947, o River voltou a ser campeão, anotando os mesmos 90 gols no embalo da revelação Alfredo Di Stéfano. Que substituía Pedernera, vendido ao Atlanta.

Martino à esquerda e com Pontoni na seleção: campeões da Copa América também naquele 1946, passariam por São Paulo e Portuguesa

Também em 1947, Muñoz passara à reserva e uma hepatite forte tirou Labruna da maioria das partidas. Ou seja, em 1947 já não havia La Máquina… contra quem aquele título de 1946 foi um desafogo. Afinal, o San Lorenzo havia sido o bivice dela em 1941, quatro pontos atrás e em 1942, seis pontos atrás. Em 1945, os azulgranas terminaram em 4º, mas seu ataque somara um gol a mais que o dos campeões. 1945 foi, afinal, o ano em que o Terceto de Oro se reuniu. O superdotado meia-esquerda Rinaldo Martino, um musculoso ambidestro que em sete anos de San Lorenzo virou o segundo maior artilheiro do clube e a quem dedicamos este recente especial, já estava lá desde 1942.

Em janeiro de 1945, Martino foi campeão da Copa América marcando o golaço do título sobre o Uruguai. Naquela seleção, se aproximou dos futuros colegas: um deles, o meia-direita Armando Farro, fora convocado mesmo depois de ter sido rebaixado com o Banfield em 1944; era um Garrincha da posição, com uma perna torta que lhe rendia grande habilidade dribladora. Foi um dos três presentes em toda a campanha campeã do San Lorenzo. O outro colega era René Pontoni, centroavante do Newell’s – escrevemos sobre ele primeiramente este texto, kibado pelo Milton Neves, e o aprofundamos em 2020 ao recordar o centenário de quem na seleção deixava no banco até Di Stéfano no título sul-americano de 1947. O jogador lembrado pelo Papa foi um dos cinco presentes em todo aquele tri seguido da seleção, pela qual acumulou impressionantes 17 gols em 17 jogos antes de no final da carreira passar pela Portuguesa.

Martino, que também vinha do futebol rosarino, convenceu Pontoni a fechar com o San Lorenzo e Farro também veio. Após o bom desempenho no clube em 1945, Martino e Pontoni voltariam juntos à seleção na Copa América travada em janeiro de 1946. Foram novamente campeões, prenúncio da campanha clubística. Pontoni foi o artilheiro do elenco sanlorencista, com vinte gols. Aquele a qual o Papa referiu-se talvez tenha sido o quarto em um 5-0 no Racing, no qual dominou a bola com a ponta da chuteira entre dois oponentes, a passou ao peito, voltou a domina-la com o pé, ameaçou girar para um lado e girou pelo outro, passando entre os dois e finalizando na saída do goleiro.

Mas a qualidade daquele San Lorenzo não se resumia ao Terceto. Afinal, se a equipe só perdeu quatro vezes em trinta jogos e, o mais impressionante, nenhum deles por mais de um gol de diferença – e em tempos superofensivos do futebol – é porque havia excelência na defesa. Nela havia o confiante goleiro ítalo-iugoslavo Mierko Blazina (nascera em Trieste), desde os 17 anos de idade na Argentina e no San Lorenzo para fugir das bombas da guerra. Jogava adiantado, algo incomum na época. À sua frente, o elegante zagueiro Oscar Basso, presente em todos os jogos da campanha. Ele seria duas vezes eleito para o time dos sonhos do Botafogo mesmo acumulando só vinte jogos pelos alvinegros, onde estaria em 1951. A seu lado, José Vanzini, o lado áspero de uma das melhores duplas de zaga do clube. Vanzini, curiosamente, também era o repórter que cobria o time para a El Gráfico.

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Farro, que fazia o “Terceto de Oro” com Pontoni e Martino, foi o único atacante presente em todos os jogos da campanha. À direita, marca sobre o Atlanta

Na lateral direita, outro refugiado estrangeiro: Ángel Zubieta, que deixara em 1939 o Athletic Bilbao e o franquismo (não foi o único e por isso o San Lorenzo virou “o clube dos espanhóis”: entenda) para passar mais de dez anos no time do bairro de Boedo, virando na época quem mais vezes o defendeu. Até hoje o mais jovem estreante da seleção espanhola, Zubieta foi o capitão na conquista e outro presente em todos os jogos. E não era só quantidade: era bom marcador e sabia se projetar no ataque, anotando 29 gols em 352 partidas, ótimos para um jogador da retaguarda e ainda mais fantásticos para a época – e cinco deles foram no clássico com o Huracán. Na outra lateral, Bartolomé Colombo, raro tricampeão da Copa América, em 1937, 1941 e 1945 e apelidado de La Gota de Água por sua regularidade. Na volância, o correto Salvador Grecco, outro jogador de seleção.

As demais posições não tiveram um dono fixo, o que não significava falta de qualidade. A ponta-direita começou com Francisco Antuña, dono de 15 gols em 40 jogos pelo clube. No decorrer, passou a ser de Francisco de la Mata, que fez 27 em 104: tinha bons números, mas ser irmão de Vicente de la Mata (craque da época de Independiente e seleção) pesava demais nas expectativas sobre ele. No fim, foi do habilidoso mas fominha Mario Imbelloni, que passaria pelo Real Madrid nos anos 50. De la Mata também jogou algumas vezes na ponta-esquerda, variando com o bom reforço Oscar Silva, que chegou a marcar três vezes em jogo contra o Rosario Central. Outro atacante reserva, Roberto Aballay jogou só uma vez, mas marcou duas (4-2 no Ferro Carril Oeste) e na sequência da carreira passaria ao Genoa.

Seria o último título acompanhado em vida por Lorenzo Massa, padre responsável pela fundação do clube, em 1908, sobre quem falamos na ocasião do conclave de 2013 (veja). Mas não foi fácil. Boca e River, que haviam monopolizado os títulos desde 1940, estiveram firmemente no páreo. No Boca, destacava-se especialmente Mario Boyé, outro dos cinco que estiveram em todo o tri continental da seleção. Ele ali viraria o primeiro ponta a conseguir a artilharia do campeonato, com 24 gols. O recado auriazul foi claro no início do torneio: após estreia de 2-2 com o Atlanta, vitórias por 4-0 sobre Ferro, 5-2 no Chacarita, 3-0 no Tigre e 4-1 no Racing. O River, que em 1945 passara de La Máquina para Los Caballeros de la Angustia por tocar, tocar, tocar e tocar a bola e vencer por poucos gols, continuava não prolífico mas era mais regular e terminou o primeiro turno na liderança, um ponto à frente do Boca.

E o San Lorenzo? Estreou com 3-1 fora de casa no Tigre e na terceira rodada goleou, também fora, por 4-1 o Rosario Central. Mas três resultados seguidos ruins empacaram os cuervos: empate em casa em 1-1 com o River, derrota de 1-0 para o Lanús e derrota em casa por 3-2 no clássico com o Huracán, entre a 4ª e a 6ª rodadas. Esse jogo foi histórico: por muito tempo, o gol mais rápido do futebol argentino foi marcado ali. Se realmente presente nas arquibancadas, o jovem Papa Francisco testemunhou ninguém menos que o jovem Alfredo Di Stéfano anotar a obra. Emprestado pelo River, Di Stéfano também marcou outro gol na única derrota dos campeões em casa.

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Blazina pega pênalti na vitória por 2-1 sobre o Independiente. Ele e o elegante zagueiro Basso (ex-Botafogo) não perderam por mais de dois gols de diferença na campanha

Ainda no primeiro turno, o San Lorenzo também perdeu por 2-0 para o Boca. Mas depois só perderia uma outra vez. No jogo seguinte, aplicou um 5-0 fora de casa no Vélez (dois de Pontoni, dois de Farro e um de De la Mata). O time também venceria os quatro próximos jogos, incluindo um 2-1 fora de casa sobre o Independiente e o 7-0 sobre o Rosario Central com aqueles três gols de Silva, com o Terceto completando (dois de Pontoni, um de Farro e um de Martino). Depois, segurou o 1-1 com o River no Monumental. Nesse jogo, ultrapassou-o junto com o Boca, que vinha firme no segundo turno: 1-0 no Atlanta, 6-0 no Ferro, 2-1 no Chacarita e 5-3 no Tigre.

A liderança compartilhada com o Boca só durou ao fim daquela rodada. Na seguinte, os auriazuis foram surrados por 4-1 pelo Racing enquanto o San Lorenzo aplicava um 5-1 no Lanús, abrindo então dois pontos (valor da vitória na época) de vantagem. O River, mesmo com o regresso de Moreno, arrefeceu e o Boca, que venceu-o no Superclásico, ficou como concorrente mais sério. Só que o Terceto de Oro estava impossível. Após os 5-1, arrancou um 2-0 fora de casa sobre o rival Huracán, um 6-1 no Atlanta e depois venceu mesmo tomando três gols fora de casa: 4-3 no Chacarita. Daí, o Papa testemunhou o 5-0 de “aquele gol do Pontoni” no Racing. O jogo seguinte precisou de dois dias: o 3-2 sobre o Newell’s foi arrancado fora de casa aos 44 do segundo tempo, na sequência de um gol adversário anulado.

O público invadiu o campo para agredir o árbitro. Os azulgranas então aplicaram um 5-1 no Platense para, no dia seguinte, no estádio do Ferro Carril Oeste, concluir o um minuto e dez segundos de jogo que haviam faltado contra o Newell’s (!). O placar de 3-2 permaneceu, mas aí veio a derrota de virada por 2-1 para o Estudiantes em La Plata. O jogo seguinte seria contra o Boca, ainda dois pontos atrás: havia campeonato. E o Gasómetro recebeu uma partida emocionante. Gregorio Pin abriu o marcador para os visitantes aos 18 minutos, mas aos 20 Martino empatou, virando aos 38. No fim do segundo tempo, o Boca foi para o tudo ou nada e El Atómico Boyé conseguiu empatar aos 44.

O artilheiro Boyé teve ainda tempo para quase virar, mas Blazina conseguiu defesa descrita como impossível. Restavam dois jogos e o San Lorenzo não deu mais margens: 4-1 no Vélez e 3-1 fora de casa sobre o Ferro. Para comemorar, o time, ainda naquele dezembro de 1946, iniciou excursão pela Europa. E conseguiu esses resultados: 4-1 no Atlético de Madrid, 1-4 contra o Real Madrid (a única derrota da viagem), 7-5 na própria seleção espanhola, 3-3 com o Athletic Bilbao (para a mãe de Zubieta enfim vê-lo jogar), 6-1 na revanche com a seleção espanhola escalada com o ídolo sanlorencista Isidro Lángara, 1-1 com o Valencia, 0-0 com o La Coruña, 9-4 sobre o Porto, 10-4 sobre a seleção portuguesa… e 5-5 com o Sevilla (campeão espanhol de 1946-47), que até jogou reforçado com alguns campeões de 75 anos atrás.

Encantado, o Barcelona quis contratar o artilheiro Pontoni. Eram outros tempos: “os sócios me matam quando voltemos a Buenos Aires”, negou o presidente azulgrana. Talvez também quisesse-o matar um garotinho que viraria Sua Santidade…

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Zubieta, o capitão, o longevo, o recordista de jogos, esteve em toda a campanha. Pontoni nos 2-0 no clássico contra o Huracán e lembrado na carta do Papa (no terceiro parágrafo)

https://twitter.com/SanLorenzo/status/1468647148942147591

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

3 thoughts on “Há 75 anos, o jovem Papa acompanhava o San Lorenzo campeão argentino

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