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Há 50 anos, o Flamengo enfrentava a Argentina. E empatava, fora de casa

Por Emmanuel Do Valle, do Flamengo Alternativo. Com colaboração de Caio Brandão

Há exatos 50 anos, em 1º de novembro de 1966, um confronto curioso e que vale a pena ser relembrado acontecia em Avellaneda entre a seleção da Argentina e o Flamengo. Foi um amistoso que marcou o início da segunda passagem do técnico Jim Lopes pelo comando da Albiceleste, vinda do Mundial da Inglaterra e agora dando o pontapé inicial para a preparação visando ao Campeonato Sul-Americano de 1967, no Uruguai. O jogo, bastante equilibrado, terminou empatado em 1-1. O gol flamenguista, por sinal, foi de um brasileiro que em breve faria muito sucesso na própria Avellaneda.

Ao longo de sua história, a seleção platina enfrentou clubes brasileiros em seu território em seis ocasiões. A primeira aconteceu em 26 de fevereiro de 1929, com goleada sobre o America carioca por 6-1, também em Avellaneda. Pouco menos de um mês depois, o confronto tornou a acontecer, agora em Buenos Aires, com nova vitória albiceleste, por 2-0. Em 25 de abril de 1962, o adversário foi o Internacional em Buenos Aires, vencido pelos argentinos por 4-2. E em 30 de março de 1966, o Botafogo visitou a capital portenha, derrotado por 3-1. Após este empate em 1-1 com o Flamengo em novembro de 1966, aconteceu apenas mais um duelo entre a seleção argentina e clubes brasileiros. Outra igualdade em Avellaneda pelo mesmo placar, diante do Palmeiras, em 15 de abril de 1973.

O Flamengo não jogava no país vizinho desde 28 de janeiro de 1961, quando ainda contava com Dida, Gerson e o meia Moacyr (que dentro de algumas semanas se transferiria para o River Plate) na equipe e goleou o Talleres em Córdoba por 5-0. Por sua vez, a seleção argentina, apesar da saída problemática da Copa do Mundo da Inglaterra, naquele ano de 1966, havia feito bom papel no torneio. Os hermanos haviam caído na primeira fase em 1958 e em 1962. Dessa vez, venceram a Espanha e a Suíça na primeira fase, além de empatar sem gols com a Alemanha Ocidental, resultado que os deixou em segundo no Grupo B, atrás dos teutônicos apenas no saldo de gols.

Na fase seguinte, a de quartas-de-final, viria a eliminação na derrota por 1 -0 para a Inglaterra em Wembley, em jogo de arbitragem polêmica, o da famosa expulsão do capitão Antonio Rattín. Ainda assim, os hermanos terminaram em quinto. Ciente de que a campanha havia sido boa e de que valia a pena manter a base, formada em grande parte por jogadores de até 25 anos como Rafael Albrecht, Alberto González, Juan Carlos Sarnari, Roberto Perfumo e Oscar Más, a seleção argentina apresentou em seu primeiro teste após o Mundial inglês uma equipe bem pouco modificada em relação à da Copa. Nove dos 11 titulares que figuravam na escalação inicial contra o Flamengo haviam feito parte do elenco mundialista e oito haviam sido titulares.

O treinador, no entanto, era outro. Curiosamente, o sucessor de Juan Carlos Lorenzo era um conhecedor do futebol brasileiro, em especial o paulista. Tratava-se de Alejandro Galán, conhecido pela alcunha de Jim Lopes (grafado com S, mesmo na Argentina). Nascido em Buenos Aires, tinha o boxe, não o futebol, como esporte de preferência. Foram os ringues que inicialmente o trouxeram ao Brasil. No entanto, com a proibição das lutas durante o governo Vargas, formou-se em Educação Física e tornou-se técnico de futebol. Obteve grande sucesso em terras paulistas, onde iniciou a nova carreira: levou o Palmeiras e o São Paulo ao título estadual em 1950 e 1953, respectivamente, além de se sagrar campeão do Torneio Rio-São Paulo em 1952 pela Portuguesa.

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Murilo, Ditão, Jaime, Franz, Carlinhos e Paulo Henrique; Carlos Alberto, Nelsinho, Almir Pernambuquinho, Silva e Osvaldo

Seus feitos chamaram a atenção no país natal, para onde retornaria em 1958, contratado pelo Independiente. Depois de rápidas passagens pelo River Plate e pelo Corinthians, Lopes assumiria também por breve período o comando da Albiceleste em novembro de 1962, para as duas partidas da primeira edição da Copa Carlos Dittborn contra o Chile. Um empate em 1-1 em Santiago e uma vitória pelo placar mínimo no Monumental valeriam a taça aos argentinos. Quatro anos depois, lá estava o velho Jim outra vez no banco da seleção. O objetivo agora era preparar a equipe que disputaria o Campeonato Sul-Americano (atual Copa América) no Uruguai em janeiro de 1967.

Ironicamente, a contraparte de Lopes naquele amistoso também era argentina: Armando Renganeschi, treinador do Flamengo, também nascera em Buenos Aires. Zagueiro do Independiente, do Fluminense e do São Paulo nos anos 30 e 40, tornou-se técnico no futebol paulista, a exemplo de Jim Lopes. “Renga” chegara à Gávea em agosto de 1965 substituindo Flávio Costa, de saída para o Porto. No time do Flamengo, implantou um sistema de marcação bem adiantado, no campo do adversário, com as linhas compactadas e aproveitando o fôlego inesgotável e a grande capacidade de apoio dos laterais Murilo e Paulo Henrique.

Enquanto isso, na frente, o setor ofensivo girava em deslocamentos e trocas de posição constantes. Com uma campanha sólida, conquistou em dezembro o Campeonato Carioca daquele ano, o que valia a distinção especial de “campeão do IV Centenário da cidade do Rio de Janeiro”. Para 1966, o time havia mudado pouco. No gol, o paranaense Valdomiro passou a revezar com o niteroiense Franz. Murilo e Paulo Henrique seguiam nas laterais, assim como o seguro Jaime Valente – que conciliava treinos e jogos com a faculdade de Jornalismo e mais tarde se tornaria treinador – na quarta-zaga. No centro da defesa, o vigoroso Ditão havia perdido espaço para Itamar, de estilo semelhante.

No meio, jogava uma das mais tradicionais duplas do futebol carioca do período: Carlinhos, o Violino, e Nelsinho (Rosa Martins). Enquanto o primeiro exibia um jogo refinado, limpo e de muita classe, o segundo era incansável tanto na marcação quanto no apoio, o verdadeiro motor do meio-campo. Ambos também se tornariam técnicos de sucesso, sendo inclusive campeões brasileiros. Na frente, a ponta-direita – posição pela qual vários jogadores passaram em 1965, mas nenhum se firmou – era ocupada agora pelo pernambucano Gildo, emprestado pelo Palmeiras.

Pelo outro lado, o jovem Rodrigues, titular e revelação do ano anterior, agora havia perdido espaço após se desentender com dirigentes. A posição era novamente de Osvaldo (conhecido como “Ponte Aérea”, já que vinha toda semana do Rio para São Paulo após os jogos). E no centro do ataque estavam os dois principais jogadores daquela equipe: Almir Pernambuquinho (ex-Boca), que jogava mais adiantado, infernizando os zagueiros e abrindo espaços, e Silva Batuta (futuro racinguista), que vestia a 10 e recuava para criar, mas também aparecia na frente para finalizar.

Na ocasião do amistoso em Avellaneda, o Flamengo vivia ótima fase: dois dias antes, havia confirmado a liderança invicta do Campeonato Carioca na última rodada do primeiro turno após bater o forte time do Bangu por 2 -1 de virada, em jogo dramático, que entrou para a história do Maracanã graças ao segundo gol, marcado por Almir caído, arrastando a cara na lama até a bola ultrapassar a linha, vencendo Ubirajara. A inacreditável sequência fotográfica do gol chegou a ser publicada na capa da revista France Football. O triunfo contra os banguenses (que, treinados pelo também argentino Alfredo González, acabariam campeões sobre o próprio Flamengo) trouxe, no entanto, grande desgaste e alguns desfalques para a equipe.

Com Silva expulso de campo logo após marcar o gol de empate e Murilo e Osvaldo, lesionados durante o jogo, tendo de fazer número em campo (já que não eram permitidas as substituições), o Fla terminou a partida extenuado. O Batuta teria escalação confirmada para o amistoso, mas os dois contundidos sequer viajariam. Em seus lugares entrariam o jovem Leon na lateral e Dirceu (outro emprestado pelo Palmeiras, a exemplo de Gildo) na ponta. A delegação rubro-negra embarcou às 11 da manhã da segunda-feira no aeroporto do Galeão em voo da Varig com destino a Buenos Aires.

Para poupar os jogadores mais cansados, Renganeschi prometera realizar algumas substituições durante o amistoso – entre elas, a entrada de um centroavante bastante promissor da base rubro-negra chamado César Lemos (ele mesmo, o futuro “Maluco” da Academia palmeirense). Na seleção argentina, boa parte dos jogadores – à exceção dos boquenses – também voltaria a campo 48 horas depois de defender seus respectivos clubes na 34ª rodada do Campeonato Nacional, disputado ao longo de toda a temporada.

Na noite de 1º de novembro, em temperatura agradável e para cerca de 30 mil presentes, proporcionando uma renda de quatro milhões de pesos (ou Cr$ 40 milhões, na moeda brasileira da época), as duas equipes entraram em campo no estádio do Independiente após o empate sem gols na partida preliminar entre a seleção B da Argentina e o Nacional uruguaio. Luis Pestarino, 38 anos e recém-promovido ao quadro internacional da Fifa, seria o árbitro. A Albiceleste alinharia Roma, Oscar Martín, o futuro cruzeirense Perfumo, Albrecht e Marzolini; Rattín, Sarnari e Alberto González; Bernao, Artime (que em breve reforçaria o Palmerias: relembre aqui o “Gerd Müller argentino”) e Más.

Já o Rubro-Negro iria a campo com Valdomiro, Leon, Itamar, Jaime e Paulo Henrique; Carlinhos e Nelsinho; Gildo, Almir, Silva e Dirceu. O jogo começou com pressão intensa dos argentinos, enquanto o Flamengo se segurava, buscando esfriar o ímpeto platino. Logo aos dez minutos, Artime acertou o travessão de Valdomiro. Dois minutos depois, o goleiro entrava em ação para espalmar um chute forte de Rattín da entrada da área. Aos 19, o Fla respondia: Silva aproveitava falha de Albrecht e batia para o gol de Roma, mas a bola passaria raspando a trave.

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A foto é de outra partida: mas o gol é de Silva também, agora pela camisa alviceleste (no caso, do Racing) contra o Flamengo, no Maracanã

Outra intervenção crucial do arqueiro rubro-negro viria aos 27, quando Pinino Más chutou da entrada da área, Valdomiro rebateu, mas se recuperou a tempo de salvar a finalização de Bernao. Do outro lado, era Nelsinho quem testava Roma com um chute de longe. Embora já não pressionasse tão intensamente quanto nos primeiros 20 minutos, a Argentina acabaria chegando ao gol aos 38. O lance começou com uma cabeçada de Más que Valdomiro espalmou para escanteio. Na cobrança do próprio Más, González bateu para o gol, o zagueiro Itamar tirou, mas Bernao, na pequena área, concluiu para o gol, com os jogadores rubro-negros reclamando de falta no lance. O Fla tentou reagir aos 40, quando Silva aproveitou cruzamento de Leon para cabecear em cima de Roma.

Envolvente, com passes curtos e rápidos e melhor preparo físico, a Argentina foi bem melhor no primeiro tempo. Mas na etapa final, o Flamengo deixaria a cautela da etapa inicial de lado e igualaria as ações. Com o avanço dos laterais e a marcação mais adiantada, era a vez de o time carioca pressionar. E o gol de empate saiu logo aos 18 minutos, também em escanteio. Gildo cobrou o córner, Almir saltou fazendo o corta-luz e Silva, mergulhando num peixinho espetacular, tocou para o fundo das redes. Ele em breve seria negociado com o Barcelona, onde só jogou amistosos. Em 1969, viveu fase fugaz mas extraordinária em um Racing ainda imponente, semifinalista argentino com o brasileiro sendo o artilheiro do campeonato: detalhamos aqui.

“Antes do jogo, o Almir, que já tinha jogado no Boca Juniors, me disse: ‘O negócio aqui é de quem tem mais disposição. Vamos fazer aquela jogada treinada. Aquela em que o ‘Caroço’ (o ponta-direita Carlos Alberto, que não jogou) bate o corner com força em cima de mim na primeira trave. Na hora eu saio da bola, levando a marcação e você entra livre. Mas tem que ser rápido’. Dito e feito. Explicamos a jogada pro Gildo, que ia jogar na ponta-direita no lugar do ‘Caroço’ e foi só esperar o momento. Na hora em que a bola veio, voei nela com convicção, de ‘peixinho’, e foi uma alegria. Um dos gols mais bonitos e importantes da minha carreira”, contou Silva, em sua biografia “Silva, o Batuta – O craque e o futebol de seu tempo”, de Marcelo Schwob.

Depois do empate, vieram as alterações: o Fla, que já tinha trocado Jaime por Luís Carlos, fez entrar Válter, Juarez e César nos lugares de Carlinhos, Nelsinho e Silva, respectivamente. Já o técnico Jim Lopes faria sua única mudança colocando Viberti no lugar de Rattín. Embora perdesse um pouco da intensidade, a partida continuou equilibrada, e o empate se manteve até o apito final de Pestarino. A repercussão da partida na imprensa argentina foi, em geral, positiva. O jornal La Nación elogiou a atuação das duas equipes e classificou a do Flamengo como “convincente”. O diário La Prensa também destacou o bom nível técnico e o equilíbrio mostrados na partida.

Mas a avaliação mais extensa foi publicada pelo La Razón. O jornal qualificou o time rubro-negro como bem armado e posicionado em campo, com destaques individuais, e lembrou o esgotamento físico causado pela partida com o Bangu dois dias antes e pela viagem logo em seguida. Mas o comentário mais curioso do La Razón foi a conclusão de que algumas equipes brasileiras precisavam de melhores public relations, pois o Flamengo tinha qualidades para poder atrair maior público ao estádio, “afinal”, arrematava o jornal, “verifica-se que nem só de Santos e Botafogo vive o futebol brasileiro”.

Clique aqui para relembrar os argentinos que passaram pelo Flamengo (nota de 2015).

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Lopes e Renganeschi, técnicos na partida, eram argentinos de larga vivência no Brasil. À direita, outro momento de Silva pelo Racing, onde é reverenciado até hoje

Da Redação

Perfil utilizado para colunistas convidados a escrever no site FutebolPortenho.com.br

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