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20 anos do mais folclórico Boca x River: o do “nucazo de Guerra”

Como ficar querido em um clube riquíssimo como o Boca defendendo-o só doze vezes e sem ganhar qualquer título? O uruguaio Hugo Romeo Guerra conseguiu isso há exatos vinte anos, ao marcar no último lance o gol da vitória em um Superclásico na Bombonera. Algo já especial por si só, mas majorado pelas circunstâncias: o gol foi de nuca! El Nucazo de Guerra.

Guerra já era conhecido na Argentina. Vinha do Huracán junto com Mauricio Pineda e havia passado cinco anos em uma legião de uruguaios do forte Gimnasia LP da época, como Guillermo Sanguinetti, recordista de jogos pelo clube, ou o célebre Pablo Bengoechea; outro deles havia até também virado folclore por causa de um clássico mesmo ficando pouco tempo: José Perdomo, autor do “gol do terremoto” sobre o Estudiantes. Já no Huracán, Guerra se destacara especialmente com um gol no clássico com o San Lorenzo e ao empatar no penúltimo minuto contra o próprio Boca.

Bem, o Boca chegava ao segundo semestre de 1996 após uma temporada de expectativas frustradas nas retas finais. O time havia se reforçado nada menos com Diego Maradona e Claudio Caniggia. No Apertura, conseguiu passar de líder invicto antes da antepenúltima rodada para sem chances de título ao fim da penúltima, perdendo ambas e sendo ultrapassado pelo Vélez (e pelo Racing e pelo Lanús, ficando em quarto). No Clausura, estava um ponto atrás do próprio líder Vélez faltando nove pontos em disputa, dos quais somou só um, terminando atrás também de Gimnasia, Lanús e Estudiantes. Saiba mais.

Decepcionado (perdera seis pênaltis seguidos no Clausura) e entregue de novo à cocaína, Maradona anunciou que tiraria 45 dias sabáticos que virariam quase um ano – mas esteve na Bombonera, nas tribunas. Caniggia, que fizera um ótimo Clausura a ponto de retornar à seleção apesar da cabeleira, escolhera não renovar o contrato por ter despertado interesse europeu, mas igualmente acabaria ficando uma temporada de molho: sua mãe se suicidara no início de setembro.

Guerra comemora. Destaque para a breve passagem da marca brasileira Topper no Boca (só naquele segundo semestre de 1996)

As novidades xeneizes seriam, além de Guerra e Pineda e da breve passagem da marca brasileira Topper (substituindo a Olan e logo sendo trocada pela Nike), a volta do ídolo Diego Latorre e também Roberto Abbondanzieri, Sandro Guzmán, Cristian Dollberg, Néstor Lorenzo, Diego Cagna, Roberto Pompei, Silvio Carrario, Sebastián Rambert, além de três ex-jogadores rivais: o zagueiro Fernando Cáceres e o meia Julio César Toresani eram ambos ex-River, de onde vinha diretamente Gabriel Cedrés.

Cedrés merece parágrafos à parte. Também uruguaio, como Guerra, foi a penúltima transferência direta entre Boca e River – a última foi a de Rambert, que viraria millonario em 1997. Cedrés havia sido campeão da Libertadores pelo Millo havia três meses, em 25 de junho. Semanas depois, em 14 de julho, ele esteve em campo ainda pelo River no Superclásico anterior, também bastante recordado, pelo Boca ter carimbado a faixa continental do rival ao sapecar um 4-1 marcado pelos três gols de Caniggia (outro vira-casaca, aliás) e pelo beijo dele em Maradona (relembre). Cedrés é quem jogou dois Superclásicos seguidos como vira-casaca em menos tempo: dois meses e meio.

Alfredo Elli (River, depois Boca) e Francisco Taggino (vice-versa) foram os primeiros, jogando em 20 de junho de 1915 e em 10 de dezembro de 1916 – Elli viria a ser o primeiro campeão por ambos e Taggino, o primeiro que a seleção argentina aproveitou dos dois (e também o primeiro jogador do Boca nela). Naqueles anos, o inchado campeonato argentino foi travado em turno único. Foram necessários quase setenta anos para algo assim se repetir: foi com o volante Julio Olarticoechea, envolvido em um troca-troca direto no início de 1985 nos quais ele e Carlos Tapia passaram ao Boca, que cedeu Oscar Ruggeri e Ricardo Gareca.

El Vasco defendera o River em 11 de novembro de 1984 e foi xeneize em 27 de outubro de 1985. As transferências diretas não foram raras nos dez anos seguintes. O boliviano Milton Melgar (Boca em 30 de abril de 1988, River em 18 de setembro de 1988), o uruguaio Rubén da Silva (River em 11 de abril de 1993, Boca em 3 de julho de 1993 pela Copa Centenário), Fernando Gamboa (River em 30 de abril de 1994, Boca pela Supercopa em 6 de outubro de 1994) e Rambert (Boca em 23 de março de 1997, River em 25 de outubro de 1997) foram os demais a jogarem Superclásicos seguidos virando a casaca.

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Cedrés: Superclásicos por River e por Boca no espaço de dois meses. À direita, comemora seu gol há vinte anos, abraçado por Guerra

Cedrés se explicou em 2013: “não tive opção. Ninguém se preocupou em me reter. Tinha tentação, porque o Boca levava muitos anos sem ganhar e ainda por cima estava [o técnico Carlos] Bilardo, que havia me pedido no Argentinos Jrs [outro ex-clube de Cedrés]. Depois, todos sabiam que eu era torcedor de um clube, o Peñarol, e ao não sentir o apoio do River, fui. Foi uma decisão que me custou tomar, mas a fiz consciente, buscando a glória. Errei por um ano, porque (o Boca) saiu campeão no seguinte. De qualquer forma, sempre estarei grato ao River”.

“Aquele momento era o inverso do que é hoje: o River estava melhor institucionalmente e o Boca não tinha nada. [Mauricio] Macri fez muito bem ao Boca: o levantou com sua visão de empresário. Depois, você se atira para varrer no Boca e a arquibancada vem abaixo; no River ganhas de 3-0 no primeiro tempo e se no segundo não metes gols, há chiados”. Cedrés quase voltou a vestir a camisa do River em 1999, no jogo de despedida do compatriota Enzo Francescoli e declarou: “algo gerei nessa gente. Ninguém gosta que o vaiem, mas a indiferença é pior. Me lembro que Enzo quis me fazer jogar um momento com a camisa do River e lhe disse que estava louco. Se punha de novo a do River, acho que queimavam o estádio”.

E o River? O título da Libertadores provocara um desmonte muito além de Cedrés. Saíram os ídolos Hernán Crespo e Matías Almeyda, o querido Gabriel Amato e os menos badalados Walter Silvani, Juan Gómez, Mariano Juan, Pablo Lavallén e Ernesto Corti. Em compensação, os reforços incluíam a volta do ídolo Sergio Berti e as incorporações de ninguém menos que Eduardo Berizzo, Julio Cruz, Roberto Monserrat e, principalmente, o matador chileno Marcelo Salas.

Após um começo morno, empatando em 0-0 com o Gimnasia LP no Monumental, os campeões da América emendaram quatro triunfos e há vinte anos dividiam a ponta com o Independiente do técnico César Menotti. Já os auriazuis estavam irregulares: começaram ganhando por 3-2 do Estudiantes em La Plata, mas perderam duas seguidas (para Colón, em casa, e Lanús), empataram em casa com o San Lorenzo e venceram o novato Huracán Corrientes antes do Superclásico.

O Boca, porém, se transformava diante do rival. Nos anos 90, conseguiu ficar invicto em pleno Monumental simplesmente entre 1991 e 1999 (veja). O jejum só não foi total porque o River ganhou duas vezes na Bombonera nesse período, ambas em 1994. Mas vivia a sina de ganhar campeonatos, mas não o Superclásico. Tabu alimentado logo aos cinco minutos, com golaço de Pompei: matou no peito bola mal afastada, deixou pinga-la e de fora da área encobriu Germán Burgos. Mas, aos 21, Salas recebeu quase na pequena área cruzamento rasteiro de Berti e fuzilou Carlos Navarro Montoya para empatar.

Aos 15 minutos do segundo tempo, Cedrés tentou cruzar e a bola resvalou no braço do paraguaio Celso Ayala na grande área. Pênalti convertido pelo próprio Cedrés, no meio do gol. “Em um mês, já estava jogando um clássico e até marquei. Com isso, ganhei o povo do Boca, mas no do River gerei ódio. Recebi ameaças, xingamentos por telefone, mas não agressões físicas”, relembrou ele, que marcaria também no Superclásico seguinte (o eletrizante 3-3 de 1997 no qual o Boca chegou a estar vencendo por 3-0 em pleno Monumental). Dez minutos depois, Juan Pablo Sorín cabeceou com sucesso bola cruzada por Hernán Díaz e igualou novamente.

O empate circunstancial, pelo desenrolar da partida, parecia o mais justo. Alguns torcedores já iam embora, dentre eles outra novidade boquense para 1996: Juan Román Riquelme, recém-adquirido dos juvenis do Argentinos Jrs e que teria entrado em campo pela primeira vez pelo Boca naquele dia na partida prévia, feita pelos quadros reservas, mas a habilitação perante a AFA não se concretizara a tempo. Foi quando, nos acréscimos, Pineda cobrou uma falta de longa distância. O resto é folclore: Guerra tentou um cabeceio para trás mas usou involuntariamente a nuca mesmo. Funcionou.

Ainda houve tempo para o River (que, cumprindo a escrita, terminaria campeão; sem Caniggia e Maradona, o Boca ficaria só em décimo) quase empatar. Francescoli recebeu livre na grande área, mas isolou na conclusão. Em seguida soou o apito final de Daniel Giménez. Nem Enzo nem a histórica estatística de Cedrés ficaram como os personagens uruguaios da noite. E sim Guerra, lembrado em propaganda veiculada em 2013 na qual torcedores apreensivos pedem um gol de qualquer jeito, seja por ombro, cintura ou… nuca, claro.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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