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Tarasconi, maior artilheiro sul-americano em uma única Olimpíada

Os primeiros Jogos Olímpicos sediados na América do Sul se aproximam do fim. Amanhã se encerrarão as disputas de futebol. É válido relembrar qual foi então o jogador sul-americano mais efetivo em uma única edição. Trata-se de Domingo Alberto Tarasconi, glória do Boca eternizado até em tango de Carlos Gardel e nas estatísticas como único que, como Maradona, foi cinco vezes artilheiro do campeonato argentino. Tarasca acumulou dez gols na última edição em que as Olimpíadas eram o principal evento do futebol, a de 1928. Foi, sem dúvida, a grande ausência dos hermanos na primeira Copa do Mundo. E um dos últimos ícones vivos do rico amadorismo argentino – sua morte, já nos anos 90, completou recentemente 25 anos.

Nascido no bairro de Boedo em 20 de dezembro de 1903, Tarasconi foi formado em outro clube auriazul, o Atlanta, onde chegou aos 13 anos e no qual estreou no time adulto aos 17, em 1921. Já no ano seguinte chegava ao Boca, que vivia uma crise institucional mas ainda assim terminou em terceiro lugar. O primeiro gol só viria na quarta partida, dois em um 3-1 no El Porvenir. Mas dali emendou outros seis gols nas quatro partidas seguintes. Terminou artilheiro do torneio, com onze gols. Embora preferisse jogar na ponta-direita, sabia também jogar pelo meio, ainda que não fosse exatamente de sutilezas, e como centroavante – um de seus apelidos foi El Dinamitero.

Ainda em 1922, estreou pela seleção argentina. Seu primeiro gol por ela veio em amistoso não-oficial contra a equipe teuto-tchecoslovaca do Teplitzer, de visita pelo Rio da Prata: os europeus venceram por 6-3 em 3 de setembro, mas os hermanos tiveram a forra de um 3-1, com outro gol de Tarasconi, no dia 7. Em paralelo, o Boca começava, a partir de 1923, a realmente galopar com frequência nas taças nacionais: o título ali veio em tira-teimas com o Huracán, com quem os xeneizes haviam empatado em pontos. No primeiro, um 3-0 aos boquenses com gol de Tarasca. O Huracán venceu o segundo por 2-0. A terceira final foi 0-0, mas o saldo mais favorável ao Boca não foi critério de desempate. Em uma quarta final, apitada por árbitros uruguaios tamanha a tensão, deu Boca 2-0.

Tarasconi havia marcado 40 dos 92 gols do time campeão, terminando como artilheiro de um torneio cujas finais foram jogadas já em 1924. A federação era ainda mais desorganizada que hoje: o campeonato de 1924 entrou em andamento antes das finais de 1923. O que não mudou foi o destinatário do troféu: o torneio foi encerrado antes da disputa das últimas rodadas pois o Boca logo tornou-se inalcançável. Foram dezoito vitórias em dezenove jogos. E dezesseis gols de Tarasconi, novamente o artilheiro do campeonato (quatro deles, em um 6-1 no Nueva Chicago). Pela seleção, marcou em um 2-1 no Uruguai no primeiro clássico após o rival ter sido campeão olímpico.

Dois registros no Boca e outro pelo Argentinos Jrs

Em 1925, o Boca foi campeão sem jogar. Isso porque o clube realizou excursão pela Europa, a primeira de um time argentino, saindo-se invicto contra Real Madrid e Bayern Munique. Tarasconi somou sete gols, três deles sobre o lendário goleiro Ricardo Zamora, do Espanyol. A turnê de sucesso fez a federação dar ao clube o troféu de “campeão honorário” de 1925.  Detalhamos aquela excursão histórica neste outro Especial. Naquele mesmo ano, o atacante venceu a Copa América com a seleção. O desempenho o fez ser sondado por clubes ingleses, já profissionais enquanto o futebol argentino ainda prezava por uma aparência amadora: oficialmente, a renda de Tarasconi provinha de expediente no ministério de obras públicas.

“Não fui, porque tinha três irmãs mulheres e outro varão, mas eu era o garoto mimado de minha mãe e não quis deixa-la só”, justificou naqueles outros tempos. De volta ao Argentinão, mais um título. No torneio de 1926, o Boca venceu quinze de dezessete partidas em sua liga, onde não tinha desafiantes sérios – haviam duas ligas e elas se unificaram em 1927. E o Boca por muito pouco não ratificou a supremacia gritante que angariava: foi vice por um único ponto a menos que o San Lorenzo.

Tarasconi foi mais uma vez o artilheiro, com 32 gols. Assim, garantiu vaga nas Olimpíadas de Amsterdã, que rendeu a primeira viagem da Albiceleste à Europa. Foram quatro gols nos 11-2 sobre os EUA, outros quatro nos 6-3 sobre a Bélgica e três nos 6-0 sobre o Egito. O desempenho, infelizmente, não se repetiu na final. Tarasca pode corroborar sua qualidade assim que voltou a Buenos Aires: em agosto, a seleção travou amistosos não-oficiais contra o Barcelona e não perdeu. No primeiro deles, o artilheiro olímpico fechou um 3-1. Os catalães até puderam derrotar o Boca por 2-1, cabendo a Tarasconi anotar o tento auriazul.

Mas o atacante ainda amargaria novo vice, dessa vez na liga argentina de 1928, finalizada apenas em meados de 1929 – novamente por um ponto, dessa vez para o Huracán. A alegria ficou para um Superclásico, anotando duas vezes em um 6-0 para justificar sua inclusão em tango (“Patadura”) daquele 1928 onde Carlos Gardel canta em “fazer como Tarasca, do meio-campo um gol”. Esse jogo ainda é a maior goleada de todos os Boca-River e o atacante relatou que em dado momento o capitão rival lhe pediu que não houvesse mais gols, clemência atendida também pelo árbitro, que encerrou tudo aos 38 minutos do segundo tempo. Foi um presente na antevéspera do natal de 1928.

Marcado pelo Bayern Munique na turnê europeia do Boca em 1925, de onde veio também o registro da foto esquerda – é o primeiro agachado

Contudo, seu último jogo pela seleção se daria ainda em 1929 – oficialmente, foi em um 2-0 amistoso com o Uruguai em 16 de junho. Integrou a seleção na vitoriosa Copa América, mas sem jogar. Depois, ainda participou de alguns amistosos não-oficiais em meio às visitas dos dois últimos campeões italianos, Torino e Bologna. Foi dele o único gol do duelo em 28 de julho com o Toro, surrado por 4-1 com três dele em 4 de agosto. A partida realmente derradeira foi o duelo contra o Bologna, em 15 de agosto, em vitória por 3-1. Até os anos 40, quando foi superado primeiro por Herminio Masantonio, era Tarasconi (presente ainda em vitória por 3-2 da seleção de Buenos Aires sobre o Chelsea, em 2 de junho) o maior artilheiro da Albiceleste.

Ele ficaria de fora da primeira Copa do Mundo por ter lesionado o joelho: “foi uma jogada casual. Eu estava de costas ao gol adversário quando girei para tomar posse da bola no momento em que o zagueiro me deu um chute na parte posterior do músculo. O golpe me deslocou o joelho e foi necessário me operar”. Eram tempos em que a recuperação era mais complicada e lenta e ele ficou mesmo sem jogar entre novembro de 1929 e abril de 1930 – sendo ausência sentida também nas finais do campeonato argentino de 1929, vencidas pelo Gimnasia, justamente campeão ali pela única vez até hoje na primeira divisão.

Tarasconi até conseguiu retomar a forma ainda em 1930, embora tarde demais para ir à Copa: após um amargo trivicecampeonato argentino seguido, o Boca enfim voltou a ser campeão, com o ídolo marcando 27 vezes. Um bicampeonato veio em 1931, no primeiro campeonato oficialmente profissional. Isso veio com um novo cisma, pois a federação seguia amadora e manteria um campeonato à parte até 1934. Na nova era, contribuiu pouco: fez só oito gols. Tarasconi realizou mais cinco jogos em 1932 (dois deles, válidos ainda pelo torneio de 1931) pelo Boca e se despediu. Naquela altura, era o maior artilheiro do clube, com 193 gols – hoje, é o quarto.

Em 1933, jogou o campeonato rosarino pelo Newell’s (que apenas em 1939 seria convidado, juntamente com o vizinho Rosario Central, a disputar a liga argentina). E em 1934, na última edição do campeonato argentino amador, defendeu o General San Martín. Para variar, foi artilheiro. Pela quinta vez. Apenas Diego Maradona também conseguiu cinco artilharias no campeonato argentino.

No Argentina 0-0 Portugal em Lisboa em 1928, primeiro jogo da Albiceleste fora da América do Sul

Antes de pendurar de vez as chuteiras, o atacante ainda voltou à liga profissional em passagem sem tanto brilho pelo Argentinos Jrs. Passou a dedicar-se a uma loja de imóveis. Viveu até os 87 anos, resmungando em 1982 que “antes todos queriam ganhar, agora ninguém quer perder”. Se foi feliz, em 3 de julho de 1991, três dias após o Boca, que não era campeão havia dez anos, vencer o Clausura de 1991.

Sobre o antigo artilheiro, encerramos com palavras do blog de Sergio Lodise, autoridade sobre o amadorismo argentino e um dos autores do livro do centenário boquense:

“Uma manhã, Sergio ia caminhando pela rua Pasteur com a intenção de abordar o metrô para ir até o Colégio Bartolomé Mitre, na rua Valentín Gómez (…) naquele frio amanhecer de 1989. Pensou que seria uma boa ideia ir passear pelo bairro de La Boca para buscar dados de jogadores de antes. Tomou o ônibus 24 com todas as ilusões nas costas. Em uns minutos, chegou à Praça Solís disposto a começar a busca. Não havia tomado café da manhã, por isso se dirigiu a um armazém para comprar espetinhos e um refrigerante. Aproveitou para perguntar ao armazeneiro se conhecia algum velho jogador do bairro.

-Diga-me, senhor, sabe se Tarasconi vive?
-Creio que sim, mas aqui no bairro não. Com certeza vive em Boedo, busque na lista telefônica que seguramente o encontrarás.

A resposta do homem não bastou (…). Mantinha intacta a esperança de topar em alguma ocasião com alguma das velhas glórias boquenses. Quando a primavera já se havia instalado em Buenos Aires, ocorreu fazer caso da recomendação daquele vizinho e buscar Tarasca em uma lista de telefones. Bingo! ‘Tarasconi, Domingo A., rua Baldomero F. Moreno 2561’, achou na busca. Sergio não tinha telefone em sua casa ainda, nessa época não existiam os celulares (…) e o funcionamento dos telefones públicos da Entel deixava muito a desejar. Então decidiu dirigir-se pessoalmente até essa direção.

Segundo agachado nas Olimpíadas de 1928: técnico Lago Millán, Médici, Bidoglio, Bosio, Monti, Paternoster, Juan Evaristo e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Gainzarain e Orsi

Durante a viagem, em sua cabeça rodaram milhares de perguntas: ‘terá morrido? Se vive, desejará me atender? A família não me expulsará correndo?’. Desceu na Praça de Flores e caminhou oito quadras pela rua Pedernera em direção ao sul até B.F. Moreno. Logo dobrou até Varela, onde finalmente encontrou a direção. Mas tanta expectativa lhe jogou uma peso ruim. Sergio ficou duro, o medo o paralisou. Não se animou em tocar a campainha. Teve um pressentimento que o fez caminhar na direção à avenida, até uma sorveteria próxima. Após comprar um sorvete, se sentou fora, sobre B.F. Moreno. De repente, um senhor maior se posicionou a seu lado. Com ingenuidade, o olhou e perguntou:

-Desculpe, senhor, você sabe se por aqui vive o ex-jogador do Boca Tarasconi?
O velhinho, sem dirigir-lhe o olhar, mas com um sorriso largo indissimulável lhe respondeu:
-Sim, garoto, sou eu…

Nesse instante, lhe correu um frio pelo corpo como quem se encontra ante o inesperado. O olhou uma e mil vezes para se assegurar que era ele. Tinha um físico imponente, era alto e esguio. Após sua infrutífera busca, seus temores e vacilações, estava de frente ao mesmíssimo Tarasca. Uma emoção imensa o invadiu. Nunca se esqueceu de tudo o que falou com Tarasconi naquela tarde. (…) Da famosa excursão do Boca em 1925 e até se inteirou que havia jogado em um ignoto Sportivo Boedo.

Finalmente, lhe disse que o visitasse na semana seguinte, porque estava fazendo umas reformas em sua casa. Se levantou e cumprimentou com o apertão de mãos que não esquecerá jamais. Tarasca cruzou a rua a toda velocidade, como um hábil ponta, algo incomum para sua avançada idade. Ainda se lembra dessa cena como se fosse ontem. O visitou duas vezes mais para perguntar-lhe como era o futebol de antes e satisfazer todas as suas inquietudes. Levou consigo um sem-fim de anedotas que guardou em folhas do caderno do colégio. (…). Nesse dia, o autor desse blog conheceu Tarasca“.

No ministério de obras públicas e por volta de 1982 – ainda viveria mais nove anos

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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