Nos 50 anos da Copa 1966, conheça a influência inglesa no futebol argentino
O campeonato argentino é o mais antigo do mundo fora do Reino Unido. Afinal, a Argentina reunia uma comunidade britânica expressiva, a ponto de já em 1867 criar o Buenos Aires FC (hoje voltado a outro esporte bretão, o rúgbi). O intercâmbio havia sido importante na independência, com diversos líderes dela reunindo-se em Londres na loja maçônica Lautaro; não poucos dos jogadores dos primórdios do football argentino era maçons, inclusive. A influência inglesa é notória no nome da dupla Boca Juniors e River Plate, que nem foram fundados por anglo-argentinos, diferentemente da dupla rosarina Rosario Central e Newell’s Old Boys. Hora de relembrar um pouco dessa história.
De 1891 a 1912, só clubes “britânicos” ganharam o campeonato argentino. Se o Saint Andrew’s era da comunidade escocesa e o Porteño surgiu na irlandesa, ingleses estiveram por trás do Lomas Athletic, Lomas Academy, Belgrano Athletic e encheram também o Alumni (cujo nome original era English High School). O Quilmes também foi fundado por britânicos, o que se reflete em suas cores, com o branco da seleção inglesa e o azul marinho da escocesa. Seu rival, o Argentino de Quilmes, surgiu exatamente como contraponto, já que os clubes de football eram fechados. Mas até ele teria seus ingleses.
Rosario e Córdoba também desenvolviam paralelamente seu futebol. O mesmo 1867 que pariu o Buenos Aires FC viu nascer o Rosario Athletic, três vezes campeão seguido da Copa Competencia, torneio que reunia clubes portenhos, rosarinos e uruguaios no início do século XX. Hoje chamado de Atlético del Rosario, também é conhecido como Plaza Jewell, onde está localizado, e está voltado ao rúgbi assim como os pioneiros Buenos Aires FC, Saint Andrew’s (atual San Andrés), Belgrano Athletic, Porteño e Lomas – posteriormente, a associação por trás do Alumni também criaria sua equipe de rúgbi. Em 1882, surgiu o Córdoba Athletic, outro com foco atual na bola oval.
Ainda no século XIX, em 1889, empregados da Central Argentine Railway fundaram o Rosario Central. Também em Rosario, em 1903, era fundado o Newell’s Old Boys no seio do colégio criado pelo imigrante Isaac Newell. O Córdoba Athletic, por sua vez, deixou o futebol. Um dos seus dissidentes, o inglês Tomás Lawson, fomentou a fundação do Talleres, uma das principais forças do interior. Outros dissidentes, dentre eles Herbert Williams e Walter Williams, fundariam o General Paz Juniors, que chegou a ser vice nacional em 1943 (na Copa da República, espécie de Copa da Argentina na época). Surgiram respectivamente em 1913 e 1914.
Em Buenos Aires, ferrovias de empresas britânicas, como a que originou o Rosario Central, deram origem ao Ferro Carril Oeste (que nos primórdios usava uniforme do Aston Villa) e ao Ferrocarril Midland. A influência britânica fazia com que mesmo clubes “latinos” se nomeassem em inglês. Além de Boca Juniors e River Plate, isso ocorreu com Chacarita Juniors, Argentinos Juniors, All Boys e Chaco For Ever, dentre outros. Banfield e Temperley, ambos na elite atual, se batizaram com os nomes de suas cidades, nomeadas com o sobrenome de antigos proprietários das áreas correspondentes (Edward Banfield e George Temperley). Henderson é a cidade natal de Claudio Caniggia.
Por ironia, quem começou a latinizar o futebol argentino foi um clube chamado Racing (de influência indireta – a palavra inglesa estava na capa de uma revista francesa de um dos fundadores). Trajado nas cores argentinas, La Academia venceu sete campeonatos seguidos entre 1913 e 1919 e virou base da seleção, encerrando a era britânica também na Albiceleste. Nos primórdios, da seleção, sobrenomes anglo-saxões, hoje raros, eram maioria.
O pai da seleção argentina foi o anglo-argentino James Oswald Anderson. Jogava futebol no Lomas (foi artilheiro do campeonato de 1896) e rúgbi no Buenos Aires FC (foi o terceiro presidente da federação argentina deste esporte). Selecionou os jogadores para encontros em 1901 e 1902 contra os uruguaios – a AFA considera o jogo de 1901 o primeiro da seleção, para a FIFA vale o de 1902. Um dos selecionados em 1901 foi o volante Harold Ratcliff, do Belgrano Athletic. Nascera em Essex e jogaria outra vez em 1908, na estreia de camisa alviceleste.
Já um dos selecionados descendente de ingleses foi Carlos Dickinson, ponta-esquerda do Belgrano Athletic. Seu irmão, Alfredo Dickinson, jogava no rival Alumni e também defenderia a seleção. Dedicaram-se depois ao agronegócio, chegando a ter terras no Brasil (Alfredo faleceu em Santos, em 1971). Outro irmão, Tomás Dickinson, esteve no encontro não-unânime de 1901.
Em 1906, o ponta-esquerda Wilfred Stocks, natural de Nottingham e jogador do Belgrano Athletic, jogou uma vez pela Argentina, no 2-1 contra o Uruguai. Era maçom. Harold Lloyd, apesar do sobrenome galês, nascera na Inglaterra também e, como jogador do Quilmes, defendeu a Argentina uma vez, em 1909. Em 1911, o volante Lionel Peel Yates, do Alumni e também vindo da Inglaterra, jogou três encontros contra o Uruguai, assim como Cirilo Russ, também imigrante, do Quilmes.
Naqueles primórdios sem padrão FIFA, houve quem jogasse pela seleção argentina após defender outra seleção. Foi o caso de Harold Henman, nascido em Oxford e que em 1906 se fincou na Argentina após enfrentá-la pela forte seleção sul-africana da época (saiba mais). Este ponta-direita juntou-se ao Alumni e jogou em um 2-1 dos hermanos sobre o Uruguai. Foi o caso também do centroavante Sidney Buck, em 1912, ano em que foi campeão pelo Quilmes. Seu lugar de nascimento era incerto, mas foi na Europa e era descendente de britânicos. É o único que defendeu tanto a seleção argentina como a uruguaia (era ex-jogador do Montevideo Wanderers).
Também nos anos 10, jogaram os irmãos Ennis e Harry Hayes, descendentes de ingleses. Eram ambos do Rosario Central e empregados da ferrovia que originou os canallas. São até hoje os maiores artilheiros do clube e estiveram ambos na primeira Copa América, há cem anos. Falamos aqui do sóbrio Harry e aqui do bad boy Ennis. Desde então, mais dois jogadores com origens comprovadamente ingleses se destacaram: Roberto Brookes, veloz ponta-esquerda, era apelidado de El Inglés e era filho de um imigrante de Liverpool contador de empresa petrolífera. Esteve na seleção argentina (campeão da Copa América em 1959) mesmo jogando na segunda divisão pelo Chacarita.
Já Daniel Willington tinha origens distantes, com fenótipo mais indígena do que anglo-saxão. Bisneto de um inglês, esse armador foi o grande craque do primeiro título argentino do Vélez, em 1968. Consagrou-se também no futebol cordobês: formado no Talleres, esteve na estreia nacional do Instituto em 1973, ao lado de Kempes e Ardiles. Voltou ao Talleres e brilhou na primeira grande campanha nacional de La T, o 4º lugar em 1974. Ganhou pela seleção na Copa das Nações de 1964.
Os jogadores abaixo, por sua vez, têm sobrenomes ingleses mas não identificamos a origem. Sua presença é meramente especulativa:
F. Archer, James Gifford, T.F. Allen, Percy Hooton, Spencer Leonard, Herbert Dorning, Ernesto Lett e J. Clarcke: artilheiros do campeonato argentino, respectivamente em 1891 (por Buenos Aires-Rosario Railways); 1894 (Flores Athletic); 1896 (Flores Athletic) e 1898 (Lanús Athletic); 1899 (Belgrano Athletic) e 1906 (Quilmes); 1900 (English High School); 1901 (Belgrano Athletic); 1911 (Alumni); e 1922 (Sportivo Palermo).
Edward Morgan: ponta-direita do Quilmes, esteve no jogo de 1902 da seleção, marcando um dos gols da vitória por 6-0 sobre o Uruguai.
Eugenio e Juan José Moore: Eugenio Moore era ponta-esquerda e Juan José, meia-direita. Eram do multicampeão Alumni. Pela Argentina, Eugenio esteve naquele jogo de 1902 e Juan José estreou no seguinte, em 1903. Foram por mais de cem anos os únicos gêmeos na seleção principal, até serem igualados recentemente pelos irmãos Funes Mori (falamos aqui). Eram ambos maçons.
Jorge Howard: filho de um almirante da Guerra do Paraguai, também foi militar. Atuava no Belgrano Athletic e jogou uma vez pela seleção, em 1903, na primeira derrota dela. Esse goleiro tinha só 17 anos. Em 1906, na excursão do Nottingham Forest pela Argentina, jogou pela equipe inglesa contra o combinado rosarino. Era maçom.
Carlos Lett: meia-esquerda do Alumni, jogou pela seleção em 1905 (ano em que foi artilheiro do campeonato) e em 1911. Era maçom e lutou nas tropas reais de Sua Majestade na Primeira Guerra Mundial, sendo condecorado por bravura pela batalha de Galípoli.
Juan Rodman e Ricardo Coulthurst: ambos do Quilmes. Rodman era volante do Quilmes e jogou uma vez pela Argentina, em 1905. Coulthurst, que era maçom, era goleiro e também jogou uma vez pela seleção, em 1906.
Alberto e Arturo Penney: irmãos dos primórdios do Boca, estiveram no primeiro título do clube, a liga central de 1906. Alberto também defenderia o River, em 1912.
Haroldo Grant e Juan Wood: ambos volantes do Belgrano Athletic. O vigoroso Grant jogou pela seleção entre 1907-11. Era maçom. Wood jogou uma vez, também em 1907.
Arturo Jacobs: volante que jogou pela seleção vindo tanto do Belgrano Athletic como do rival Alumni, entre 1907-13. Antes do primeiro gol olímpico oficial (do argentino Cesáreo Onzari, em 1924), ele já havia feito praticamente um, mas contando com o desvio do goleiro uruguaio em 1907 – foi em sua estreia pela seleção e esse foi seu único gol pela Argentina.
Carlos Tomás Wilson: goleiro do San Isidro, outro clube que se voltou ao rúgbi, é quem mais o representou na seleção de futebol. Estreou nela com só 18 anos, em 1907, e defendeu a Argentina por nove anos. Descrito como elástico e atento.
Henry Lawrie: artilheiro do campeonato de 1906 pelo já decadente Lomas Athletic, jogou pela seleção de 1909-11 vindo do poderoso Alumni. Também sabia jogar bem na defesa.
Charles Whaley: seu lugar de nascimento é incerto e seu apelido era El Sudafricano. Mas jogou pelo combinado argentino contra a própria África do Sul em 1906 (ano em que foi artilheiro do campeonato). Pela seleção, atuou uma vez, em 1907. Era o centroavante do Belgrano Athletic.
Carlos Pearson: goleiro do Quilmes campeão de 1912, jogou naquele ano uma vez pela Argentina.
Guillermo Dannaher: potente centroavante, outro apelidado de El Inglés, embora nascido em Bahía Blanca. Jogou pela seleção entre 1912-14, vindo do Tiro Federal de Rosario e do Argentino de Quilmes, pelo qual foi artilheiro do campeonato em 1913. Também brilhou no Huracán, sendo artilheiro e campeão do primeiro título argentino do clube, em 1921, marcando os dois gols na partida que garantiu a taça, os 2-0 sobre o Boca. Teve fim trágico, apunhalado em briga de bar ainda em 1927.
Juan Johnston: volante que jogou uma vez pela seleção, em 1912, quando ela empregou de uma vez quatro jogadores do Argentino de Quilmes (como Dannaher), clube de Johnston.
Juan Rogers: clássico ponta veloz, jogou pela Argentina de 1912-13, vindo do Provincial de Rosario.
Ángel Mallen: rústico defensor do já decadente Belgrano Athletic, jogou quatro vezes pela seleção em 1913.
Heriberto Simmons: um dos primeiros jogadores do River na seleção. Era um defensor que ocasionalmente se aventurava no ataque, algo incomum na época. Jogou pela seleção de 1913-16 e esteve no primeiro título argentino do River, em 1920.
Juan José e Pedro Rithner: eram irmãos. O goleiro Juan José Rithner é quem mais defendeu a Argentina vindo do Porteño, entre 1910-16, incluindo a primeira Copa Roca, contra o Brasil, participando também da primeira Copa América. Também apitou um jogo da Argentina, em 1919. O meia Pedro Rithner jogou uma vez pela Argentina, em 1914, sendo o único jogador do Baradero nela.
Edwin Clarcke: centroavante forte e certeiro que pela seleção jogou vindo do Porteño e do extinto Sportivo Palermo, jogou a Copa América de 1919.
Luis Cilley: volante que também se dedicava ao rúgbi, jogou uma vez pela Argentina, vindo do San Isidro, em 1919 – clube que naquele período decaía no futebol (abandonaria-o nos anos 30) enquanto era treze vezes seguidas campeão da bola oval. Vários outros Cilley se tornaram proeminentes neste esporte e um deles, José Cilley, foi o pontuador máximo da Argentina na Copa do Mundo de 1995.
Santiago Power: centromédio do Sportivo Dock Sud que jogou três vezes pela Argentina em 1922.
Federico Wilde: sua única aparição pela seleção foi no único jogo da Argentina na Copa do Mundo de 1934, na qual só amadores foram convocados. Wilde era meia-direita do Unión de Santa Fe.
Carlos Armando Wilson: zagueiro duro do sumido Talleres de Remedios de Escalada, jogou pela seleção a Copa América de 1935. Também passou pelo Boca. Era maçom.
Juan Carlos Colman: zagueiro duro de Newell’s e Boca, era por isso apelidado de Comisario. Titular na vitoriosa Copa América de 1947, esteve no primeiro amistoso da Argentina em Wembley, contra o English Team, em 1951.
Federico Edwards: estereótipo do xerife, era um lateral-esquerdo duro que se encarregava de cobrar faltas e pênaltis. Colega de Colman no Boca dos anos 50 e esteve na Copa do Mundo de 1958, mas jamais entrou em campo oficialmente pela Argentina.
Carlos Colman: sem parentesco com Juan Carlos, era o clássico volante armador argentino, bastante técnico mas lento. Esteve no Rosario Central campeão duas vezes entre 1971-73 e jogou uma vez pela seleção, em 1972.
Carlos Babington: apelidado de El Inglés, foi um talentoso meia-armador do belo Huracán de 1973. Foi à Copa de 1974 e como técnico venceu duas vezes a segunda divisão com o Huracán, em 1990 e 2000. Manchou-se no clube depois como um presidente discutível.
René Houseman: colega de Babington naquele Huracán (entenda a importância daquele time clicando aqui), chegou a ser o recordista de jogos da seleção argentina. Comparado a Garrincha pelas diabruras na ponta-direita e pelo vício em álcool, El Loco, destaque solitário na Copa do Mundo de 1974, ganhou, já decadente, a de 1978, marcando nos 6-0 sobre a Polônia. Como Willington, já tinha mais fenótipo indígena. E seu sobrenome era narrado à maneira espanhola, “Ôusseman”.
Daniel e Mario Killer: jogadores brucutus do setor defensivo do Rosario Central campeão em 1971 e 1973. Eram irmãos e ambos estiveram na Copa América de 1975, na qual Daniel Killer tornou-se o único zagueiro da seleção a marcar três vezes em um só jogo. Mario foi jogar na Europa e sumiu do radar (efeito que isso tinha na época), mas Daniel, já no Racing, foi convocado à Copa de 1978. Ambos defenderiam também o Newell’s e Mario chegou a ser capitão do Independiente.
Carlos Gay: goleiro multicampeão de Libertadores pelo Independiente nos anos 70, ainda que tenha sido titular só na taça de 1974. Mas foi decisivo: pegou um pênalti na finalíssima com o São Paulo.
Héctor Baley: goleiro conhecido no exterior como um raro negro (na verdade, mulato) na seleção argentina, El Chocolate destacou-se por Colón, Huracán e Talleres. Em 1978, foi campeão da Copa como foi reserva de Ubaldo Fillol e do torneio nacional pelo Independiente. Falamos dele aqui. Como Houseman, colega de Huracán e seleção, o sobrenome era narrado à espanhola: “Balêi”.
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