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25 anos de um Boca-River “caliente”: goleada, três de Caniggia e beijo com Maradona

Originalmente publicado nos 20 anos, em 14-07-2016, revisto e atualizado

“Aquele beijo” virou um episódio à parte. Mas o Superclásico de 14 de julho de 1996 foi muito mais que o “amasso” entre Maradona e Caniggia, para usarmos o termo que Paulo Vinícius Coelho utilizou em reportagem da época para a Placar. Foi o primeiro encontro entre a dupla principal após o River ter vencido a Libertadores cerca de três semanas antes, na época igualando ambos com duas conquistas cada em La Copa. Só isso já bastaria para ferver de forma extra o encontro. Mas o Boca também lutava pela liderança. E pôde sorrir por semanas, pois o campeonato, após aquela rodada, foi pausado até agosto para as Olimpíadas. Além disso, foi a última vez que um Super não-amistoso teve hat trick – justamente o primeiro logrado pelo protagonista Caniggia!

O 5-0 imposto pelo Boca em amistoso de janeiro de 2015 não chamou a atenção só pelo o segundo placar mais dilatado da história da rivalidade. E sim porque ultimamente o grande dérbi argentino vem há anos e anos padecendo de tantos gols; normalmente, o lado vitorioso marca vem marcando dois gols. Em 2016, o 4-2 boquense dentro do Monumental veio após dois 0-0 naquele mesmo ano. Vitória por três gols de diferença faz necessário voltarmos até 2002, um 3-0 millonario em plena La Bombonera, quando Cambiasso, autor de um dos gols, ainda atuava no futebol argentino.

Em meados anos 90, a história foi outra. Entre 1994 e 1998, não houve um ano sequer sem ao menos um Superclásico sem goleada ou pelo menos cinco gols somados na conta. Em 11 de dezembro de 1994, o River encaminhou seu primeiro e único título argentino invicto ao impor um 3-0 dentro de La Bombonera na penúltima rodada do Apertura. O Boca respondeu com um 4-2 no Monumental no Clausura 1995. O encontro seguinte, pelo Apertura 1995 não saiu do 0-0, uma exceção. Veio aqueles 4-1 de vinte anos atrás no Clausura 1996, seguido dois meses depois, no Apertura 1996, por um 3-2 em nova vitória boquense, recordada pelo inusitado gol de nuca do saudoso Hugo Guerra no último minuto.

Basualdo, mais à esquerda, abre o placar com esse lento cabeceio. O famoso beijo veio na verdade após esse gol mesmo

No Clausura 1997, um jogaço de ambos os times no Monumental: o Boca abriu 3-0, mas o River conseguiu empatar na única vez da rivalidade em que o time que saiu perdendo por 3-0 evitou a derrota. Mesmo o jogo seguinte, o “magro” 2-1 do Apertura, foi histórico. O Boca venceu de virada no Monumental na última partida da carreira de Maradona: explicamos aqui. Teve também o primeiro gol de Palermo em Superclásicos, e para dar a vitória e provisória liderança, disputada por ambos em uma corrida sensacional. Palermo viria a ser o maior artilheiro do Boca na rivalidade. Foi ele, a rigor, o último a marcar três vezes em um encontro, todos em um 3-0 amistoso já em 1999. Em jogos competitivos, porém, aquela rotina anual parou em 1998.

No Clausura 1998, o Boca manteve a freguesia com um 3-2, outro gol de Palermo e outro gol do herói de vinte anos atrás, Caniggia. El Pájaro foi outro condimento extra naquele 13 de julho de 1996. Afinal, Caniggia começara a carreira no River, dez anos antes. Não havia sido exatamente um ídolo em Núñez, mas não deixou de ser um xodó mesmo declarando-se ainda em 1986 que torcia pelo Boca. Começou a aparecer em 1987 entre os titulares e logo chegou à seleção. Sua boa Copa América em 1987 logo o levou à Europa, não se sedimentando no River. Mas a iluminada Copa do Mundo de 1990 o ajudara a manter um carinho entre a gente do Millo.

Por isso, a vinda dele ao Boca em meados de 1995, junto de Maradona, causou mais furor do que normalmente já faria. Nos quinze anos anteriores, o Boca havia vencido só duas vezes o campeonato argentino, em 1981 e 1992 (maior jejum nacional xeneize). Com a dupla, uma era vitoriosa parecia começar. O Boca chegou à antepenúltima rodada como líder invicto. Levara só seis gols nas 16 partidas anteriores. Levou outros seis só naquela, em plena Bombonera, em maluca derrota de 6-4 para o Racing (saiba mais). Foi ultrapassado pelo Vélez e de líder invicto viu-se repentinamente sem chances de título já na rodada seguinte, ao perder novamente enquanto o Vélez vencia outra.

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O desempenho de Caniggia em 1996 o fez ser readmitido na seleção por Passarella, apesar dos cabelos. O ano sabático o prejudicou mais. À direita, ele e Maradona voltando ao Boca em 1997 para serem “o melhor do estádio”

Caniggia, porém, não contribuíra tanto naquela campanha agridoce. Não fez pré-temporada e sua esposa não se interessou em voltar a Buenos Aires e permanecia na Europa com os filhos do casal. Só foi deslanchar em 1996. O veloz ponta se converteu em um centroavante oportunista, reunindo meio gol por jogo até aquele Superclásico. Desempenho que o fez voltar à seleção em abril, apesar dos cabelos compridos. O Boca ganhou quatro das cinco primeiras partidas e, seguia nas cabeças apesar de duas instabilidades – as três rodadas seguidas sem vitória, incluindo o 6-0 em plena Bombonera para o Gimnasia LP (com três gols do futuro ídolo auriazul e atual técnico Barros Schelotto: detalhamos aqui), e o 5-1 para o Vélez (com dois de Chilavert: falamos aqui).

Antes da goleada contra o Vélez, o Boca já vinha de três vitórias seguidas e emendou mais três seguidas depois, nas três rodadas anteriores àquele dérbi. Não à toa, o campeão e vice daquele Clausura foram justamente o Vélez e o Gimnasia, respectivamente. Já o River focava-se sem pudor em sua vitoriosa Libertadores; encerraria aquele Clausura só em 14º. Além da ressaca da conquista, o técnico Ramón Díaz tinha de suportar quatro desfalques: Almeyda, Crespo, Ortega e Gallardo estavam ocupados na preparação olímpica para os Jogos de Atlanta.

El Pelado Díaz então alinhou Germán Burgos (avaliado com nota 5 pela revista El Gráfico); Hernán Díaz (6), Celso Ayala (6), Guillermo Rivarola (6) e Ricardo Altamirano (4), Marcelo Escudero (4), Leonardo Astrada (5), Pablo Lavallén (4) e Gabriel Cedrés (4), Gabriel Amato (5) e Enzo Francescoli (5). A honra da casa ficaria a cargo de outra constelação: Carlos Navarro Montoya (6), Fernando Gamboa (6), Nelson Vivas (7) e Carlos Mac Allister (7); José Basualdo (6), Fabián Carrizo (6), Kily González (6), Juan Sebastián Verón (7) e Diego Maradona (7); Alphonse Tchami (7) e Caniggia (9). Em negrito, outros vira-casacas na rivalidade; Amato e Gamboa, como Cani, já haviam cometido a “traição” antes daquele duelo.

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Axl Rose Caniggia foi revelado no River, o que aumentou o furor de sua chegada ao Boca. À direita, contra Rivarola (camisa 6) e Ayala na jogada de seu primeiro gol. Era o 2-0

E Caniggia, justo ele, era dúvida. Havia jogado pela seleção seis dias antes, contra o Peru (aquela seria sua última partida pela Albiceleste até ser desenterrado por Marcelo Bielsa em 2002) e reclamou de lesões na saída. Ele acreditava que seu contrato expiraria ao fim do semestre, ou seja, em 30 de junho – Mauricio Macri, na época presidente só do Boca, garantiu que estava prevista prorrogação automática se o campeonato continuasse após aquela data; em outras versões, o contrato estipularia a permanência de Caniggia não até o fim do semestre e sim até o fim do torneio.

Fato é que o astro realmente não teria passe livre em 30 de junho. E El Pájaro, uma vez ciente desse desagrado, não deixou de resmungar, ansioso em voltar à família instalada na Europa: “esse sistema de campeonato está desorganizado e não convém a nenhuma equipe. Se eu fico até o final do torneio, perco a pré-temporada do clube que vá me contratar. No resto do mundo já terminaram os campeonatos e aqui ainda vão faltar três rodadas. 25 de agosto é uma data muito distante…” foi uma declaração que constou em perfil pós-jogo dele na edição semanal da El Gráfico.

O próprio Caniggia, desgostoso também com sua precificação em seis milhões de dólares (a considerava alta demais para um atacante veterano, dificultando a desejada transferência), confirmou que jogaria e no dia da partida não teve papas na língua com o Clarín: “eu quero ganhar do River seja como seja. (…) Olhe bem, o River ganhou a Libertadores mas não é nenhuma maquininha”. Indagado se sonhava em marcar, o homem que marcaria três gols pela primeira vez na vida e forneceria a assistência para o outro gol xeneize respondeu que “os gols são importantes, mas eu quero ganhar a partida, jogar bem e atacar. Essas três coisas”.

O lance do segundo gol de Caniggia (e do 3-0 do Boca)

Ainda ao Clarín, ele também negou que aquele Superclásico seria sua última partida no Boca, pois a ambiguidade contratual, o longo recesso olímpico e o fato de que aproveitaria o recesso para rever a família na Europa ensejaram rumores de que após o dérbi ele voltaria ao futebol europeu – onde teria proposta inglesa. “Pode ser que eu volte para jogar as outras três partidas. Já disse que minha intenção é sair… ao final. Isso não significa que agora vou e não volto”. Mas a El Gráfico pós-jogo já daria uma outra versão: “foi minha última partida, salvo se os dirigentes e o Multimedios [empresa detentora de seu passe] me solucionem o tema do meu passe nos próximos 15 dias. Se não resolverem, não volto”.

O River não soube trabalhar em equipe o jogo inteiro. Mal arriscou e mesmo o elegante Francescoli isolou mais de uma vez de forma bisonha a bola. O uruguaio chegou até a levar drible elástico do inábil Carlos MacAllister por volta dos 25 minutos. No primeiro tempo, a visita ainda conseguiu truncar o jogo. As melhores oportunidades vinham sendo dois fortes chutes diagonais de Kily González pela esquerda. O primeiro tempo foi avaliado mesmo com “tedioso” pela El Gráfico… mas no finzinho a torneira abriu. Maradona – de trivela – passou a Caniggia, que vinha pela direita. Cani cruzou e Basualdo apareceu como elemento-surpresa para subir antes da marcação e testar certeiro no ângulo esquerdo de Burgos.

O selinho dos astros não foi fruto de um êxtase maradoniano pelos três gols do amigo, como se pode pensar: saiu após aquele gol, que comemoraram à parte enquanto os demais colegas se reuniam com Basualdo, e não foi inédito. Já haviam feito o mesmo nos 2-1 sobre o Lanús e na derrota de 5-1 para o Vélez (o Boca começara ganhando essa partida), jogos em que Caniggia marcara todos os gols boquenses – o combinado era que fariam sempre que um marcasse após jogada do outro. A comemoração foi muito rápida para a narração comentar algo, mas ainda assim a transmissão imediatamente focou em Claudia Villafañe, ainda esposa de Dieguito, presente nas cadeiras VIP.

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Fotos de Alexandre Battibugli para a Placar (à esquerda, Caniggia comemora o 3-0 parcial). Clique no link da introdução para acessar a matéria feita por Paulo Vinícius Coelho na época

O segundo tempo começou com um rolo compressor auriazul. Na saída de bola, o camaronês Tchami foi lançado por Maradona e tocou sem ângulo pela direita, mas com perigo. Burgos desviou e a bola passou muito perto da trave. Com cinco minutos, Tchami perdeu equilíbrio mas conseguiu entregar a bola a Caniggia perto da lateral. El Pájaro irrompeu contra três adversários e, também sem ângulo pela direita, teve mais sucesso, acertando o canto de Burgos para ampliar.

O terceiro quase foi de Maradona, cobrando falta. A bola entraria não fosse uma espalmada providencial de Burgos. Só aí o River conseguiu um primeiro chute a gol, também com falta. Francescoli isolou feio. E, dois minutos depois, o jogo se liquidou. Caniggia aproveitou perto da pequena área uma sobra e, cercado, levantou a perna para dar um toque sutil para tirar a bola do alcance de Burgos. A redonda passou calmamente, a ponto de Cani quase completar a jogada para entrar com bola e tudo, mas resolveu iniciar logo as comemorações.

Com o 3-0, torcedores do River voltaram a trepar na marquise do segundo anel na Bombonera, algo que Francescoli tivera de pedir antes da partida para pararem. Dessa vez, a segurança do estádio usou de jatos d’água em pleno inverno portenho. Perdido, o uruguaio isolou outra falta e tentou cavar um pênalti. Pouco depois, em nova cobrança de falta, Enzo enfim levou algum perigo. A bola, rasteira, passou bem perto da trave. Com cerca de meia hora para o fim, Altamirano recebeu cartão vermelho direto ao pisar nas genitais de Carrizo após uma dividida. Na pequena confusão gerada, Fabbri também foi expulso. Na cobrança, Tchami se enroscou com Ayala e cavou um pênalti.

O quarto gol: Maradona, ao meio, perdeu pênalti, mas Caniggia conferiu o rebote. No centro, outro ângulo da famosa foto. Já a charge diz que “não é todos os dias que se dão três beijos no Diego”

Maradona deslocou Burgos, mas acertou a trave. Ainda que com um sorriso amarelo, pôde comemorar: Caniggia aproveitou o rebote e marcou seu terceiro gol na noite. Já levando de 4-0, enfim o River teve alguma sequência de chances. Numa delas, Amato (ex-jogador do Boca) recebeu, driblou Navarro Montoya e diminuiu, mal comemorando. A goleada seria ainda maior se no último lance, em contra-ataque, Tchami não fosse fominha e torto demais no chute – Caniggia estava livre. Logo depois soou o apito. Em sua edição pós-jogo, a El Gráfico colocou meio Boca no time ideal daquela rodada, baseado nas notas: Oscar Passet (San Lorenzo), Mac Allister, Fabbri, Pedro Barrios (Huracán) e Héctor Almandoz (San Lorenzo), Ariel Ibagaza (Lanús), Verón e Gustavo Barros Schelotto (Gimnasia), Maradona, José Albornoz (Gimnasia) e Caniggia, o mais bem avaliado.

Com o resultado, o Boca chegou a 32 pontos, empatado com o Gimnasia, ambos só um a menos que os 33 dos líderes Vélez e Lanús. O Estudiantes, com 29, corria por fora, com mais três rodadas a serem disputadas após as Olimpíadas. Só que a pausa, inicialmente comemorada pelo entorno do Boca, pareceu não lhe fazer bem. Perdendo embalo, o time mais galáctico do torneio foi derrotado nas duas primeiras rodadas pós-recesso mesmo contando com Caniggia, vendo cair antecipadamente as chances de taça (em curiosa noite em que Verón marcou sobre o Estudiantes e Martín Palermo, sobre o Boca); e, já poupando ele e Maradona, empatou a última. Terminou somente em quinto, atrás de todos esses clubes. O Vélez, novamente, sorriu por último. Curiosamente, com seu treinador Carlos Bianchi sendo outra vítima do calendário, fazendo bate-volta desde a Roma apenas para dar a volta olímpica.

Maradona, arrasado por novo troféu que escorria entre os dedos para um clube sem vencer o país desde 1992, pararia de jogar por um ano, traumatizado por ter perdido seguidamente seis pênaltis na campanha (incluindo aquele do quarto gol de 25 anos atrás). Caniggia também tiraria um ano sabático, por razões mais trágicas: sua mãe suicidaria-se em setembro. Sem a dupla, o Boca cairia para um 10º lugar no Apertura 1996 e um 9º no Clausura 1997. Com eles juntos pela última vez, o clube, com um setor ofensivo que tinha ainda Juan Román Riquelme, Martín Palermo, Guillermo Barros Schelotto, Diego Latorre e o mexicano Luis Hernández, faria um campeonato sensacional no Apertura 1997 (entenda), mas a dupla novamente bateu na trave. Uma pena.

O anticlímax nas semanas seguintes: Maradona cumprimenta Palermo dali a duas rodadas (na penúltima), em agosto, quando o Boca perdeu as chances de título. Caniggia no enterro da mãe, em setembro

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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