Primeira Divisão

Maior carrasco do Brasil, Emilio Baldonedo faria cem anos

Em 2011, a principal revista esportiva argentina, a El Gráfico, do alto da autoridade de quem é publicada seguidamente desde 1919, lançou uma edição especial na qual elegeu os cem maiores ídolos da seleção. Como toda lista do tipo, alguns nomes e ausências são contestáveis (nenhuma lembrança a Roberto Sensini mas presença de Pedro Ochoa, de apenas dois jogos??). Além dos cem perfis, outros atletas foram lembrados como “heróis fugazes”, alguns pelo que fizeram contra o Brasil, como Ricardo Gareca, Roberto Telch, Pedro Suárez ou Claudio López. Nem assim Emilio Baldonedo foi mencionado. Tremenda injustiça a quem mais fez gol no rival (como na imagem acima) e que hoje faria cem anos.

Curiosamente, no mesmo 23 de junho de 1916 também veio ao mundo quem mais marcou em um só jogo nos brasileiros: Ernest Wilimowski, autor de quatro na derrota da Polônia por malucos 6-5 na Copa do Mundo de 1938. Filho de espanhóis que tinham uma fábrica de vassouras no bairro de Boedo, Baldonedo nasceu mais próximo do San Lorenzo, o clube situado nesse bairro. Isso não o impediu que fosse no rival Huracán, do bairro vizinho de Parque de los Patricios, que buscasse jogar. “Era um jogador inteligente, hábil, lúcido para posicionar-se no campo e muito preciso para definir. Tem uma das seis melhores médias goleadoras de toda a história da seleção nacional. (…) Converteu seus sete gols em cinco partidas consecutivas, uma das principais marcas de todos os tempos”, sintetizou sobre ele o livro Quién es Quién en la Selección Argentina, também publicado em 2011, de Julio Macías.

Em 1935, chegou ao time B do Huracán. E logo no principal também, pelo qual estreou na 11ª rodada do campeonato, no 1-1 com o Vélez. O primeiro gol viria na 19ª, vitória por 2-0 sobre o Quilmes. Faria mais cinco, logo mostrando muito entendimento com a grande figura do elenco: Herminio Masantonio, o maior artilheiro do clube. Baldonedo, por sua vez, é justamente o segundo maior. Masa marcou o outro gol. E a dupla marcou junta nas duas rodadas seguintes (2-0 no Ferro Carril Oeste, derrota de 3-2 para o Talleres de Escalada) e na 30ª, na qual cada um fez dois nos 5-0 sobre o Argentinos Jrs. O outro gol de Baldonedo veio na derrota de 2-1 para o River. Ao todo, somou seis gols em onze partidas jogadas no ano de estreia.

Nos anos 30 e nos 40 com Masantonio, maior artilheiro do Huracán (270 gols em 366 jogos). Baldonedo (167 gols em 264) é o 2º maior. Eles têm mais de um gol por jogo pela Argentina
Nos anos 30 e nos 40 com Masantonio, maior artilheiro do Huracán (264 gols em 365 jogos). Baldonedo (167 gols em 264) é o 2º maior. Eles têm mais de um gol por jogo pela Argentina

Naquela época, Huracán e San Lorenzo tinham a mesma quantidade de títulos argentinos, quatro. E ambos os rivais lutaram pelo primeiro dos dois campeonatos ocorridos em 1936. O Globo venceu o clássico, na única derrota sanlorencista, mas ficou no vice. O empate em 3-3 com o Ferro Carril Oeste na penúltima rodada praticamente definiu tudo, apesar do desempenho de Baldonedo, autor dos três gols quemeros. Somou 18 gols naquele ano, sendo o artilheiro do elenco. Mas ainda era instável: doze desses gols vieram em só quatro partidas, via hat tricks naquela tarde agridoce com o Ferro, um 5-2 no Atlanta (fora de casa), um 7-0 no Lanús e derrota de 5-3 para o Quilmes.

Em 1937, foram 23 gols, quatro deles sobre o campeão River, derrotado em ambas as partidas – incluindo um 5-2 em seu próprio campo, tarde em que Baldonedo marcou três vezes. O time foi quarto colocado na maior parte do torneio, mas, irregular, terminou em sétimo. Naquele ano, a AFA definiu que clubes com ao menos dois títulos, vinte anos ininterruptos na elite e pelo menos 15 mil sócios teriam peso triplo nas votações. Nascia assim o conceito dos “clubes grandes”. O Huracán cumpria os dois primeiros requisitos, mas não o último. Só Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo preenchiam todos, virando “os cinco grandes”.

O Globo, porém, dava motivos para ser visto como “o sexto grande”. Não ainda em 1938, quando foi só oitavo, apesar dos 29 gols de Baldonedo – destaque aos três fora de casa no 4-4 com o Racing ou outros três nos 9-3 no Tigre, até então a maior goleada aplicada pelo Huracán. A irregularidade se mantinha, fazendo dos quemeros capazes também de um 7-2 no Talleres de Escalada, 6-2 no Vélez assim como perderem de 7-2 para o mesmo Vélez, de 5-1 para o River ou de 6-1 para o Lanús. Enquanto o ataque tinha média de 2,66 gols por jogo, a defesa levava 2,78. Mas a fase individual de Baldonedo rendeu uma primeira aparição pela seleção argentina, em partida esquecida nas estatísticas – pois é vista como jogo não-oficial, um 3-2 com gol dele sobre a seleção rosarina. Os outros dois gols argentinos, aliás, foram de Masantonio.

Huracán 3-2 Boca em 1939, três gols de Baldonedo – lance do terceiro deles

Em 1939, a campanha huracanense voltou a ser brilhante, com 97 gols. Voltava à casa Guillermo Stábile, artilheiro da primeira Copa do Mundo, ídolo do clube nos dourados anos 20 e que lançava carreira de técnico; Stábile acabaria assumindo concomitantemente a seleção argentina também, pois naquele 1939 o Huracán se tornou o primeiro a vencer em um mesmo campeonato os tais “cinco grandes” – e tudo no primeiro turno, no qual terminou líder empatado com o Independiente. Baldonedo contribuiu com 26 gols, três deles nos clássicos com o San Lorenzo, que pela primeira vez foi derrotado em ambos. O mais festejado, o 5-2 fora de casa, até hoje a maior goleada quemera sobre o rival no campo alheio. Baldonedo abriu e fechou o placar, que estava 5-0 até os últimos cinco minutos. Também fez os três em um 3-2 no Boca.

O porém foi uma defesa falha, que chegou a levar de 9-1 do Lanús, pesou. E o Huracán foi vice. Mas, por outro lado, angariou sócios de forma meteórica. A ponto de seis anos depois, quando Baldonedo deixou o clube, o Globo ter 23 mil associados, só quinhentos a menos que o Boca. No embalo daquela recordada campanha, o clube inaugurou em 1940, quando foi terceiro colocado, a sua sede social na Avenida Caseros. Baldonedo em 1940, por sua vez, voltava à seleção Argentina, agora para estrear de modo oficial. Era pelo terceiro jogo válido pela Copa Roca de 1939. Só o Brasil havia representado a América do Sul na Copa do Mundo de 1938, diante da recusa da AFA em participar das eliminatórias, em protesto por acreditar que Europa (que havia recebido a edição de 1934) e América deveriam se revezar nas sedes do torneio.

Os hermanos viam o bronze mundial dos vizinhos, então historicamente a terceira força continental, como enganoso. E os tupiniquins buscavam reforçar o feito colhido na França, retroalimentando uma nascente rivalidade a ponto de as duas seleções preferirem se ausentar da Copa América realizada em 1939 (facilitando um inédito título peruano) para se centrarem no troféu binacional. Naquela Copa Roca, a Argentina, ainda sem Baldonedo, realmente começou aplicado um 5-1 sobre o Brasil em pleno São Januário (pior derrota brasileira em casa até os 7-1) mas na revanche, também no campo vascaíno, terminou derrotada por 3-2.

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O celebrado Huracán de 1939: Manuel Giúdice (campeão como técnico das duas primeiras Libertadores do recordista Independiente), o técnico Guillermo Stábile, Rafael Luongo, Carlos Marinelli, Bruno Barrionuevo, Jorge Titonell e Jorge Alberti; Rubén Perdomo, Ramón Guerra, Herminio Masantonio, Baldonedo e Plácido Rodríguez

O regulamento era indiferente ao saldo de gols e forçou uma terceira partida, mas a confusão que marcou a segunda (os hermanos retiraram-se do campo em protesto ao pênalti que deu a vitória ao Brasil) fez o tira-teima ficar para o ano seguinte – e em São Paulo, no velho Parque Antártica. Foi esse o jogo em que Baldonedo estreou na Albiceleste, ou voltou, se considerado o jogo não-oficial de 1938. O Brasil vencia de virada até os últimos três minutos da prorrogação, quando o novato garantiu o empate em 2-2 e, assim, forçou novo jogo-extra. Uma semana depois, Baldonedo dessa vez abriu o placar de um inapelável 3-0 que garantiu a Copa Roca de 1939. Em apenas duas semanas, agora em Buenos Aires, seria realizada nova Copa Roca, já pela edição de 1940.

No estádio do San Lorenzo, os hermanos humilharam na primeira partida, um 6-1 no qual Baldonedo fez, de cabeça, o quinto. Outros dois foram de Masantonio, convertido em sua dupla na seleção, embora o destaque maior tenha sido do veterano Carlos Peucelle (que havia jogado e marcado na final da Copa de 1930), autor dos outros três, sendo até hoje o mais velho a conseguir um hat trick para cima do Brasil. No segundo jogo, Baldonedo fez mais dois, mas os tupiniquins surpreenderam e venceram por 3-2 no Gasómetro – isso porque o Pedro “Arico” Suárez mencionado na introdução fez questão de desperdiçar um pênalti que notara ter sido assinalado irregularmente para a Argentina. Há versões de que a derrota teria sido programada justamente para forçar nova partida, com o interesse da federação por mais arrecadação em bilheterias.

Fato é que houve o quinto Brasil x Argentina no espaço de menos de um mês, em 17 de março. Com nove minutos, os entrosados Baldonedo e Masantonio já haviam posto 2-0. Baldonedo faria também o quarto em nova goleada, um 5-1 no estádio do Independiente. O mais impressionante é que ele não precisou de hat tricks para alcançar seu recorde contra o Brasil, pouco conhecido pelos próprios argentinos. O único que o superou no clássico? Ninguém menos que Pelé, que somou um a mais ao longo de treze anos – e o dobro de jogos, dez. Em 18 de julho de 1940, Baldonedo fez sua sexta (ou sétima, se considerada aquela partida de 1938) e última partida pela Argentina. Não era o Brasil. Não marcou e a Albiceleste foi derrotada por 3-0 pelo Uruguai em Montevidéu, pela Copa Héctor Gómez, outro troféu binacional.

Seleção no Brasil em 1940: o técnico Guillermo Stábile, José Salomón, Manuel Aragüez, Víctor Valussi, Ángel Perucca, Sebastián Gualco, Pedro Suárez e o massagista Chichilo Sola; Carlos Peucelle, Antonio Sastre (futuro são-paulino), Arturo Arrieta, Baldonedo e Enrique García

Ao fim do ano, somou vinte gols pelo Huracán. Entretanto, a glória de Baldonedo na seleção ironicamente também acarretou na ruína de sua estadia nela. O presidente huracanense, Tomás Adolfo Ducó (futuro nome do estádio do clube) se indispôs com o meia-esquerda, que o acusaria de induzir contra si um boicote nas convocações. Baldonedo, com isso, ficaria de fora das diversas Copas América vencidas pela Argentina a partir de 1941. O talento de Baldonedo ficou restrito a Parque de los Patricios, que na quarta rodada de 1941 fortaleceu seu ataque profissionalizando o ponta Norberto Méndez. Foi na terceira rodada, em virada de 4-2 após derrota parcial de 2-0 contra o Lanús. Cada um do trio com o meia e Masantonio marcou o seu. E o clube foi líder no primeiro turno, embora terminasse em quinto.

Dali até 1943, o Huracán sempre ficaria entre os quatro primeiros. Para se ter uma ideia do poderio daquele trio, ele reúne precisamente os maiores carrascos da seleção brasileira: Baldonedo fez sete gols, Masantonio fez seis (empatado com o uruguaio Ángel Romano) e Tucho Méndez, cinco (empatado com outro uruguaio, José Medina). Fora o clássico, Masantonio detém até hoje a melhor média de gols dentre aqueles que defenderam a Argentina mais de dez vezes: anotou 21 em 19 jogos e foi artilheiro da Copa América de 1942; Já Méndez viria a ser o maior artilheiro da Copa América, na qual fez cravados 17 gols em 17 jogos, sendo um dos seletos cinco jogadores presentes no recordista tri seguido do Albiceleste apesar de ele vir em anos seguidos (1945-46-47): dedicamos-lhe este outro Especial.

Mas, apesar do trio, o time não mantinha gás nos torneios argentinos, apenas em torneios de tiro curto: as taças se resumiram a copas valorizadas da época, no bi da Adrián Escobar (1942-43), espécie de Torneio Início envolvendo os sete melhores na tabela; e na Británica (1944), espécie de Copa da Liga. Já na liga, normalmente o Huracán arrancava com tudo mas, prejudicado pela defesa, perdia poderio no decorrer dos certames. Em 1944, por exemplo, a primeira rodada rendeu um 5-1 no clássico com o San Lorenzo, maior vitória do Globo no encontro. Baldonedo, ali, deixou o seu pela última vez no dérbi, do qual é o terceiro maior artilheiro huracanense; fez oito, atrás dos dez de Masantonio e posteriormente atrás dos nove de Miguel Ángel Brindisi.

Dois trios que apavoraram a seleção brasileira: Masantonio, Peucelle (do River, é o mais velho a conseguir hat trick sobre os brasileiros) e Baldonedo juntos pela Argentina. À direita, Norberto Méndez, Baldonedo e Masantonio juntos no Huracán: são os três que mais fizeram gols sobre o Brasil

Naquele ano de 1944, o Boca foi campeão e teve o melhor ataque, com 82 gols. O Huracán, que marcou apenas dois gols a menos, ficou só em 7º: afinal, a defesa levou 72, menos pior apenas que os 77 do rebaixado Banfield. Cada vez mais indisposto com Ducó, Baldonedo só jogou as duas rodadas iniciais de 1945 no Huracán. Na quinta rodada, já estreava pelo Newell’s, em passagem-relâmpago de apenas cinco jogos e, no máximo, uma assistência – pois logo fechou com o futebol mexicano, onde atuou três anos; até poderia gabar-se que para substituir sua lacuna no Huracán veio sob empréstimo do River, em 1946, um jovem Alfredo Di Stéfano. Chuteiras uma vez penduradas, Baldonedo teve uma carreira de pouco relevo nos holofotes. Não teve bons resultados à frente do Boca, entre 1951 e 1952 e voltou a durar pouquíssimo no Newell’s, com cinco derrotas em seis jogos na campanha do rebaixamento rojinegro em 1960.

Já no “seu” Huracán, o Baldonedo treinador esteve primeiramente entre o segundo turno de 1965 e o primeiro turno de 1966, ambas campanhas pobres, reaparecendo em 1967 com um trabalho mais razoável – com isso, até apareceu no início de 1968 no Independiente. O exitoso brasileiro Osvaldo Brandão, campeão em 1967, deixara um vácuo não bem preenchido na Libertadores por Enrique Fernández Viola e Baldonedo, mais voltado aos juvenis do Rojo, assumiu o time adulto por alguns jogos. Em Avellaneda, seu maior resquício foi aprovar o garoto Carlos Gay, futuro goleiro herói na Libertadores 1974. O antigo artilheiro acabou se destacando mais nos bastidores dos juvenis huracanenses mesmo – poliu alguns dos craques que fariam do time enfim novamente campeão argentino desde os anos 20, em 1973, e até reapareceu como interino no time principal em 1971, em três jogos em novembro em meio a uma licença de César Menotti.

Baldonedo também trabalharia no Banfield, no Chacarita, no Dock Sud (ganhou a quarta divisão em 1984) e Barracas Central, dentre outros. Mas também viveu o desgosto da queda de prestígio que até os anos 70 havia no Globo mesmo na seca: o primeiro rebaixamento veio em 24 de março de 1986, um dia após o 70º aniversário do ídolo. “Não há nada que me doa mais do que o descenso do Huracán… nós somos de primeira, disso não tenha dúvidas”, repetia. “Não sabem como sofro cada vez que perde o Huracán. Às vezes prefiro não assisti-lo”. Ele deixou mesmo de ir ao estádio Ducó após 1994, ano em que um Huracán líder (no primeiro grande trabalho de Héctor Cúper como treinador) perdeu na última rodada o título do Clausura. Até hoje o clube não voltou a vencer a primeira divisão após 1973, só chegando novamente perto no Clausura 2009. Baldonedo já havia falecido dez anos antes disso, em 31 de maio de 1999. Quinze dias após a confirmação matemática do segundo rebaixamento.

Atualização em junho de 2017: a revista El Gráfico enfim se atentou do recorde de Baldonedo e lhe dedicou este perfil válido como leitura mais do que complementar

Baldonedo nos holofotes do Huracán e da seleção (junto a Hércules, do Brasil, tempos em que os brasileiros ainda vestiam camisa branca ao invés da canarinho). E nos bastidores do seu Huracán, como técnico

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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