20 anos de uma nova era dos goleiros: as faltas de Chilavert, 2ª parte – os dois gols no 5-1 no Boca
Ele, que segundo notícia de ontem enfim virará estátua, já havia marcado de falta. Já havia sido eleito o melhor goleiro do mundo. E liderado um time de bairro aos inimagináveis títulos máximos a nível continental e mundial. Mas foi em 1996 que José Luis Chilavert entrou mesmo para um outro patamar do futebol, especialmente o dos anos 90. Mais do que por novos títulos com o Vélez em 1996, Chila marcou três gols de falta, somando quatro na carreira. Números hoje modestos diante da obra de Rogério Ceni. Mas um assombro para a época. Todos os três de 1996, emblemáticos, abriram caminho para a moda aperfeiçoada por Ceni. O primeiro já havia vitimado o River e o segundo foi sobre o outro peso pesado, em um tumultuadíssimo 5-1 no Boca, em arbitragem do polêmico Javier Castrilli.
Cerca de três meses haviam se passado do gol de 60 metros sobre o River (a 1ª parte dessa série). Mas o Vélez, futuro campeão daquele Clausura, estava errático. Não venceu nas duas rodadas seguintes (1-1 com o Racing, derrota de 2-1 para o Estudiantes) e podia tanto golear por 4-0, caso do Gimnasia de Jujuy, ou por 5-1, como o Lanús, como também perder pontos contra os fracos Huracán (2-2) e Ferro Carril Oeste (0-0 no clássico) ou levar sufoco do Platense, vencido por 4-3. Se atrapalhava pela indefinição da renovação com Carlos Bianchi, contratado por um ano em 1993.
Após conduzir o Fortín ao primeiro título argentino em 25 anos (apenas o segundo da história do clube), a parceria foi renovada em 26 de abril de 1994 por mais dois anos. 26 de abril é justamente o aniversário de Bianchi e quando a data se aproximou em 1996, o Vélez teria oferecido-lhe dois milhões e meio de dólares. O dirigente Norberto Scipione frisou na época que só o Milan ou o Real Madrid teriam capacidade para oferecer algo mais vantajoso. Foi no 26 de abril de 1996, precisamente, que o Vélez goleou por 5-1 o Lanús – que, treinado por Héctor Cúper, vivia ótimo momento.
Os grenás venceriam naquele ano a Copa Conmebol e lutavam pelo Clausura – apesar da goleada, terminaram aquela 11ª rodada ainda um ponto à frente do Vélez, que tinha 22. Mais à frente, só a dupla de La Plata: o Estudiantes de Martín Palermo acumulava 24 e o Gimnasia LP dos gêmeos Guillermo e Gustavo Barros Schelotto liderava com 25. Apesar da grande exibição diante do Lanús, já se sabia desde a véspera que Bianchi não continuaria: o Clarín divulgara que o técnico acertara com a Roma. Prosseguiria no bairro de Liniers apenas até o fim do semestre, não do campeonato: o torneio seria pausado para as Olimpíadas e concluído só em agosto.
A troca de Bianchi por Osvaldo Piazza a partir de julho em nada desmotivou os comandados, ao contrário. Após o 5-1 no Lanús, venceu-se na rodada seguinte o Newell’s em Rosario, gol solitário de José Turu Flores já nos últimos quinze minutos. O estímulo só cresceu com as derrotas dos líderes Gimnasia (2-1 em casa para o San Lorenzo) e Estudiantes (1-0 para o Gimnasia de Jujuy). O Vélez igualara-se à pontuação do Gimnasia LP, mas seguia um atrás do Lanús: a Cúperativa recuperara-se em alto estilo, com um 4-0 no clássico com o Banfield, até hoje a maior goleada do dérbi do Sul da Grande Buenos Aires. Era esse o contexto velezano pré-jogo de vinte anos atrás.
O Boca, por sua vez, havia disparado no início, vencendo quatro das cinco primeiras partidas e empatado a outra. A dupla Diego Maradona e Claudio Caniggia, contratada no ano anterior, finalmente embalava – se Maradona havia sido razoável na campanha do Apertura 1995 (o Boca liderava invicto até a antepenúltima rodada, quando levou de 6-4 do Racing em plena Bombonera e foi ultrapassado pelo futuro campeão Vélez), Cani nem tanto. No Clausura 1996, porém, o ponta loiro já somava meio gol por jogo. E voltava à seleção após a Copa do Mundo de 1994; El Pájaro jogou contra Bolívia e Equador pelas eliminatórias da Copa de 1998 em 24 de abril e 2 de junho, respectivamente, apesar da fama do técnico Daniel Passarella de afastar os cabeludos da Albiceleste.
O problema é que após aquele início, Maradona ausentou-se nas três partidas seguintes por problemas físicos. Uma delas ficou célebre: no dia em que o Boca inaugurava o setor VIP da Bombonera, levou de 6-0 daquele belo Gimnasia LP, com três gols do futuro ídolo Guillermo Barros Schelotto – detalhamos aqui. Mas com Dieguito de volta, os auriazuis voltaram às vitórias. Foram três seguidas, precisamente nas três partidas anteriores à de vinte anos atrás: 4-1 no Argentinos Jrs, 2-1 fora de casa no San Lorenzo e 2-0 no Belgrano. Os xeneizes voltavam ao páreo, estando com 23 pontos contra os 25 do Vélez e assim tendo chances de assumir a liderança naquele 16 de junho de 1996. O bairro de Liniers receberia um confronto temperado pela disputa da liderança, pelo clima de revanche boquense pelo campeonato perdido no ano anterior e pela rivalidade entre os goleiros.
José Luis Chilavert não se conformara em perder a eleição de melhor jogador argentino de 1994 (ano da Libertadores e Mundial velezanos) para Carlos Navarro Montoya, que não ganhara nada. Já Navarro Montoya, ídolo antecessor no gol do Vélez, nos anos 80, já estava esquecido na velha casa por conta do desempenho assombroso do paraguaio. No ano anterior, quando o Boca vencera por 1-0, Chila tivera a chance do empate em cobrança de falta. Pegou na trave e Montoya não deixou de alfineta-lo no sentido que bater na trave era o máximo que o paraguaio conseguia – Chilavert respondeu que o máximo que o rival conseguia era exibir orgulhoso a bola defendida, pois não ganhava troféu algum.
O Boca foi melhor no início. Maradona desfilava técnica, chegando a lançar de letra para Caniggia. Aos 15 minutos, os visitantes abriram o placar em função da dupla: Diego carregou pelo meio e buscou acionar o amigo, mas a bola resvalou em um adversário. Acabou dando certo adiante – ela sobrou para Darío Scotto, que mandou no travessão de Chilavert. No rebote, Cani empurrou com a cabeça. Antes do lance tórrido diante do River, Caniggia e Maradona já comemoraram aquele gol com um selinho.
Cinco minutos depois, porém, o Vélez empatou. E aí começou a polêmica da arbitragem. Para ser justo, Castrilli só assinalou o gol após o bandeirinha comunica-lo disso ao correr ao meio-campo. No lance, Fernando Pandolfi tentou encobrir Navarro Montoya. A bola bateu no travessão e sobrou para Patricio Camps, que a cabeceou. Mesmo caído após saltar em busca do arremate de Pandolfi, o goleiro boquense conseguiu espalma-la antes da linha, mas o gol inexistente foi assinalado. Os donos da casa cresceram e passaram a dominar as melhores chances.
Até que, aos 40 minutos, Chilavert deu um chutão à grande área auriazul. No limite de grande área, Carlos MacAllister, no salto para cabecear a bola, dividiu com Pandolfi, na versão do Boca. Na do Vélez, o zagueiro usou a mão para apoiar-se na nuca do adversário. Castrilli assinalou falta, não pênalti. Mas o apito gerou reclamação de Maradona, que foi amarelado. A cobrança da canhota de Chilavert bateu na trave mesmo, como zombado um ano antes por Navarro Montoya, que ameaçou sair e parou. E acabou traído pelo golpe de vista: após bater no ângulo esquerdo, a bola entrou. Na comemoração, Chila fez todos os abraços convergirem em Bianchi.
Apenas três minutos depois, Chilavert teria uma nova bola parada para si, dessa vez um pênalti. O lance foi parecido ao que originou a falta, com MacAllister dividindo (ou empurrando) Pandolfi, agora claramente na área. Para aumentar a fúria xeneize, a reclamação de Néstor Fabbri rendeu-lhe expulsão; ele já havia sido amarelado ainda com seis minutos de jogo, por falta em Flores. Montoya acertou o canto da cobrança. Mas ela foi mesmo no canto e entrou. Pela primeira vez, Chilavert marcava duas vezes em um só jogo. E pela primeira vez um goleiro fazia dois gols em um jogo no futebol argentino.
A torcida do Boca, no primeiro tempo, estava concentrada atrás das traves que Chilavert defendia e fez um tumulto, derrubando o alambrado. Maradona e MacAllister procuraram impedir que seus torcedores fossem repelidos a jatos d’água em pleno inverno portenho. Diego aproveitou para reclamar com Castrilli e foi expulso. O primeiro tempo, interrompido por quinze minutos, acabaria aos 60. Logo aos 3 do segundo tempo, foi a vez do Vélez reclamar: Flores teve um gol anulado em virtude de impedimento inexistente quando completou cruzamento rasteiro de Christian Bassedas.
Com dois a menos, até que o Boca defendeu-se bem na maior parte do segundo tempo. E quase diminuiu: uma bomba de Juan Sebastián Verón em cobrança de falta só não entrou pois Mauricio Pellegrino a bloqueou perto da linha, com o estático Chilavert batido no lance. O resultado só viraria goleada nos últimos dez minutos. Martín Posse, pela ponta direita, bailou contra o inábil MacAllister e tentou cruzar para Flores. Mas o boquense Fernando Gamboa, tentando interceptar, desviou contra as próprias redes no contrapé de Navarro Montoya.
Com a vitória enfim consolidada, Bianchi, em atitude rara do tipo, solicitou a substituição de Chilavert. Chila pôde ter só para si os aplausos de Liniers e Navarro Montoya usaria seu preparador para comunicar a Bianchi que interpretou aquilo como zombaria. O quinto viria aos 43 minutos: Posse lançou Bassedas, que, cara a cara com o goleiro rival, não foi fominha e passou para Flores. Sem mais nada a perder, MacAllister em seguida também reclamou com Castrilli e foi outro expulso.
A festa no bairro de Liniers foi total. Além do resultado histórico, o Vélez contou com os tropeços de Lanús (derrotado por 3-1 pelo Rosario Central) e Gimnasia LP (que perdeu por 2-1 para o Belgrano) para isolar-se na liderança. Dali a dez dias, a torcida do Boca teria que aguentar também ver o River vencer a Libertadores. Mas Caniggia e Maradona focaram em si, correndo atrás do prejuízo e acumulando vitórias nas três rodadas seguintes à daquela goleada. O desempenho da dupla na terceira delas, na última partida pré-recesso, também ficou famoso. Contaremos em um mês.
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