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BOMBA: 85 anos depois, grandes argentinos abandonam novamente a associação argentina!

Por Caio Brandão e Esteban Bekerman

Não é só no Brasil. Na Argentina, os principais clubes estudam viabilizar uma superliga, à margem dos times pequenos e da AFA. Presidentes de Boca, River, Racing e San Lorenzo, quatro dos “cinco clubes grandes” (o outro é o Independiente, ainda hesitante), estariam acertando seus cargos na nova liga e ontem anunciaram a desafiliação de tais clubes da AFA – no caso do San Lorenzo, mesmo com o time sendo possível finalista do campeonato, que terá sua última rodada no próximo fim de semana. O movimento ocorre quase com impressionante exatidão de 85 anos da outra vez em que fizeram isso, em 18 de maio de 1931. Na época, implantaram o profissionalismo escancarado, enquanto a Associação Argentina de Football remanescia oficialmente amadora. Mas não foi exatamente a luta pelo profissionalismo o que desencadeara a rebeldia.

Alguns clubes com certa tradição remanesceram na AAF, mas não necessariamente por romantismo amador e sim porque não tinham atrativos na visão dos grandes. Reconhecida pela FIFA, a AAF usou só amadores na Copa do Mundo de 1934, que acabou tendo a pior campanha da seleção (eliminada na primeira partida). Naquele mesmo ano, ela fundiu-se com a liga “pirata”, dando origem à atual AFA, a Associação do Futebol Argentino. Assim, partidas pré-1934 de combinados da liga profissional seriam equiparadas à da seleção. Aarón Wergifker, conhecido por ser o único brasileiro que jogou pela seleção argentina, na realidade defendeu esse combinado, que usava camisa branca com detalhes verdes na manga e gola; não vestiu exatamente a Albiceleste.

Clubes fortes do amadorismo deixados de fora em 1931 foram realocados na segundona em 1937; até então, a segunda divisão profissional era só um campeonato de aspirantes dos clubes dissidentes, sem direito a acesso. Mas os marginalizados se atrofiaram. O Estudiantil Porteño, que cedera à Copa do Mundo de 1930 o meia Atilio Demaría (depois campeão com a Itália em 1934), venceu duas vezes o campeonato amador vigente entre 1931 e 1934, mas extinguiria seu departamento competitivo de futebol, assim como o Atlético Palermo – que chegou a priorizar o basquete (Ricardo González, capitão da seleção campeã mundial de 1950, era de lá) e no futebol juvenil poliu Gonzalo Higuaín.

Já o Sportivo Palermo, que cedera Juan Evaristo e Adolfo Zumelzú à Copa, jamais voltaria à elite e havia sido justamente o último clube a desafiliar-se da AFA, nos anos 80. O Sportivo Buenos Aires, de Carlos Peucelle, autor de gol na final da Copa, fechou as portas – a ida de Peucelle ao River fez a equipe de Núñez ser apelidada de Millonarios. O Sportivo Barracas, que venceria outro dos campeonatos amadores de 1931-34 e derrotara o Barcelona na Espanha em 1929, atualmente perambula entre a quarta e quinta divisões. Situação semelhante ao do Argentino de Quilmes, o primeiro clube fundado por latinos no país (daí o nome) e onde jogava o goleiro titular Juan Bottaso. Só voltaria a conhecer a elite uma única vez, em 1939, sem ganhar um só jogo.

Porteño e San Isidro, que haviam decidido campeonatos nos anos 10, voltaram-se para a prática do rúgbi, onde o segundo virou historicamente a maior força nacional. O Almagro, que tinha em Humberto Recanatini um emblema da seleção, não teria mais de quatro anos esporádicos na elite profissional. Seu rival, o Estudiantes de Buenos Aires (que revelou Ezequiel Lavezzi), primeiro time argentino a excursionar no Brasil, só teve uma participação, nos anos 70.

Embora All Boys e Nueva Chicago vez ou outra cheguem à elite, só o Banfield, dos marginalizados de 1931, conseguiu firmar-se de forma assídua. Já Rosario Central e Newell’s não eram afiliados à AAF (restrita à Grande Buenos Aires e La Plata, apesar do nome) e sim à associação rosarina, sendo admitidos diretamente na elite da AFA em 1939. Colón e Unión eram igualmente clubes da liga regional de Santa Fe, afiliando-se à AFA nos anos 40, começando na segundona.

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Demaría (Estudiantil Porteño), Evaristo, Zumelzú (ambos em pé no Sportivo Palermo) e Peucelle (Sportivo Buenos Aires) foram à Copa de 1930. E o Barcelona recebendo o Sportivo Barracas

Abaixo, republicamos texto do historiador Esteban Bekerman, feito em 2011 na ocasião dos 80 anos do ocorrido em 1931. Pusemos observações entre colchetes.

Por Esteban Bekerman – Em 1931, os clubes mais poderosos da Argentina começaram a conduzir os destinos do futebol do país. Para isso, tiveram de dar um verdadeiro golpe institucional há oitenta anos [agora, há oitenta e cinco].

Exatamente quando o River e outros enfrentam a AFA pedindo a renúncia de Julio Grondona, se completaram quarta-feira 80 anos [85] de um fato que não apenas marcou a ruptura mais clara e profunda da história do futebol argentino, mas também representou o estabelecimento de uma nova ordem em relação à sua organização.

Foi na noite de 18 de maio de 1931 que 18 clubes (Boca, Huracán, Racing, San Lorenzo, Estudiantes, Gimnasia de La Plata, River, Independiente, Platense, Vélez, Chacarita, Quilmes, Lanús, Tigre, Atlanta, Ferro, Talleres de Escalada e Argentinos Juniors) criaram a Liga Argentina de Futebol, que os manteria unidos até que a atual AFA fosse criada em 1934.

Esse surgimento de uma nova entidade dirigente do futebol argentino, em que os clubes grandes estavam acompanhados por aqueles contra quem realmente consideravam negócio jogar e não por outros muito pequenos que vinham enfrentando, trouxe consigo uma consequência que comumente é a única a ser lembrada: a chegada do profissionalismo.

Na verdade a adoção de um regime profissional – ou seja, aquele em que os clubes são obrigados a pagar um salário pelo serviço dos jogadores – foi um fato menor em comparação à mudança de comando que o futebol argentino experimentaria com esse terceiro (e último) cisma de sua história, o qual pode ser bem descrito como “O Golpe dos Grandes”.

Afinal, não era segredo para ninguém que praticamente todos os jogadores de futebol da primeira divisão cobravam quantias que, ainda que variando muito de um caso para outro, eram recebidas no escuro, fazendo com que a implantação do regime profissional não fosse efetivamente o objetivo primordial da Liga.

San Isidro (mais conhecido pela sigla CASI) e Porteño se voltaram ao rúgbi, ainda amador na Argentina. Lavezzi no Estudiantes de Buenos Aires e Higuaín nos salões do Palermo

O que os jogadores realmente queriam, e reclamaram em 1931 a ponto de fazer a greve que desencadeou o cisma, era o passe livre. Ou seja, poder ter o passe na mão e negociá-lo com quem apresentasse a melhor proposta, sem ter de jogar um ano ou dois entre os aspirantes, dependendo do caso, antes de mudar de camisa na primeira divisão, como deviam fazer desde 1929 em virtude da polêmica “Lei Candado”.

Essa era apenas uma das regras que protegiam e beneficiavam os clubes mais humildes de acordo com a regra que determinava a obrigação de ter a Asociación Amateurs Argentina de Football como foro para resolver os problemas do futebol argentino. A associação havia sido criada em 1926 pelo então presidente Marcelo Torcuato de Alvear, para solucionar o cisma do futebol argentino [entre 1919 e 1926 haviam duas ligas separadas].

Na associação, cada um dos clubes tinha um voto na assembleia, de modo que os grandes ficavam em minoria frente aos pequenos, que podiam impor sua vontade em questões como o repartimento das arrecadações ou o número de equipes na primeira divisão, que era de 36, para desespero dos grandes, que queriam um campeonato menor e mais competitivo.

Em fevereiro de 1931, um projeto do Independiente definiria como “cooperativismo absurdo” a divisão por igual que se fazia da receita das bilheterias entre clubes muito diferentes, alguns deles já em franca extinção, que, ao enfrentar um grande, não levavam nem 10% do público pagante, mas na hora da divisão levavam a mesma quantia.

Claramente, a ideia dominante na Asociación era a de que os grandes deveriam cooperar exercendo uma função quase beneficente com aqueles clubes com apelo menor, não apenas ajudando a injetar dinheiro neles, mas também convivendo com eles em um campeonato amador, o que não obrigava essas instituições humildes a ter gastos importantes para manter seu plantel.

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Argentina de branco x Uruguai de vermelho na Copa América de 1935. Eram os uniformes dos combinados profissionais (os uruguaios vivenciaram processo parecido em 1932). Wergifker, caricaturado à direita, nunca vestiu na verdade a Albiceleste

Mas não eram apenas os grandes que estavam descontentes com essa forma de frear o negócio do futebol. Como foi dito, os jogadores também manifestaram sua discordância com isso, mediante uma greve e uma manifestação em frente à Casa Rosada que ao fim lhes deu a possibilidade de ir para clubes mais fortes.

Nesse sentido, foi chave a intervenção de José Guerrico, prefeito de Buenos Aires, nomeado pelo regime que estava à frente do país desde o ano anterior. Guerrico reuniu os presidentes dos clubes em seu gabinete e lhes disse que a greve e a implantação do profissionalismo constituíam “um só problema”.

Uma vez vencida a resistência dos pequenos a aceitar um regime profissional, surgiu um outro problema: definir que clubes jogariam na primeira divisão, cujos participantes teriam de se inserir nessa nova modalidade, o profissionalismo. Para os grandes, apenas alguns estavam em condição de enfrentá-los, e propuseram o rebaixamento de várias equipes à Primera “B”.

Foi então que os clubes menos poderosos que governavam a Asociación acabaram de cavar sua cova, dizendo que aceitavam o torneio profissional que se criava, mas deviam ir “todos ou nenhum”. Era a gota d’água para que 18 clubes formalizassem sua separação daquela instituição, 80 anos [85 anos] atrás.

Sem freio para desenvolver suas potencialidades econômicas e com a supremacia política, além da esportiva, os grandes foram desde então os senhores do futebol argentino. E por isso foi tão importante aquele distante 1931. Pois para além do profissionalismo, uma nova ordem surgiu. E ainda que com o tempo a história acabasse mudando novamente, nada seria como antes.

River, San Lorenzo, Huracán, Racing, Independiente e Boca, todos campeões nos anos 20, impulsionaram a nova era. Só em 1967 uma equipe diferente seria campeã, o Estudiantes

Da Redação

Perfil utilizado para colunistas convidados a escrever no site FutebolPortenho.com.br

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