Primeira Divisão

30 anos do Boca x River da bola laranja, vitória millonaria na Bombonera com gols do veterano Beto Alonso

Poucos times tiveram um ano tão sensacional como o 1986 do River. À primeira vista, foi o ano em que o Millo, pela primeira vez, venceu a Libertadores e o Mundial, ambos no segundo semestre. Mas o primeiro teve muitos bons e históricos presságios, ofuscados fora do país por esses troféus. Nele, a cada mês, praticamente, havia uma alegria aos torcedores millonarios. O do mês de abril foi uma vitória no Superclásico. Algo gostoso por si só, mas com temperos extras. Além de ser na casa rival, com direito a volta olímpica nela, consagrou ainda mais um dos maiores ídolos de Núñez, quase aposentado: Norberto “Beto” Alonso. Feito que passados 30 anos será relembrado também em um terceiro uniforme, divulgado ontem.

Em janeiro de 1986, o River havia levado a melhor em um eletrizante 5-4 no timaço do Argentinos Jrs, que no mês anterior havia ficado a sete minutos de ser o primeiro clube argentino a obter na mesma temporada a tríplice coroa (nacional, Libertadores e Mundial). Esse ineditismo ficaria com o River, fazendo daquele jogaço uma verdadeira passagem de bastão: saiba mais. Esse resultado incomum repetiu-se já no mês seguinte, de uma forma ainda mais épica.

Foi em amistoso diante da fortíssima seleção polonesa da época. Ela vencia por 4-2 até os 37 minutos do segundo tempo e a virada foi assegurada nos acréscimos simplesmente com uma bicicleta de Enzo Francescoli, executando seu gol mais famoso para concluir roteiro que nem Hollywood filmaria sem parecer inverossímil: saiba mais. Já em março, o River assegurou com muita antecedência o título argentino. Faltavam simplesmente mais cinco rodadas depois daquela onde venceu-se por 3-0 o Vélez. Além do título em si, havia o adicional de que o clube não era campeão havia meia década, jejum que em Núñez foi inferior apenas aos dezoito anos sofridos entre 1957 e 1975 e aos seis no vergonhoso período 2008-14 (isso se desconsiderarmos o título da segunda divisão em 2012).

Em maio o campeonato já havia se encerrado, pois o calendário fora espremido em função da Copa do Mundo começar naquele mês. Quem torcia pelo River passou a desfrutar alegrias com a seleção, campeã mundial em junho tendo no River o clube mais representado, com três jogadores, todos titulares: o goleiro Nery Pumpido, o defensor Oscar Ruggeri e o meia Héctor Enrique (que sequer havia sido convocado antes do mundial). Ruggeri, ex-jogador e ídolo do Boca, havia virado a casaca em 1985 fugindo da pior crise do rival e fora involuntário protagonista do Superclásico do primeiro turno, ao ser agredido por Roberto Passucci na vitória gallina por 1-0 no Monumental: saiba mais.

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A volta olímpica. Torcedores do Boca reagem segurando as genitais e outros gestos. A torcida do River estava na arquibancada superior, que não aparece

A alegria de abril foi aquele Superclásico do segundo turno. O River havia assegurado o título havia três rodadas, mas não se inibiu de, antes da partida, realizar uma volta olímpica de provocação – o Boca também vivia jejum de cinco anos (os auriazuis faturaram em 1981 o Torneio Metropolitano e o River, o Torneio Nacional). A volta não pôde ser completada pois a furiosa torcida local atirou projéteis nos jogadores rivais, que preferiram poupar-se de uma possível desgraça. “Nos pediram que não déssemos a volta no campo do Boca, mas fizemos do mesmo jeito. Isso ficou marcado. Quando começamos a dar a volta olímpica, os gandulas eram barras do Boca, eu ia brigando”, declarou Alonso ontem ao Olé.

A provocação, antes da peleja, também partia do lado mandante: o quarentão goleiro Hugo Gatti, que já havia jogado no River, sugerira à Adidas na semana prévia que fosse usada uma bola laranja, pois uma branca se perderia entre os diversos rolos e confetes brancos a serem rotineiramente despejados pela torcida boquense. O árbitro Francisco Lamolina concordou e no primeiro tempo a bola empregada foi com essa cor incomum. No segundo, usou-se a Tango branca mesmo.

Falemos agora de Alonso. Ele foi uma espécie de Zico riverplatense, no sentido de ser um habilidosíssimo camisa 10 do River do início dos anos 70 a fins dos anos 80, período mais dourado da história do clube assim como para os rubro-negros. Como o Galinho, Beto também foi apelidado de “Pelé Branco”. Uma comparação que ganhou força em 1972, quando ele, ainda adolescente, marcou no Independiente (campeão da Libertadores naquele ano) o gol que Pelé não fizera no Uruguai na Copa de 1970, driblando com o corpo o goleiro adversário. Alonso havia sido promovido ao time principal em 1971, pelo técnico brasileiro Didi, que se notabilizou por dar chances a diversos juvenis.

Foi justamente com juvenis que conseguiu-se naquele 1971 outra vitória recordadíssima sobre o Boca, que usava seu time adulto enquanto os titulares do River se ausentariam por suspensão da diretoria (haviam estado em greve, como os do Boca, por sua vez perdoados por seu clube). Nesse contexto tão desfavorável, os de Núñez venceram por 3-1 com duas assistências de Alonso: saiba mais. Ele também fez-se presente em outro dérbi histórico, um 5-4 cheio de viradas em 1972. Ainda em 1972, estreou pela seleção e no ano seguinte seu primeiro gol por ela foi em alto estilo, de falta em vitória de 3-2 em plena Munique sobre a Alemanha Ocidental – campeã europeia e futura campeã mundial.

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O gol de Alonso que Pelé não fez (esse jogo terminaria River 7-2 Independiente!). À direita, Rodrigo Mora com a bola laranja e a nova terceira camisa

O Beto acabaria de fora da Copa de 1974 sabe-se lá o porquê, mas em 1975 foi um dos protagonistas do fim em dose dupla do maior jejum riverplatense. Sem ser campeão desde 1957, o Millo faturou o Metropolitano (o ídolo foi o vice-artilheiro do elenco) e o Nacional: saiba mais. Após o vice na Libertadores de 1976, o meia foi ao futebol francês, em tempos onde ir à Europa mais atrapalhava do que ajudava a manter-se convocado. Voltou à casa em cima da hora no fim de 1977 (chegara a ser cogitado no Internacional), em grande fase que ensejou pressão de mídia, público e governo para que César Menotti incluísse-o na convocação ao mundial, medida que indiretamente acarretaria no corte do adolescente Maradona, canhoto e camisa 10 como Alonso. Entre 1979 e 1980, ele obteve um tri seguido no River – Metropolitano 1979, Nacional 1979 e Metropolitano 1980.

Alonso angariara um currículo que o fizera sentir-se à vontade de peitar ninguém menos que Alfredo Di Stéfano quando esteve viera treinar o River em 1981. A simplesmente 48 horas antes da final do nacional, declarou à diretoria: “ele ou eu”. Estaria recuperando-se de lesão e com isso Di Stéfano não queria escalar-lhe. A diretoria preferiu manter o treinador e exilou Beto no Vélez, para a fúria da torcida, que preferia seu meia. O Millo seria campeão, mas os torcedores cantaram o nome do ídolo em toda a tarde da volta olímpica. O clube passaria a ficar longe das cabeças e até ameaçado de rebaixamento enquanto o meia ia bem no Vélez, a ponto de voltar à seleção depois de cinco anos. Voltaria ao River em 1984 e foi logo vice-campeão nacional.

Em 1987, o Beto viria a ser apenas o segundo jogador que o clube dignou-se a realizar um amistoso celebrativo de despedida, depois do mito Ángel Labruna (depois, só Francescoli e Ariel Ortega receberam a mesma consideração). Algo que retribuía, além da trajetória acima, o único título mundial (que foi o último jogo profissional de Alonso, que proporcionou o rebote para o gol do título), um dos gols nas vitoriosas finais da Libertadores de 1986 e aqueles dois de trinta anos atrás. Todo um desempenho que pôs o meia, sem dúvidas, na escalação do time dos sonhos do River na escolha do Futebol Portenho: veja aqui. O goleiro Ubaldo Fillol defendeu em entrevista à Placar em 2005 que Alonso foi o maior jogador argentino depois de Maradona.

Agora vamos ao jogo. Apesar da campanha e fase arrasadoras, foi um dérbi complicado para a Banda Roja. Francescoli, desde 1983 o novo líder técnico do clube, não jogaria, lesionado. O River postou-se na defesa e não teve muito contra-ataque, sendo fatal nas poucas chances alcançadas. Só que o Boca, apesar de demonstrar alma, chegava sem controle à meta de Pumpido.

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Lances dos dois gols de Alonso e caricatura do primeiro

Quem ditava o jogo, assim, era o veterano Alonso. Na metade do primeiro tempo, se antecipou à marcação de Jorge Higuaín (pai de Gonzalo e depois jogador do próprio River) e emendou de cabeça um cruzamento de Roque Alfaro. O millonario Alejandro Montenegro seria expulso ainda na etapa inicial, mas a defesa visitante, especialmente Pumpido, estava bem inspirada: o goleiro foi avaliado com nota 9 pela El Gráfico, enquanto Alonso ficou só com a 7. A sete minutos do fim da partida, veio o tiro de misericórdia, em cobrança de falta magistral do Beto. O polêmico Passucci quase a impediu de entrar, com a mão. Ainda assim, foi gol, tornando desnecessária a marcação do pênalti claro.

Só oito anos depois do Superclásico de la pelota naranja é que o River conseguiria nova vitória na Bombonera sobre o grande rival. Eis palavras publicadas pela El Gráfico na época:

“A intenção inicial pareceu afirmar-se atrás, administrar a bola no meio e chegar até Gatti com lançamentos ou mudanças de ritmo de Alonso. Com Saporiti semilesionado no campo e a ausência de Francescoli para encarar desequilibrando, o plantel era razoável. Apesar disso, conspiraram dois fatores: Amuchástegui arrancou bem mas foi decrescendo até terminar no inexpressivo e substituído; Morresi, obrigado e jogar algo mais adiante do habitual, se confundiu, não encontrou o lugar e precisão indispensáveis e só atinou a aportar sacrifício físico.

Com esses inconvenientes, o River optou por esperar e organizar a saída em bloco, sobretudo na segunda parte e muito mais desde a expulsão de Montenegro (…). E assim aguentou. Sem cuidar a saída nem conseguir a retenção que permite descansar os do fundo, sem desencadear o contra-ataque salvo um par de exceções. Lhe alcançou com Pumpido, o agrupamento, o esforço dos volantes e a classe distinta de Alonso em quatro ou cinco jogadas fundamentais. O futebol do River não foi o futebol do River, mas claro, às vezes está para jogar e às vezes para lutar. E nessa tarde, a tarde inesquecível, as ideais puderam menos que o coração.

Muitas coisas a distinguiram: a renda espetacular, os barras a pleno, o dilema dessa volta olímpica que o River astutamente deu, as ganas do River por manter-se erguido, as ganas do Boca (…). Ninguém poderá esquecê-la facilmente então. Será a tarde do Beto Alonso. Será a tarde de Pumpido. Será a tarde da volta olímpica odiada e querida. Será a tarde das ameaças, as pedras desde a cabeceira e Beto beijando a camisa. Será, enfim, a tarde de um clássico apaixonado e vigoroso, inquieto por si mesmo e pela história que o rodeava, vital até a fadiga, rústico, duro, dramático (…). Muitas coisas o distinguiram. Resgato uma. Esse clássico nos devolveu a sensação de bairro, de desafio espontâneo, de rua. E até me animou a ingenuidade – tenho direito – de assegurar que esses homens, esses 25 que jogaram, puseram a alma na camisa. Ao menos me pareceu”.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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