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Ídolo do Flamengo, Gaúcho foi ao Boca para substituir Batistuta

O câncer de próstata levou cedo demais o ex-atacante Luís Carlos Tófoli, o Gaúcho, atacante que mesmo sem ser tão técnico fez gols em boa quantidade e importância para o Flamengo no início dos anos 90. Protagonista das primeiras conquistas pós-Zico no Mengão, esteve no clube mais popular também da Argentina. Etapa pouco conhecida da carreira, ela existiu para suprir a ausência de ninguém menos que Gabriel Batistuta. Mas terminou fracassada. Durou só dois jogos, em 1991.

É necessário lembrar o contexto que o Boca vivia. Os auriazuis completariam em 1991 nada menos que dez anos sem ganhar algum título argentino. A última conquista havia sido o maradoniano Metropolitano de 1981, que por si só também desfez uma pequena seca nacional, de cinco anos. Maradona chegara a peso de dólar e os desmandos econômicos da ditadura elevaram na mesma época o câmbio da moeda ianque a 240%. Se em curto prazo a operação foi um sucesso, cobraria seu preço pelo resto dos anos 80, que de fato foram uma década perdida pera a apaixonada massa xeneize.

Em meio a esses dez anos, o clube esteve muito perto de ser rebaixado e de fechar as portas em 1984, ano em que de fato a Bombonera foi mesmo fechada e no qual o Boca, simbolicamente, levou a maior goleada de sua história (9-1 para o Barcelona). Uma situação tão caótica que os únicos jogadores que se destacavam a ponto de integrarem a seleção, Oscar Ruggeri e o futuro técnico palmeirense Ricardo Gareca, não fizeram cerimônia de forçar uma greve e virarem a casaca, indo ao River em 1985. Para piorar, o arquirrival venceu tudo no ano seguinte: argentino e, pela primeira vez, Libertadores e Mundial. E ainda foi a primeira vez que um clube argentino logrou aquela tríplice coroa…

Pouco a pouco, o Boca foi se reerguendo. Chegou a disputar o título nas temporadas 1986-87 e 1988-89, mas em ambas o sonho não durou até a rodada final. As alegrias se resumiam à Supercopa de 1989 e a voltas olímpicas fajutas pelas liguillas pre-Libertadores (em 1986 e em 1990). A seca parecia que acabaria em 1991. Foi quando o jovem Batistuta, que chegara em 1990 saindo dos fundos da reserva do River campeão de 1989-90, desembestou a fazer gols. A dupla com Diego Latorre fez muito barulho, com direito a um 6-1 no Racing do goleiro Sergio Goycochea no auge do prestígio e a uma virada com bicicleta para 4-3 de jogo que perdia por 3-1 para o River na Libertadores.

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À esquerda, imagem que sintetiza os anos 80 do Boca. À direita, a esperança: um dos três gols que Batistuta fez em Goycochea em um 6-1 no Racing

Gaúcho e Boca se cruzaram naquela Libertadores de 1991 (o Flamengo esteve nela como vencedor da Copa do Brasil de 1990, o Boca como vencedor da liguilla de 1989-90). O brasileiro vinha fazendo seu nome no Rio da Prata: marcara duas vezes em um 4-0 no Nacional – o clube uruguaio era bem mais temido, tendo sido campeão mundial sobre o PSV de Romário apenas três anos antes. Gaúcho era o artilheiro rubro-negro no torneio, com direito a marcar todos os gols flamenguistas em um 3-2 fora de casa no Táchira, já pelas oitavas-de-final. Também vazara o Corinthians dentro de São Paulo (em um 2-0) e deixara outro no Táchira nos 5-0 no jogo da volta.

Batistuta, ainda um iniciante, se tornava um atacante seguro. A ponto de marcar os dois gols dos 2-0 sobre o River em pleno Monumental, resultado que provocou a proeza do arquirrival ser eliminado mesmo com três dos quatro componentes do grupo conseguindo classificação. E se Gaúcho já ficava conhecido nas fronteiras, Bati fazia o mesmo. Nas oitavas-de-final, marcou três vezes nas partidas contra o Corinthians. As quartas-de-final opuseram então Boca e Flamengo, cada um buscando quebrar jejuns incômodos de dez anos (internacional, no caso dos cariocas).

No Maracanã, Batistuta não evitou a derrota e Gaúcho (junto ao veterano Júnior na imagem que abre a matéria) deixou o dele primeiro com sua jogada característica, os potentes cabeceios. Mas Batigol oxigenou os visitantes no fim, convertendo um pênalti ainda questionado pelos flamenguistas de mais memória para descontar para 2-1 a derrota argentina. Mas, na Bombonera, não teve jeito: Batistuta, novamente de pênalti (também questionado pelos cariocas, sempre a alegarem que a bola bateu na coxa e não na mão do zagueiro rubro-negro), abriu os trabalhos aos 24 minutos.

Marquinhos teve um gol de empate relâmpago anulado por impedimento inexistente, e não menos fulminante foi o 2-0 do Boca: um Latorre a galope em contra-ataque ampliou já aos 28. Aos 8 do segundo tempo, o violento Blas Giunta e Wilson Gottardo foram expulsos juntos, deixando cada time com dez. Já perto do fim, o Boca matou o jogo em espaço de três minutos: Latorre fez o 3-0 aos 32 e aos 35 a arbitragem expulsou mais um visitante – o próprio Gaúcho. O sonho auriazul, porém, acabaria na fase seguinte, em tumultuada semifinal com o Colo-Colo (com os hermanos passando a ter razões de reclamar de arbitragem caseira na “batalha de Santiago”), futuro campeão.

Gaúcho (e Júnior) contra o Boca na Libertadores de 1991, no Maracanã

Restava ao Boca centrar fogo no desjejum caseiro. A partida seguinte à dolorida eliminação continental foi justamente aqueles 6-1 no Racing, com Batistuta marcando três vezes no astro Goycochea. O Boca, que disputava àquela altura com o próprio Racing a liderança, terminou vencendo o Clausura – e invicto. Ganhou, mas ainda não havia levado nada. Pelo regulamento, a temporada 1990-91 ainda teria título único. A inovação era que os líderes de cada turno, caso fossem times diferentes, fariam finais.

Só que o sucesso de Batistuta e Latorre acabou se voltando contra o próprio Boca: ambos foram chamados para a Copa América, que se realizaria na mesma época dessas finais argentinas. Foi ali que ambos estrearam pela seleção. A diretoria auriazul, para repor aquela dupla artilheira, buscou os empréstimos de Gerardo Reinoso (ex-River e Independiente, estava na Unión Española) e do goleador flamenguista. O adversário das finais era o Newell’s do iniciante técnico Marcelo Bielsa e de muitos outros futuros técnicos das grandes ligas europeias (Eduardo Berizzo, Mauricio Pochettino, Gerardo Martino).

Os rosarinos tinham engasgado a final da liguilla de 1986, na qual derrotaram com dois gols de Tata Martino o Boca na Bombonera por 2-0 mas inacreditavelmente perderam de virada com um homem a mais por 4-1 em casa – e os gols da derrota vieram todos na meia hora final. Tiveram a forra, em revanches nas quais o desempenho do brasileiro esteve longe de agradar. “Não demonstrou nada” foi a sucinta definição em sua ficha estatística no completíssimo site Historia de Boca.

Em jogos oficiais, apenas um brasileiro jogaria ainda menos pelos xeneizes: Edílio, prata-da-casa que esteve uma única vez, um traumático 7-2 para o Rosario Central em 6 de julho de 2003 – e ainda assim em ocasião em que o time inteiro, inclusive o técnico Carlos Bianchi e os reservas imediatos, esteve de folga após vencer a Libertadores dias antes; o treinador foi Oscar Regenhardt e, dos juvenis goleados, somente Matías Silvestre, Jonathan Fabbro e sobretudo Mauro Boselli teriam carreira de relevo. Edílio substituiu Boselli no intervalo, com a partida já em 4-0, e trilharia sobretudo por clubes da segunda divisão argentina, além de ter uma passagem igualmente inócua pelo San Lorenzo.

Registros raros de Gaúcho pelo Boca

Voltando a Gaúcho, o blog Imborrable Boca foi mais detalhista que o Historia de Boca: “O dele foi inconcebível. Jamais entendeu para o que o haviam trazido. Talvez acreditou que vinha jogar duas partidas normais. Mas, em semelhantes batalhas que foram essas finais, o brasuca se escondia mais que torcedor do River em Patricios e Martín García [esquina do bairro de La Boca]. Não tocava uma bola. Não corria. Não cabeceava os tiros de meta. Nem notícias. Imperdoável. Tão assim foi a coisa que, na revanche em La Bombonera, e com o resultado ainda em 0-0, o Maestro Tabárez [o consagrado treinador o Uruguai era o então técnico boquense] o defenestrou. E Gaúcho deixou o lamaçal que era o campo de jogo nessa tarde limpinho. Nem uma manchinha de barro nas meias. Todo mundo sabe que aos nascidos nas terras de Pelé lhes custa jogar na Argentina. E se ainda por cima é no inverno, pior. Mas isso foi demais. Sobretudo para uma torcida que exigia deixar a pele nessas finais”.

Gaúcho jogou só aquelas duas partidas, em um intervalo de três dias. Em 6 de junho, o Boca perdeu pelo placar mínimo em Rosario. E, justiça seja feita, o time todo foi fraco: só um jogador teve nota superior à 5 dado pela revista esportiva El Gráfico ao brasileiro: o inábil Diego Soñora levou um 6, ao passo que xodós da torcida feito Enrique Hrabina, Carlos Tapia e Adolfo Graciani foram avaliados com notas inferiores. No dia 9, o Boca devolveu o escore na Bombonera – gol, por sinal, do outro reforço fugaz, Reinoso, já no finzinho.

Se Reinoso saiu honrosamente, o brasileiro foi substituído com a partida da volta ainda em 0-0. Ali sim, foi tido como dos piores, com nota 4, em contraponto a atuações elogiadas da ampla maioria dos colegas. Na imagem abaixo, pode-se ver as notas com as quais a El Gráfico avaliou todos os jogadores presentes naquelas finais. Para piorar, o Boca, apesar de ter atuado bem em conjunto e de jogar em casa, perderia nos pênaltis a taça – e Gaúcho, como consequência, sairia como o grande rosto daquela decepção, mesmo que nem chegasse a chutar alguma cobrança.

Latorre até contaria como soube: “foi depois de um treino com a seleção, fiquei com o Bati escutando os pênaltis pelo rádio. Terminamos ajoelhados, não podíamos acreditar”. Indagado sobre o que faria se pudesse escolher novamente entre o Boca e a seleção na época, Latorre respondeu que “escolheria o Boca, porque era coroar o esforço de seis meses”. Latorre, inclusive, atuou muito mal no compromisso que a seleção teve no dia seguinte na Copa América; foi substituído no intervalo de vitória magra sobre o Chile e praticamente encerrou seu curto ciclo com a seleção principal.

À direita, as notas das finais. Em destaque, desespero do zagueiro Juan Simón (notem o barro nas pernas e meias…), que descreveu a derrota como sua grande frustração: embora ex-jogador do Newell’s, torcia pelo Rosario Central. “Ao longo da semana teria uma crise nervosa e de choro”, afirma a legenda

Batistuta, por sua vez, seria o grande destaque da conquista da seleção naquela Copa América de 1991 (curiosamente, a quebrar outro longo jejum: a Argentina, em sua maior seca continental até hoje, não vencia desde 1959 o torneio). Isso, por outro lado, lhe rendeu só mais alguns jogos pelo Boca diante dos holofotes que atraiu. Bati se despediu do clube e do futebol argentino na liguilla da temporada 1990-91, com nova decepção, aliás: o San Lorenzo o derrotou na decisão. Dali ele iria à Fiorentina junto de Latorre e de outro vencedor daquela Copa América, o huracanense Antonio Mohamed – ainda que estes dois terminassem emprestados pelos italianos ao próprio Boca tão logo chegaram a Florença, diante das poucas vagas a estrangeiros (reforçada pela ineficácia futebolística de passaporte europeu em tempos pré-Lei Bosman).

Dado curioso sobre Gaúcho é que recobrou a boa fase contra argentinos tão logo voltou à Gávea: no restante daquele 1991, anotou em Buenos Aires o segundo gol do 2-0 do Flamengo sobre o Estudiantes pelas oitavas-de-final da Supercopa (o extinto torneio que reuniu entre 1988 e 1997 somente campeões da Libertadores); os platenses utilizaram para a partida o estádio do Huracán, em jogo cuja comemoração ficaria marcada pelo falecimento dali a uns dias do argentino ídolo flamenguista, Narciso Doval. Nas quartas-de-final, Gaúcho deu suas únicas alegrias à torcida do Boca, mas em vão: mesmo marcando os dois gols cariocas no 2-1 sobre o River no Maracanã e convertendo sua cobrança na decisão por pênaltis, o Millo soube prevalecer na marca do cal.

No ano seguinte, Boca e Gaúcho, separados, ficariam felizes: o atacante foi importante no primeiro Brasileirão pós-Zico, título sobre o rival Botafogo, e que por muito tempo fez o Flamengo ser considerado o único pentacampeão brasileiro; o atacante, aliás, até voltaria a marcar sobre o Estudiantes em novo triunfo pela Supercopa, em 1-0 em casa pelas quartas-de-final da edição de 1992. Já o Boca quebraria o incômodo jejum nacional, faturando o Apertura 1992 – a partir da temporada seguinte àquela dolorida derrota para o Newell’s, a AFA definira que cada turno valeria um título em separado. Alívio que não mudou muito o status de Gaúcho na Argentina: “religiosamente vaiado, o Gaúcho é palavra não grata em Brandsen 805 [endereço da Bombonera]”, completou o Imborrable Boca.

Muito do que contamos aqui já foi exposto em outros Especiais. Clique aqui para ver a história do ponto de vista do campeão Newell’s. E confira abaixo mais sobre a longa seca então vivida pelo Boca (e descanse em paz, Gaúcho!):

30 anos do pior momento do Boca

30 anos de uma icônica agressão: Passucci x Ruggeri em um Boca x River

Liguillas pré-Libertadores, fonte de boas anedotas do futebol argentino

25 anos de um Superclássico épico: pela Libertadores, Boca vira 3-1 para 4-3 com bicicleta no fim

Há 20 anos, o Boca encerrava seu maior jejum

Marcelo Bielsa e Newell’s Old Boys: uma era que terminou há 20 anos

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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