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35 anos de um épico: a bicicleta de Francescoli que virou para 5-4 jogo perdido por 4-2

“Sim, está bem, foi um bonito gol, não vamos negar. Eu o gritei assim por isso, mas sobretudo porque era o triunfo do River em um jogo que tivemos que virar contra uma grande equipe. Porque embora tenham faltado Boniek e Żmuda, Polônia é coisa séria. Mas embora pareça mentira, eu gostei mais do segundo do River, o meu primeiro. Digo porque foi um gol de equipe, mais elaborado, não sei… nos cansamos de fazer tabelas”, declararia um humilde Enzo Francescoli sobre aquela noite mágica de 8 de fevereiro de 1986 em Mar del Plata. É fácil dizer que foi cinematográfica, mas nenhum roteiro hollywoodiano saberia contar de forma original uma história contra “malvados comunistas” como aquela sem parecer inverossímil, piegas, clichê ou típica fake news de um gabinete do ódio. Mas realmente aconteceu da forma que detalharemos (revisando nota originalmente publicada em 2016, nos 30 anos do feito): duas vezes à frente do placar, o River perdia por 4-2 a sete minutos do fim. Conseguiu virar para 5-4. Com a vitória saindo de bicicleta. Nos acréscimos.

O mais incrível é que apenas duas semanas antes os millonarios já haviam arrancado o mesmo resultado de 5-4 em outra partida alucinante, curiosamente também contra um time de vermelho. Contamos aqui: foi contra o Argentinos Jrs recém vice-campeão mundial, um jogaço que simbolizou uma passagem de bastão – o oponente quase havia se tornado em 1985 o primeiro clube argentino a vencer em um mesmo ano o campeonato nacional, a Libertadores e o Mundial. Tal ineditismo seria alcançado em 1986 por aquele River, até então ainda virgem de Libertadores. Bons presságios à torcida apareceram naquele verão.

Torcedor do Flamengo: seu ano de 1981 perde feio para o 1986 riverplatense. Além de uma tríplice coroa mais gorda (faltou aos rubro-negros o Brasileirão), a torcida do Millo ainda saboreou o título mundial de seu país na Copa (enquanto o Brasil perdia o Mundialito) com o clube de Núñez fornecendo mais titulares que qualquer outro, três – o goleiro Nery Pumpido e o xerife Oscar Ruggeri inclusive atuaram em todos os minutos da Albiceleste no México. Desfrutaram também de uma sequência invicta marcante perante o rival da vida (ao passo que o Urubu chegou a perder duas das três finais do Estadual com o Vasco, mas sagrou-se campeão beneficiado pelo regulamento e por invasão de campo), incluindo na campanha da própria Libertadores; e, antes, aquela que por oito anos foi a última vitória gallina na Bombonera – com dois gols de um ídolo dos anos 70 que se aposentaria em um ano, Norberto Alonso, o Zico do River.

Essa sequência no Superclásico já havia começado antes da partida histórica de trinta anos atrás. Desde os anos 60, os grandes times argentinos travavam um tradicional troféu de pré-temporada em Mar del Plata, a Copa Ouro. O ano de 1986 foi, curiosamente, a primeira vez em que o troféu foi disputado duas vezes. Em um primeiro triangular, em janeiro, a Banda Roja empatou com o Boca e derrotou o Racing, que depois empataram entre si. O campeonato argentino de 1985-86 havia sido pausado, sendo retomado no fim do mês. A despeito disso, Boca e River travaram já em fevereiro um novo triangular, agora contra a Polônia.

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O terceiro gol polonês, que colocou os visitantes na frente: Wójcicki conclui antes da chegada de Ruggeri e Pumpido

Era uma época poderosa das seleções do Leste Europeu. Se dominavam as Olimpíadas beneficiadas pelo “amadorismo de Estado”, sabiam se destacar também em condições mais parelhas, em competições FIFA. A Tchecoslováquia havia vencido a Eurocopa de 1976. Uma Hungria longe do destaque de 1954 se classificou para três Copas seguidas (suas últimas) entre 1978 e 1986. A URSS iria a quatro seguidas (além de ser vice na Eurocopa de 1988) e via os Dínamos de Kiev (duas vezes) e de Tbilisi erguerem a Recopa Europeia. Alemanha Oriental e Romênia punham clubes em finais europeias também. Mas nenhuma nação do Pacto de Varsóvia conseguiu resultados tão expressivos como a maravilhosa geração da Polônia.

Os polacos, como os soviéticos, também emendaram quatro Copas, sempre passando de fase e chegando ao bronze em 1974 e 1982. Tinha em Zbigniew Boniek um destaque na liga mais importante do mundo, a italiana. Mas sabiam se virar sem o ruivo bigodudo: ainda sem ele, já havia sido bronze em 1974. E sem ele e os outros que atuavam no exterior (Józef Młynarczyk, do Porto, Stefan Majewski, do Kaiserslautern, e Władysław Żmuda, da Cremonese), vieram à Argentina para ainda assim dar muito trabalho à dupla principal do país que conquistaria o mundo dali a alguns meses.

A segunda Copa Ouro de 1986 começou com os europeus enfrentando o Boca. O fato do maior destaque auriazul ter sido o goleiro – e quarentão – Hugo Gatti, talvez em sua última grande performance contra um time forte, demonstra como o domínio foi vermelho. Nem toda a propaganda anticomunista em voga na época foi suficiente para impedir que dois jogadores do Boca fossem expulsos e aos polacos fosse concedido um pênalti. Dariusz Dziekanowski converteu-o, a sete minutos do fim. Foi o único gol.

Três dias depois, então, foi a vez de nove jogadores da Polônia na Copa de 1986 enfrentarem o então líder do campeonato argentino de 1985-86: Jacek Kazimierski; Krzysztof Pawlak, Roman Wójcicki, Kazimierz Przybyś, Waldemar Matysik; Andrzej Buncol, Jan Urban, Krzysztof Baran, Ryszard Tarasiewicz; Dariusz Dziekanowski e Mirosław Okoński, treinados por Antoni Piechniczek, que só não levaria ao México os jogadores Baran e Okoński. Nada que assustasse o Millo – que por aquele torneio de verão já havia aplicado em 1979 um 4-1 na então campeã europeia Tchecoslováquia e vencido também a Hungria, em 1981, jogo lembrado por um gol de Daniel Passarella em petardo de 45 metros. Especialmente quando a escalação da casa alinhava Pumpido; Jorge Gordillo, Jorge Borelli, Ruggeri, Alejandro Montenegro; Héctor Enrique, Américo Gallego, Alonso; Luis Amuchástegui, Francescoli e Roque Alfaro.

O segundo gol de Francescoli e o terceiro do River, desencadeando a reação milagrosa no fim. E a comemoração do técnico Veira ao apito final

Um dos amistosos mais lendários da história, contudo, não foi frenético do início ao fim como se poderia pensar. O primeiro tempo não entusiasmou muito o público de 30 mil pessoas. Foi só no finzinho da etapa inicial que saiu o primeiro gol, de Beto Alonso, em falha do goleiro Kazimierski. O veterano ídolo, curiosamente, só atuou por conta da lesão de Claudio Morresi, visto como mais veloz. A revista El Gráfico, à parte do protagonismo óbvio do uruguaio, achou um espaço para se derreter por Alonso: “contra a Polônia, voltou El Beto. E com ele, a magia de sua canhota exata para o toque luxuoso. Curto ou largo. Sempre ao companheiro melhor posicionado. Voltou El Beto. E com ele, a inteligência para fazer a pausa justa e sacar o estilete mortal. E com ele a fineza para aplicar uma caneta ou dar curvado até o arco”.

A coluna seguia: “e com El Beto, o River mudou seu ritmo, se fez um pouco mais lento. Isto é bom ou é mal? Em si mesmo, nem uma coisa nem outra: é distinto. El Bambino [apelido do jovem técnico Veira] prefere Morresi: e vem tendo a valentia de dizer isso há muito tempo, quando nem sequer estava o aval dos resultados. O torcedor prefere Alonso e não o compara com ninguém, nem sequer com Morresi. O torcedor o fez ídolo. E os ídolos são incomparáveis. Absolutamente incomparáveis”. E incomparável mesmo também foi o segundo tempo, algo raríssimo de se ver. Piechniczek promoveu duas alterações no intervalo, substituindo Kazimierski (avaliado com uma nota 3 pela revista El Gráfico) por Józef Wandzik (titular contra o Boca, onde recebera nota 7) e Okoński por Andrzej Zgutczyński.

Logo aos três minutos, os visitantes reagiram. Dziekanowski voltaria a deixar seus registros na Argentina, acertando uma cobrança de falta na meia-lua em que a bola ainda tocou na trave esquerda de Pumpido, um lance bonito que rendeu muitos aplausos do público. Que fez muito mais barulho cinco minutos depois: Francescoli triangulou com Alfaro e, quase sem ângulo e equilíbrio, encobriu a saída de Wandzik. Só que no minuto seguinte os polacos empataram. Héctor Enrique (o outro millonario que embarcaria com a seleção à Copa; caberia até a ele a honra de entregar a bola para Maradona driblar meia Inglaterra) precisou salvar com a mão quase em cima da linha após o goleiro Pumpido ficar batido no lance.

Os argentinos reclamaram muito ao compatriota Abel Gnecco, o juiz, de que o pênalti merecia ser anulado pela jogada polonesa ter se iniciado através de falta em Gallego. Gnecco declarou nada ter visto e manteve o apito. Dziekanowski converteu a penalidade, somando seu terceiro gol no torneio. Em oito minutos de segundo tempo, as redes já haviam balançado três vezes. E logo viriam mais dois em espaço de cinco minutos, ambos dos europeus.

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O antes e o depois do gol da vitória

Primeiramente, Dziekanowski, na ponta direita, recuou a Buncol, que cruzou. Pumpido espalmou para o outro lado, mas não contava que um oponente fosse junto e, de cabeça, remetesse a bola à pequena área. O goleiro ainda teve jogo de cintura para pular de volta, mas Wójcicki se antecipou e empurrou ao gol, virando o jogo aos 23 minutos e recebendo muitos abraços. A Polônia então promoveu sua última alteração aos 26, com o defensor Waldemar Waleszczyk entrando no lugar de Dziekanowski. Waleszczyk seria o camisa 16 incapaz de impedir a obra-prima da noite e, dos reservas acionados, seria o único a não carimbar passaporte ao México – ao contrário de Jan Furtok e Włodzimierz Smolarek (pai de Euzebiusz), que puderam ir à Copa embora não saíssem do banco naquela peleja em Mar del Plata (do lado argentino, os reservas não usados foram os jovens Sergio Goycochea e Néstor Gorosito).

O 4-2 veio aos 28, em outro golaço. Pumpido saiu da pequena área e dividiu a bola, afastando-a uns bons metros. Só que ela sobrou para Buncol. Que, antes da meia-lua, arriscou um longo toque sutil que encobriu Pumpido e outros dois riverplatenses para depois ser erguido euforicamente pelos vermelhos e receber ovações marplatenses. Mas então o árbitro Abel Gnecco viu necessidade em expulsar três atores do espetáculo: Przybyś viu o vermelho aos 31 do segundo tempo, e no minuto seguinte ele foi seguido pelo colega Zgutczyński e por Borelli. O técnico Veira de imediato reenergizou o ataque do Millo, colocando aos 33 o recém-contratado Ramón Centurión (ex-Boca e sem parentesco com o ex-sãopaulino) no lugar de Alfaro.

Antes de converter-se no futuro artilheiro do elenco vencedor da Libertadores em 1986, Centurión mostrou logo serviço ali: correu pelo meio em um contra-ataque e, já na grande área, tocou de calcanhar para Héctor Enrique. El Negro Enrique até foi derrubado. Mas a bola espirrou para a esquerda, onde estava um Francescoli livre. Novamente sem ângulo, o uruguaio voltou a encobrir a saída de Wandzik. Veira foi para cima: aos 40 minutos, trocou zagueiro Gordillo pelo atacante Jorge Villazán. Também uruguaio, o próprio Villazán foi outro reserva com estrela, ao cobrar um escanteio já no minuto 45 bem aproveitado por Centurión: este se antecipou a Wandzik e, de costas para o gol, emendou com o cocuruto para empatar e deixar os poloneses incrédulos.

O 4-4 relâmpago já era uma façanha. Tamanha que Veira tratou de voltar a fortalecer a retaguarda ao colocar em seguida o defensor Carlos Karabin no lugar do ponta Amuchástegui. Mas a narração antevia: “El Bambino quer ganhar. E ainda há tempo”. E Veira, em referência àquele 5-4 no Argentinos Jrs dias antes, de fato declararia: “pensava que um jogo assim não se daria novamente nem em dez anos. E se repetiu”. Já nos descontos, Américo Gallego (capitão e veterano da Copa de 1978), em cobrança curta de falta, entregou a Alonso, que pela direita mandou um cruzamento. El Cabezón Ruggeri, de cabeça, dividiu com um polaco e mandou a bola por sobre a marca do pênalti.

Francescoli saudado no vestiário pelo presidente riverplatense Santilli

Francescoli adorava ensaiar bicicletas a ponto de o temperamental Gallego admitir após a partida que “a verdade é que nos deixava um pouco fartos com essa jogada”, embora também exclamasse à revista El Gráfico que “este gol é preciso colocar em todas as vitrines do país para que não haja um só cara que não o veja”. Enzo, que falhara em tentativas prévias recentes contra Huracán e San Lorenzo conforme ele próprio recordaria à nota pós-jogo preparada pela El Gráfico, não teve dúvidas.

“Eu poderia ter cabeceado, mas como não sou, digamos, um grande cabeceador, preferi matar com o peito e aí, nesse segundo que tem o jogador para resolver quando está na área, decidi me colocar de costas ao goleiro e sacar a chilena“, como os argentinos denominam o chute de bicicleta. Wandzik mal reagiu para o gol mais famoso de El Príncipe – e levaria até uma nota 4 da revista El Gráfico. A vibração foi apoteótica, com todo o time millonario disparando em êxtase ao banco de reservas; a imagem do primeiro vídeo abaixo retirado do YouTube, que retrata apenas o gol, parada, retrata bem. Abaixo dele, um vídeo com todos os gols daquele histórico segundo tempo. O lance também foi escolhido para finalizar uma coletânea das jogadas de Francescoli ao som da música Inmenzo, uma belíssima homenagem que faz um trocadilho com o nome do craque uruguaio.

Quem estava lá sabia muito bem que presenciava uma partida única – com a reportagem da revista El Gráfico registrando depoimentos como “não pode ser, não pode ser, esse cara não existe” de um outro repórter a “algo digno de um fenômeno do futebol mundial como é Enzo”, declarado por Ruggeri, passando por “se alguém tem o videocassete, compro cem”, do técnico Veira; e também por duas anotações do próprio redator, Aldo Proietto: a informação de que “[o presidente riverplatense Hugo] Santilli assegura de que se faz um igual no Mundial do México, o River se salva para toda a vida”. E a conclusão de que “eu a vi, eu a desfrutei. E ainda não a explico. As obras de arte não têm explicação”.

Afinal, que outro jogo amistoso se encerraria com torcedores invadindo o campo para comemorar?

Aconteceu ali, assim como aconteceu toda essa história.

Depois de tudo aquilo, a segunda Copa Ouro não escaparia de Núñez: com gol de Gorosito, o River bateu o Boca pelo placar mínimo. E, mesmo com a venda de Francescoli ainda antes da Libertadores, nada mais escaparia em 1986.

https://twitter.com/MuseoRiver/status/1358885605728526342

https://twitter.com/MuseoRiver/status/1358809508739489794

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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