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Desempates no futebol argentino: uma longa história

Desempate de 1968: a mão na bola de Gallo inacreditavelmente não percebida pelo árbitro Guillermo Nimo
Desempate de 1968: a mão na bola de Gallo inacreditavelmente não percebida pelo árbitro Guillermo Nimo

Nos próximos dias a B Nacional assistirá a dois desempates na luta pelo acesso à primeira divisão. Em uma chave, Huracán e Atlético Tucumán disputam a última vaga na elite. Na outra teremos um triangular entre Gimnasia Jujuy, Aldosivi e Nueva Chicago valendo outras duas vagas. Um jogo e um triangular de desempate ao mesmo tempo é algo inusitado. Mas a tradição argentina de não usar critérios de desempate para definir títulos, acessos e descensos é longuíssima.

Na verdade o primeiro campeonato argentino foi decidido numa partida desempate. Era o ano de 1891, e o St. Andrews e o Old Caledonians terminaram a competição com a mesma campanha: seis vitórias, um empate e uma derrota. A possibilidade de um empate entre duas equipes não havia sido prevista no regulamento, de forma que ambos os clubes foram declarados campeões. Mas só havia dinheiro para comprar medalhas para uma equipe, de modo que acabou ocorrendo um jogo extra para definir com quem elas ficariam. O St. Andrews venceu por 3 a 1, sendo hoje visto como o primeiro campeão de futebol da Argentina.

Ao longo das décadas seguintes foram muitos os desempates tanto no topo como na base da classificação. Talvez o mais famoso tenha sido o triangular que definiu o Nacional de 1968. Na última rodada, River Plate e Racing chegaram empatados na liderança e se enfrentavam na última rodada. O vencedor levaria o título. Mas os dois gigantes ficaram no 1 a 1. Pior, foram alcançados pelo Vélez Sarsfield, que bateu o Huracán por 2 a 0. Três equipes definiriam o título num desempate histórico: o Racing sem saber que estava prestes a iniciar um jejum de 34 anos sem títulos de primeira divisão; o River Plate que já amargava 11 anos de jejum; e o Vélez em busca do primeiro título de sua história.

As três partidas foram disputadas em dezembro de 1968 na velha cancha do San Lorenzo. O River bateu o Racing por 2 a 0, e chegaria ao título se vencesse o Vélez. Mas a partida terminou empatada em 1 a 1. O jogo entrou para a história por um crasso erro do árbitro Guillermo Nimo, que não viu uma mão de Gallo, defensor do Fortín, que salvou sua equipe de sofrer o gol. Com isso, graças ao fato de ter a vantagem do empate em pontos, já que foi a equipe que mais fez gols ao longo do campeonato, bastava à equipe de Liniers vencer a já eliminada Academia. Para o River, só restava secar o Vélez. Mas não adiantou. Com três gols de Wehbe, a equipe comandada por Manuel Giúdice venceu por 4 a 2 e chegou ao primeiro título de sua história.

No século XXI, houve vários desempates. Talvez o mais famoso tenha sido o que deu ao título do Apertura 2006 ao Estudiantes, graças à uma monumental bobeada do Boca Juniors. Comandados por Ricardo Lavolpe, os xeneizes seriam campeões se ao menos empatassem em uma das duas últimas rodadas, mas perderam ambas (uma, de virada para o Lanús) e foram alcançados pelos Pinchas. No desempate os boquenses ainda saíram na frente, mas tomaram a virada, no campo do Vélez. Palermo, que havia sido ídolo nos alvirrubros, abriu o placar para o Boca nos primeiros minutos, mas Sosa e Pavone marcaram no segundo tempo, dando um título que o conjunto de La Plata não alcançava há mais de 20 anos.

Outro desempate muito lembrado é o do Apertura 2008. Naquele torneio, um empate sem gols do Boca contra o Gimnasia na penúltima rodada deu a Tigre e San Lorenzo a chance de alcançar o conjunto dirigido por Carlos Ischia na ponta. Os três venceram na última rodada, forçando um triangular desempate. A primeira partida, no campo do Vélez, foi a vitória do San Lorenzo (que sonhava em ser campeão no seu centenário) sobre o Tigre (que por sua vez sonhava com um título inédito até hoje) por 2 a 1. Em seguida, o Boca venceu o Ciclón por 3 a 1 no Cilindro. Graças ao gol de Pochi Chavez já nos descontos, os xeneizes entraram em campo contra o Tigre podendo perder por um gol para levar a taça. E foi exatamente o que ocorreu: o Matador venceu pela contagem mínima e os auriazuis fizeram a festa.

Esse foi o último desempate valendo título que tivemos até o momento na Argentina. Mas houve outros valendo acessos e descensos. Em 2011, o Huracán foi rebaixado após perder para o Gimnasia La Plata por 2 a 0 (ao fim o Lobo também caiu, após perder para o San Martín na extinta Promoción). Na metade de 2014, o mesmo Huracán foi derrotado pelo Independiente em um desempate pelo acesso à elite. E o Atlético Rafaela se salvou na primeira divisão ao vencer o Colón em um desempate contra o descenso. Confira abaixo desempates já ocorridos na elite:

1891: o já citado entre Saint-Andrew’s e Old Caledonians. Saiba mais.

1897 e 1898: maior potência argentina no século XIX, o Lomas Athletic, hoje de futebol desativado, ganhou estes dois campeonatos após tira-teimas com Lanús Athletic (extinto) e Lobos Athletic (hoje, amador), respectivamente, com quem estava igualado na dianteira. Saiba mais.

1911: Maior potência argentina no início do século XX, o Alumni chegou a seu décimo e último título com um 2-1 no co-líder Porteño. Estes dois clubes ainda existem, mas desativaram seu futebol (no caso do Alumni, aquele torneio foi exatamente o último que disputou) pouco depois e hoje se dedicam ao rúgbi, como o Lomas.

1912: Independiente e Porteño ficaram igualados em pontos e havia previsão de que a taça seria do Independiente. Mas por ter enfrentado um time reserva na última rodada e assim goleado, os rojos, naqueles tempos de cavalheirismo ao extremo, fizeram questão de um tira-teima. E se deram mal: insatisfeitos com a anulação de um gol, os quase campeões se retiraram de campo com o jogo empatado em 1 a 1. A federação deu o título ao Porteño. Seria o primeiro título do Independiente, que precisou esperar dez anos para enfim levantar a taça. Saiba mais.

1915: o Racing foi hepta seguido, ainda um recorde, entre 1913 e 1919. O título que deu mais trabalho foi de 1915, que precisou de um 1-0 no desempate com o San Isidro, outro clube sem futebol e focado no rúgbi, no qual é o maior campeão do país.

1923: Nos anos 20, Boca e Huracán faziam um clássico pois eram as principais equipes de uma das associações argentinas: por sete anos teve-se duas. Na que disputavam, o Boca ganhou quatro e o Huracán, três. Em 1923, o desempate foi necessário e deu Boca 3-0. Na outra liga, os dois últimos cairiam e na penúltima colocação ficaram empatados Quilmes, Ferro Carril Oeste e Argentino del Sud, que travaram um triangular. O Quilmes perdeu os dois jogos, mas acabou poupado por uma virada de mesa.

1925: o Huracán foi campeão precisando do desempate com o Nueva Chicago. O jogo terminou em 1-1 e o Chicago não aceitou prorrogação, perdendo nos tribunais a taça. Até hoje o clube de Mataderos não foi campeão da elite…

1931: neste ano os clubes mais populares fizeram outro cisma, criando o campeonato profissional. Até 1934, a associação argentina reconhecida pela FIFA era a amadora (por isso só amadores foram à Copa de 1934) e no torneio dela Almagro e Estudiantil Porteño ficaram nos 23 pontos. Deu Estudiantil, de futebol desativado hoje e onde jogava Atilio Demaría, campeão da Copa 1934, mas pela Itália. O Almagro até hoje não foi campeão de elite alguma.

1932: River e Independiente se igualaram na ponta e no desempate, melhor aos Millonarios, com um 3-0 no campo do San Lorenzo. Foi o primeiro título profissional do River. Saiba mais.

1949 e 1950: anos de desempate contra o rebaixamento, em ambos envolvendo o Huracán. Em 1949, só caía o último e ele e o Lanús terminaram igualados embaixo. Foram necessários quatro jogos, pois houve inicialmente uma vitória para cada lado seguida de empate até o Huracán vencer por 3-2 no último. Em 1950, o penúltimo também cairia e nessa posição ele se igualou com o Tigre. Venceu os dois jogos e só seria enfim rebaixado em 1986. Saiba mais.

1951: Racing, então bicampeão, e o surpreendente Banfield se igualaram na ponta e precisaram de dois jogos-desempate, ambos no campo do San Lorenzo, após o primeiro ficar no 0-0. No segundo, deu Racing 1-0, no primeiro tri seguido do profissionalismo. O Banfield só seria campeão em 2009.

1968: o já citado triangular que deu o título ao Vélez. Saiba mais.

1977: os três últimos do Metropolitano cairiam e Platense e Lanús somaram os mesmos pontos na antepenúltima colocação. No desempate, após um 0-0, o Platense venceu por 8-7 nos pênaltis.

1982: Unión e Quilmes duelaram contra a penúltima colocação do Torneio Metropolitano, que rebaixaria. Os de Santa Fe venceram o oponente, que naquele mesmo ano havia sido vice-campeão do Torneio Nacional (!).

1987: os dois times de pior promedio cairiam. Temperley e Platense se igualaram em penúltimo após polêmica vitória de virada do Platense no River em pleno Monumental após estar perdendo por 2 a 0. Ele levou a melhor no desempate, 2-0. O Temperley teve seu troco em 2014: no primeiro semestre, venceu o algoz nos pênaltis pela última vaga à segunda divisão. E no segundo semestre, no torneio de transição, confirmou sua volta à elite após 27 anos e do qual o Platense está ausente desde 1999. Saiba mais.

1988 e 1990: outros desempates contra a penúltima colocação nos promedios, ambos envolvendo o Racing de Córdoba. Se safou nos pênaltis contra o Unión em 1988, mas levou de 5-0 do Chaco For Ever em 1990 e jamais voltou à elite, estando hoje na quarta divisão.

2006 e 2008: os já citados desempates entre Estudiantes e Boca, e entre Boca, Tigre e San Lorenzo pelo título.

2011 e 2014: os já citados desempates contra rebaixamento entre Huracán e Gimansia LP e entre Atlético de Rafaela e Colón.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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