Há 70 anos, o Flamengo era tri carioca pela 1ª vez. Graças a um argentino
Houve tempo em que brasileiros eram míopes e não hipermétropes para o futebol. Se hoje têm três olhos ao futebol europeu e esnobam os cenários mais próximos (quando não o da própria casa), há 70 anos o ambiente era outro, de extrema valorização do que vinha da Argentina e pouco intercâmbio com as informações vindas da Europa. Os hermanos viviam mesmo uma geração de ouro, ocultada pela Segunda Guerra e também por politicagens dos próprios dirigentes. Clubes brasileiros procuravam ter argentinos consigo, e o talento era tamanho que eles faziam sucesso mesmo quando eram craques já veteranos (caso de Antonio Sastre, que “ensinou o São Paulo a jogar futebol”: leia aqui) ou quando nem reconhecidos no país eram (como Juan Echevarrieta, dono da melhor média de gols no Palmeiras: veja aqui). Agustín Valido, que faria 100 anos em 2014, misturava as duas coisas naquele 29 de outubro de 1944.
Em 70 anos, muita coisa muda mesmo. Mas outras, nem tanto. Valido não escondia que algumas vezes se decepcionava com certa ingratidão e desorganização do clube, mas acabava relevando: “bastava o primeiro aceno de fidalguia, a primeira frase de carinho para cativar-me. Voltava atrás em minhas ameaças e jurava que nunca mais faria aquilo… (…) Nasci longe, mas Flamengo. Não há nada que se compare a esse clube, imperfeito, como todos, onde, ao que se diz, mandam muitos, superado até em organização por outros. Sin embargo, vence sempre. Por que vence? Porque está na alma do povo. Porque é a própria alma do povo!”, exaltou após aquela taça.
Valido começara no Boca desde as categorias de base. Alto, esguio e magro, jamais se firmou. Jogou apenas quatro vezes entre 1933 e 1934, ano em que esteve em dois jogos na campanha do título argentino – curiosamente, com dois brasileiros na zaga (Bibi e Moisés, que no entanto destoavam e fariam o clube contratar Domingos da Guia) e com o goleiro Julio Yustrich, cujo sobrenome seria usado como apelido por goleiro brasileiro com quem o argentino conviveria no Flamengo. Valido passou ao Lanús, onde também não deixou maiores registros de gol.
Sobre a abundância de bons jogadores na terra natal, ele expôs aos olhos de hoje, em 1944, que não haviam exatamente categorias de base no Brasil: “eu ainda não compreendi como, num país tão grande, com cidades como o Rio, a produção do crack rareia tanto! É incrível que em sete anos tenhamos assistido a tão poucos valores positivos! Mas a causa é facilmente localizável. Aqui, quase não se cuida das intermediárias ou daquilo que chamamos no Rio da Prata de “divisões inferiores”. As divisões inferiores em minha terra e no Uruguai realizam o milagre da multiplicação do crack“, afirmou ao Jornal dos Sports na semana daquela final.
“Em Buenos Aires, principalmente, cada clube apresenta ao término de toda temporada um número aproximado de 200 atletas com inscrição regularizada. Ele faz isso, naturalmente facilita o desenvolvimento dos juvenis, encaminha-os, gasta bom material, mas depois colhe frutos excelentes. O River Plate que o diga. O River é uma agremiação milionária que dificilmente se dá o luxo de importar jogadores ou compra-los noutro clube por soma astronômica. Cito o caso do River por citar. Poderia apontar o Boca Juniors, o San Lorenzo, o Ferro Carril Oeste. Dizer que qualquer entidade poderia realizar essa obra no Rio de Janeiro parece exagero!”
Em julho de 1937, “um combinado de jogadores argentinos, sem expressão bastante para representar, de longe sequer, a pujança do football platino, pois os elementos que o integram foram buscados em sua maioria entre aqueles que não obtiveram colocação nos quadros principais da Argentina” (palavras do Jornal do Brasil na época), veio fazer uma série de amistosos no Rio de Janeiro a convite da federação carioca. “A leitura de jornais argentinos autorizam-nos a julgar fraco o team argentino, cujo valor só tem sido aqui recalcado para efeitos de uma publicidade exagerada”.
Dentro do elenco, alguns jogadores considerados ídolos históricos de clubes argentinos, mas ainda em afirmação ou decadência na carreira, como o meia Arcadio López, que embora tivesse ido à Copa 1934 só se consagraria depois, no Boca. O atacante Vicente Del Giúdice, antigo ídolo do Racing, por sua vez já vinha do nanico Almagro. Valido também veio para o chamado “combinado Beccar Varela”, que fez jogos contra Fluminense, Flamengo e America e pegou também, em São Paulo, a Portuguesa. Houve um Luis Villa, mas não era o mesmo que jogaria no Palmeiras no início dos anos 50.
Mas mesmo não sendo astros, houve problema na liberação junto aos clubes e a viagem ficou ameaçada – o próprio Valido só se juntou aos colegas dias depois. A delegação completa era formada, dentre os titulares, por Ángel Grippa, Luis Villa e Juan Landolfi; Pedro Pompey, Andrés Stagnaro e Arcadio López; Valido, Víctor Apolito, Eduardo Gómez, Vicente Del Giúdice e Antonio Cranis. Héctor García, Félix Pacheco, Carlos Zatelli, Francisco Echechipia, Alfredo Vivanco e Juan Pepinotti eram os reservas, treinados por Lindolfo Urbero.
Em um time já tido como fraco e que de fato não venceu no Brasil, o próprio Valido veio por improviso. Mas não sem arranjar contratempos com o Lanús. Segundo o Jornal do Sports, teria sido assim: “À véspera do embarque [do combinado], a embaixada se encontrou em dificuldade. Por quê? Porque não tinha um back e não contava com um extrema apresentáveis. Que fazer? Alguém se lembrou de Villa e Valido, e ambos foram abordados. Nessa época, o Lanús não dava ‘luvas’ e ordenados aos seus profissionais. O pagamento era feito à base de percentagem sobre a renda do jogo. Como as arrecadações não vinham dando resultado, os dois aceitaram o convite. Não disseram nada a ninguém. Não disseram, mas alguém disse…
Isso foi num sábado, no domingo o Lanús teria que enfrentar o Boca. Valido e Villa compareceram ao vestiário, mas não puderam trocar de roupa. O melhor amigo deles, mas muito mais amigo do clube, encarregou-se de estragar toda a ‘festa’, denunciando seus planos. Assim, antes do match, os alto-falantes anunciavam à assistência que o team iria entrar desfalcado do ponta e do back porque ambos alimentavam projetos de fuga para o exterior. Houve desabafos e promessas de ataque em massa aos dois ‘renegados’. A despeito disso tudo eles partiram, e foi assim que chegaram ao Brasil”.
Os hermanos enfrentaram conterrâneos: o goleiro do Flamengo era Talladas e o clube tinha consigo o atacante Agustín Cosso, antigo ídolo do Vélez. Carlos Santamaría, que brilhara no River, era celebrado no Fluminense. O “platinismo” (expressão do jornalista Mário Filho) era tão difundido que mesmo o America tivera em anos recentes José Della Torre, que estivera na Copa de 1930. E foi o America quem primeiro teria se interessado pelo ponta-direita: “se Del Giúdice foi um malabarista da pelota, Valido, menos espetacular, trabalhou entretanto muito mais eficientemente para o quadro. Foi por isso que o America visou-o, de preferência aos outros forwards, tendo iniciado ontem mesmo demarches no sentido de contratar o seguro wing direito dos platinos”, registrou o Jornal do Sports.
O Flamengo, inicialmente, teria se interessado por Del Giúdice, Arcadio López e Villa. Mas logo incluiu Valido também. Os rubro-negros teriam rapidamente registrado o contrato dele, de Villa e de Arcadio. No Flamengo, López e Valido estrearam ambos, ironicamente, em derrota por 3-2 para o Vasco. Os dois gols flamenguistas foram do argentino Cosso, aliás. Ele voltaria a marcar dois no jogo seguinte, outro clássico em 3-2, mas vencido sobre o Botafogo.
O outro gol no Fogão também foi argentino: Valido fez ali seu primeiro gol pelo Flamengo, o primeiro do jogo: “às 21:42, o Flamengo realizou uma perigosa carga ao reduto botafoguense. Cosso, de posse da pelota, infiltrou-se na defesa adversária, e após fintar Otacílio, cedeu o couro a Valido, que, correndo, arrematou violentamente, conseguindo, assim, vencer a resistência dos alvinegros. Aymoré ainda mergulhou, mas não conseguiu deter o bolão. Estava marcado o primeiro goal dos rubronegros”, na descrição do Jornal dos Sports.
Eram mesmo outros tempos. O profissionalismo no futebol brasileiro ainda engatinhava e por aqueles dias o mesmo Jornal dos Sports divulgava essa nota sobre o clube: “o Flamengo lançará um sistema inédito de gratificações aos cracks – um fixo, e percentagens progressivas sobre as rendas dos matches: Krueschner apresentou ao Sr. Bastos Padilha uma ideia interessante sobre a gratificação aos jogadores por jogo ganho”. Nascia ali o chamado “bicho” dado aos jogadores em caso de vitória… Izidor Krüschner era o judeu húngaro que treinava os rubronegros.
Valido teria que esperar dois anos para enfim ser campeão carioca, em 1939. Cosso, López e Villa já haviam deixado a Gávea mas o quarteto hermano prosseguiu, agora com Valido tendo a companhia do meia Carlos Volante (que jogava na França, onde conhecera os cariocas na Copa de 1938 ao ser improvisado como massagista da seleção), Alfredo González (outro ex-Boca que não vingou) e o veterano Raimundo Orsi, grande ídolo de Independiente e Juventus e campeão da Copa 1934 pela Itália com gol na final. Valido foi novamente campeão em 1942 e parou de jogar no início de 1943, antes do Estadual onde seus colegas faturariam o bicampeonato. Já tinha 29 anos, idade elevada para a época.
Mas se em 1943 souberam se virar sem ele, na reta final de 1944 a delegação rubronegra enfrentava problemas de condições físicas na reta final (um dos desfalques era argentino: o zagueiro Sabino Coletta, ex-Independiente). Valido dedicava-se à sua empresa gráfica mas chamou a atenção do técnico Flávio Costa ao disputar uma pelada na Gávea e foi convencido a jogar a penúltima rodada, contra o Fluminense. O Fla-Flu foi um massacre de 6-1, mas o argentino, sem jogar havia um ano e meio, saiu extenuado e criou dúvida. Mas fez questão de jogar uma vez mais, na rodada derradeira, contra o Vasco que já caminhava para ser “O Expresso da Vitória”. Há dois anos, o episódio foi encenado pelo Globo Esporte, no primeiro vídeo abaixo.
“Estou imaginando que sou um rapaz de sorte. Disputei a pior partida de toda a minha vida e, parece mentira, foi a que me reservou a maior emoção”. O jogo rumava ao 0-0 quando, aos 41 minutos do segundo tempo, o outro ponta, Vevé (curiosamente, também descoberto pelo Flamengo em um combinado goleado, o da seleção paraense), cobrou uma falta. Os vascaínos afirmam que Valido, que pouco produziu, fez o cabeceio certeiro se apoiando em Argemiro ou no uruguaio Berascoechea, mas o lance teria sido limpo segundo o Jornal dos Sports: “foi um lance verdadeiramente espetacular e imprevisto (…). Vevé bateu uma falta de Rubens, quase sobre a linha da meta, próximo ao corner“.
“A pelota cruzou pelo alto toda a área cruzmaltina, escalou por Berascochea, e foi ter até onde se encontravam Valido e Argemiro, depois de uma tentativa mal sucedida de Rafanelli [que era argentino] no sentido de aliviar a área. O ponta rubronegro, mais alto do que os demais adversários, levou vantagem no lance, e com uma cabeçada precisa, colocou o couro nas redes de Barchetta. (…) Pela fisionomia de todos – desolados uns, radiantes outros – chega-se à conclusão de que nada houve de ilegal na conquista do ponto – marcado sem qualquer vislumbre de protesto – e que valeu por um tricampeonato”.
Valido se radicou para sempre no Brasil, onde faleceu em 1998.