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100 anos do primeiro Brasil x Argentina valendo taça

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Lagreca, Píndaro, Rubens Salles, Marcos, Nery, Pernambuco e o delegado Joaquim de Souza Ribeiro; Millon, Osvaldo, Bartô, Friedenreich e Arnaldo Silveira. A seleção em trajes de gala

Há uma semana, relatamos como foi o primeiro Brasil x Argentina, travado em 20 de setembro de 1914: leia como foi clicando aqui. Era a data original para a primeira Copa Roca, troféu oferecido por Julio Roca, ex-presidente argentino e na época embaixador de seu país no Brasil. Mas o mal tempo da viagem naval só permitiu que os brasileiros chegassem em Buenos Aires a poucas horas do jogo. Em gesto de cavalheirismo, os hermanos combinaram que a partida ficaria amistosa, dando aos vizinhos uma semana de descanso para uma segunda partida, desta vez valendo a taça. Por isso, a primeira Copa Roca foi travada em 27 de setembro, há exatos cem anos. Marcou o primeiro título da seleção brasileira, em tarde marcada por outra mostra de cortesia argentina. Aliás, o tratamento mútuo entre as imprensas também foi bastante polido, longe da troca de bairrismos e mesmo xenofobias atual.

No jogo do dia 20, os brasileiros perderam por 3-0, mas ganharam elogios da imprensa argentina. Na semana que se passou, os tupiniquins compareceram a diversos eventos sociais, sendo tratados com todas as honras. Foram “alvo de significativas manifestações de apreço de seus colegas portenhos (…). Em todos esses estabelecimentos foram recebidos com altas provas de distinção, retirando-se agradavelmente impressionados”, nas palavras do jornal O País de 23 de setembro. Um dia depois, em 24 de setembro, os brasileiros entraram em campo novamente. Ainda não contra a Argentina, mas contra o clube Columbian, que posteriormente se fundiria com outros para dar origem ao atual Almagro.

A partida foi no mesmo cenário do dia 20, no estádio do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, clube de futebol mais ligado à alta sociedade portenha. O Columbian estava reforçado por alguns jogadores que haviam vencido o Brasil dias antes (em negrito): jogou com Juan Sagaslume, Diómedes Bernasconi e Arturo Reparaz, Alfredo Letamendi, Aquiles Molfino e Abadia, Olariaga, Iraola, Carlos Antequeda, Carlos Izaguirre e Rivas. Molfino, autor de um gol no dia 20, e Reparaz eram jogadores do Gimnasia. Izaguirre, autor de outros dois no dia 20, era do Porteño – ambos os clubes ainda existem, mas desativaram seu departamento de futebol . O zagueiro Bernasconi era outro reforço ao Columbian, pois jogava no Estudiantes. Ele voltaria a enfrentar o Brasil no jogo de cem anos atrás, assim como Izaguirre.

No jogo-treino contra o Columbian, o Brasil usou praticamente a mesma formação derrotada dias antes, trocando apenas o meia Otávio Egídio por Rubens Salles, mudança que faria a diferença especialmente para o dia 27 mas que foi notada desde logo: “‘La Prensa’ reconhece que a équipe vencedora foi ‘notoriamente reforçada na linha de halves‘”, informou o jornal Correio da Manhã, já em 1 de outubro, mas ainda a respeito do jogo contra o Columbian. O Brasil venceu por 3-1, com dois gols de Bartô e um de Friedenreich. Iraola descontou para o oponente. Abaixo, relato dessa partida registrado no Correio da Manhã, na mesma edição de 1 de outubro:

FOOT-BALL – A primeira vitória dos brasileiros na Argentina por 3 a 1: o dia de ontem estava pouco propício a jogos de football. Apesar disso, o encontro anunciado entre as duas équipes que encimam estas linhas foi efetuado no campo do Club de Gimnasia y Esgrima, assistindo-lhe uma apreciável quantidade de espectadores. Teve o match como fator preponderante a mobilidade constante dos jogadores, atendidos aos passes largos, mais propícios em dias em que a cancha está pesada. Além disso, a revelação dos jogadores brasileiros, que surpreenderam o público, fez com que durante todo o tempo o interesse da luta se mantivesse constante.

Às 3 horas da tarde, o juiz designado, D. J.J. Rithner, fez colocar os teams assim formados: Brasileiros: Mendonça; Píndaro e Nery; Lagreca, Rubens e Pernambuco; Osvaldo, Bartolomeu, Friedenreich, Millon e Arnaldo. Columbia [sic]: J. Sagastune [sic]; Bernasconi e Reparaz; Letamendi, Molfino e Alradia [sic]; Olariaga, Iraola, Antequeda, Izaguirre e Rivas. As vantagens provenientes do forte vento reinante e do sol foram aproveitadas pelo capitão do team visitante, correspondendo à Antequeda o pontapé inicial. Apesar do estado do campo ser um obstáculo para o brilho das ações, os dois quadros iniciaram um jogo vivo e desde logo um bom centro de Silveira motivou uma oportuna rebatida de Reparaz, que se aliviou do perigo.

Rubens e Nery puderam fazer o mesmo no outro lado do campo, decorrendo os dez primeiros minutos, após os quais o jogo teve que ser suspenso por causa de copiosa chuvarada que caía nessa ocasião. Tendo voltado os jogadores ao campo, Rivas forçou um corner, do qual não tiraram proveito os do Columbia [sic]. Pouco depois, aos 16 minutos de disputa, os brasileiros marcaram o primeiro goal. Num corner, que Pernambuco dirigiu bem ao ângulo do goal, Letamendi rechaçou debilmente o centro. Friedenreich, que recebeu a bola, dirigiu-a com um shoot enviezado ao canto direito da ‘vala’. Três minutos mais tarde, os visitantes aumentaram a sua vantagem. Silveira rematou uma corrida com um centro que Bartolomeu aproveitou impulsionado, em plena carreira, a esfera com o corpo.

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Campo do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires (mais conhecido pela sigla GEBA), cenário dos três jogos que a seleção fez na Argentina. O clube também sediou a primeira Copa América, em 1916, mas desativou o futebol outros dois anos depois

Diminuiu o ataque dos brasileiros, bem contido pela defesa do Columbia [sic], cujos forwards não ficaram ociosos. Antequeda conseguiu uma boa investida em combinação com Izaguirre e Iraola, tendo a oportuna intervenção de Píndaro evitado, à custa de um corner, o perigo em que ficou o goal dos visitantes. Pouco antes de terminar o meio-tempo, Molfino arrebatou a bola a Osvaldo e a passou a Iraola. Este, depois de avançar alguns metros, deu um shoot que, na sua trajetória, resvalou sobre o corpo de Rubens Salles, e, na confusão que se originou junto ao goal, Antequeda atirou, rasteiro, um shoot em direção a um dos cantos do último posto adverso, tendo Marcos evitado o perigo dele decorrente.

Na segunda parte da partida, o jogo dividiu-se melhor, mas a linha atacante argentina, bastante desarticulada, não podia esperar maiores probabilidades de êxito frente a frente a uma defesa da ordem da que tinha que vencer ontem. Mal grado este fato, Rivas pôde produzir um shoot que Marcos rebateu fracamente, e Iraola, que recebeu a bola de volta, deu um outro shoot, que pegou na travessa e tornou ao campo. O ataque brasileiro fez sentir-se, pelo que a defesa contrária teve que multiplicar sua ação.

Izaguirre conseguiu fazer uma acometida individual; chegando ao fim da tentativa, porém, optou em “shootar” ao goal em condições desfavoráveis, quando a colocação de seus companheiros de linha lhe permitia fazer um passe em condições de sucesso. Aos 16 minutos decorridos, Iraola marcou o único ponto do Columbia [sic], com um forte kick, que Marcos deteve em parte, mas sem poder evitar que a bola penetrasse no goal. Dois minutos mais tarde, uma boa investida da ala esquerda proporcionou aos visitantes o seu terceiro goal. Bartolomeu, em posição offside, recebeu o passe e venceu Sagastone [sic] com violento shoot (convém notar que “La Prensa”, descrevendo o match, diz textualmente que ‘Bartolomeu, após uma bonita combinação, venceu pela terceira e última vez Sagastone [sic]”. Não fala absolutamente em offside).

No restante do encontro, o team visitante pôde acentuar a sua maior eficácia, fazendo uso de um jogo de passes, que revelou nos seus jogadores conhecimento de seus postos e da bola. Por isso foi que a seus ataques bem encaminhados secundou uma defesa segura, que, em circunstâncias como as que provocaram Olariaga e Iraola, ajudados por Molfino, aos 38 minutos de jogo, permitiu-lhe evitar que Antequeda, bem situado, enfiasse livremente um shoot, o qual foi detido por Marcos. E, num free kick que, aos 42 minutos, devido a um hands, tirou Rubens Salles, Sagastone [sic] teve que atirar-se a fundo, ante a oportuna investida do terceto interno da linha de ataque contrária. Pouco depois terminou o match“.

Há cem anos, a formação que venceu o Columbian foi integralmente mantida para enfrentar a seleção argentina, cujo goleiro seria Juan José Rithner, do Porteño, e exatamente quem apitara o jogo-treino contra o Columbian. O árbitro da vez seria brasileiro: Álvaro Borgeth, que havia jogado contra a seleção argentina pelo combinado carioca em 1912. Sem pachequismos, Borgeth por bem pouco não validou um gol irregular dos argentinos. Foram eles próprios quem fizeram questão de avisa-lo da situação, a partir de Carlos Galup Lanús, do Estudiantes.

Galup Lanús notara que Roberto Leonardi, seu colega no Estudiantes, usara a mão para marcar e foi avisar o juiz. O que poucos sabem é que Galup só chegou ao Estudiantes exatamente pelo senso de honradez: em 1911, enfrentou-o pelo Banfield, cujo presidente conseguira arranjar um árbitro favorável, em jogo-chave para o título da segunda divisão. A partida rumava ao 0-0 até um pênalti inexistente ser assinalado e revoltar os alvirrubros, que se retiraram do campo. Envergonhado, Galup Lanús visitou os oponentes que, impressionados, convidaram-lhe a jogar no clube de La Plata, que conseguiu a anulação da partida. Ela foi jogada novamente dias depois, desta vez com Galup na equipe platense.

Em 1913, o Estudiantes sagrou-se campeão da elite da Federação Argentina de Futebol (seu primeiro título argentino na elite; o seguinte só viria nos mágicos anos 60) e seria a base da seleção usada há cem anos, sem ninguém de Boca, River, Racing, San Lorenzo ou Vélez: os quatro primeiros pertenciam à outro órgão, a Associação Argentina de Futebol, o reconhecido pela FIFA. Já o Vélez ainda estava na segundona da FAF, cujos clubes eram mais prestigiados pela alta sociedade. Mas mesmo que só houvesse um único órgão, só o Racing, hepta seguido entre 1913-19, tinha força para ter representantes: Boca e River eram virgens de taças e o San Lorenzo nem na elite chegara ainda.

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Um bandeirinha (seria Joaquim de Souza Ribeiro?), Píndaro, Lagreca, Rubens Salles, Marcos, Nery, Pernambuco e o juiz Álvaro Borgeth; Osvaldo Gomes, Millon, Bartô, Friedenreich e Arnaldo Silveira

O jogo de cem anos atrás teve mostras de cortesia impensáveis para a rivalidade ferrenha que viria com o passar dos anos. O goleiro Marcos Carneiro de Mendonça foi carregado pelos argentinos, derrotados por 1-0, gol exatamente de Rubens Salles. A ironia é que Julio Roca, responsável pela realização dessas primeiras partidas entre Brasil e Argentina, não pôde entregar a taça: estava com saúde frágil e faleceria no mês seguinte. Do lado brasileiro, o presidente Hermes da Fonseca e o futuro presidente Rodrigues Alves estiveram lá. Abaixo, o relato do jornal Gazeta de Notícias de 28 de setembro:

Football – o sensacional jogo internacional realizado ontem em Buenos Aires entre as equipes brasileira e argentina – Depois de emocionante luta o team brasileiro vence os portenhos por um goal a zero – Rubem marcou o ponto assecuratório da vitória depois de 13 minutos de jogo: o telégrafo traz-nos a sensacional e surpreendente nova da vitória da équipe brasileira que fora à Argentina disputar em match de football a Taça Julio Roca. Apesar da má organização da équipe representativa do Brasil, geralmente criticada, a vitória nos sorriu, graças ao concurso valioso dos footballers paulistas. Porque foi Rubem Salles, o já famoso center-half paulista, considerado como o mais perfeito jogador brasileiro do sport association, que conquistou o único ponto que nos garantiu a vitória (…).

Era a primeira prova desse torneio que anualmente haverá entre os footballers dos países amigos. (…) O match esteve magnífico e teve a concorrência maior que até hoje tem se observado nos fields platinos. Tudo quanto há de distinto na sociedade portenha, além de numerosa multidão popular, enchia completamente as arquibancadas e o campo. (…) Cerca de 10.000 pessoas enchiam as dependências do Club de Gimnasia.

Na tribuna oficial achavam-se presentes o Dr. José Luis Murature, ministro das relações exteriores; doutor Tomás Cullen, ministro da justiça; Dr. Rodrigues Alves, encarregado de negócios do Brasil; Dr. Fonseca Hermes [sic], secretário da delegação do Brasil; Sr. Almeida Brito, delegado da Liga Metropolitana de Football, do Rio de Janeiro; o Sr. Aldao, presidente da Federação Argentina de Football, e outras personalidades de destaque do nosso meio social. O general Julio Roca escusou-se por não poder comparecer, fazendo-se, porém, representar. À hora marcada, os teams apresentaram-se em campo, sendo alvos de frenéticos aplausos da multidão. (…) No primeiro half time, após 13 minutos de jogo, deu-se uma confusão em frente ao goal argentino, do que se aproveitou Rubens Salles para vaza-lo, marcando assim o primeiro e único ponto para o seu team.

Os argentinos procuraram então desfazer a vantagem dos brasileiros, desenvolvendo cerrado ataque ao goal defendido por Marcos, sendo todos os seus esforços inutilizados pela brilhante defesa brasileira. Marcos foi aplaudidíssimo, tendo demonstrado muita calma e presteza nos seus golpes. No segundo half time, os argentinos voltaram a atacar vigorosamente os adversários, encontrando sempre tenaz resistência por parte de Píndaro e Nery (…). Ao terminar a luta, foi indescritível o entusiasmo da multidão, que aclamou freneticamente os jogadores brasileiros e argentinos.

O Sr. Aldao, presidente da Federação Argentina de Football, fez a entrega solene da taça Julio Roca ao Sr. Almeida Brito, pronunciando por essa ocasião um brilhante discurso, em que salientou o jogo desenvolvido pelos footballers brasileiros, terminando por felicita-los pela vitória alcançada pelos mesmos. O Sr. Almeida Brito respondeu agradecendo, sendo ambos muito aplaudidos. Hoje à noite realiza-se o grande banquete de despedida, oferecido aos footballers brasileiros, e que, a julgar pelos preparativos, se revestirá de grande brilhantismo.”

Abaixo, as formações que atuaram naquele 27 de setembro de 1914 no campo do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, mais conhecido pela sigla GEBA:

BRASIL: Marcos (Fluminense), Píndaro (Flamengo) e Nery (Flamengo), Lagreca (São Bento), Rubens Salles (Paulistano) e Pernambuco (Fluminense), Millon (Paulistano), Osvaldo Gomes (Fluminense), Bartô (Fluminense), Friedenreich (Ypiranga) e Arnaldo Silveira (Paulistano). ARGENTINA: Juan José Rithner (Porteño), Diómedes Bernasconi (Estudiantes) e Carlos Galup Lanús (Estudiantes), Ricardo Naón (Estudiantes), Ernesto Sande (Independiente) e Santiago Sayanes (GEBA), Juan José Lamas (Estudiantes), Roberto Leonardi (Estudiantes), Antonio Piaggio (Porteño), Carlos Izaguirre (Porteño) e Francisco Crespo (Tigre). Árbitro: Álvaro Borgeth (BRA). Gol: Rubens Salles (13/1º).

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A Argentina: um delegado, Diómedes Bernasconi, Carlos Galup Lanús (meio agachado), Juan José Rithner, Ricardo Naón e Santiago Sayanes; Ernesto Sande, Juan José Lamas, Roberto Leonardi, Antonio Piaggio, Carlos Izaguirre e Francisco Crespo

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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