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Há 45 anos, o Chacarita era campeão argentino

Marcos, Puntorero, Recúpero, Orife e Neumann, Petrocelli, Abel Pérez, Poncio, Jorge Gómez, Frassoldati e Bargas

Dali a duas semanas o homem pisaria na lua e talvez este seja o equivalente do título do Chacarita Juniors no futebol argentino. O título do Estudiantes, dois anos antes, a quebrar o oligopólio dos “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), vigente desde 1930, podia ser comparado ao homem no espaço. O Chaca terminou de confirmar que o melhor, mesmo quando pequeno e sem timaço, podia ser campeão, sensação já reforçada pelo título nacional do Vélez no semestre anterior. Que um time que soubesse superar anos e anos de luta e sacrifício na metade inferior da tabela e se organizasse poderia ter seu dia de lugar ao sol. Superando inclusive dois grandes na reta final.

Além de superar dois grandes, o Chacarita também reverteu um déficit em sua rivalidade, com o sumido Atlanta: no início daquela década, o rival vencera a Copa Suécia, torneio oficial que a AFA iniciara ainda em 1958 enquanto o campeonato se paralisou por conta da Copa do Mundo, e fazia se intrometia entre os grandes nas primeiras colocações. Já os funebreros (apelido herdado do Cemitério do bairro da Chacarita, o maior da América Latina e onde jazem Gardel e Piazzolla, embora o clube se enderece desde os anos 40 na cidade de San Martín) ficaram simplesmente em último em 1965, 1966 e 1967. Só não caíram por não haver rebaixamento nos dois primeiros e por haver uma repescagem em 1967. O time também jogou a repescagem em 1968.

E pensar que o futuro campeão de 1969 ainda estreou levando de 7-1 do Lanús… de fato, não era era uma grande equipe: só o ponta Ángel Marcos e o defensor Ángel Bargas, que estavam desde as malas (Marcos era tricolor desde 1967 e Bargas, de 1966), iriam à seleção. Só Bargas teve algum êxito, indo à Copa 1974 já pelo Nantes – foi ele o primeiro que a seleção usou do futebol europeu e ele é também o jogador mais vezes usado por ela a partir do Chacarita, 16 vezes.

Mas já no jogo seguinte, ouve uma boa reação, com um 5-0 no Colón. O time se remendara bem com encostados de outros clubes (Juan Puntorero era cria do River, Rodolfo Orife do Estudiantes e Abel Pérez, do Boca) e promovia jovens da base, como Carlos García Cambón, maior artilheiro do clássico com o Atlanta e quem mais marcou gols em um único Boca-River (falamos aqui), profissionalizado naquele ano. Além disso, a maioria do elenco chegara em 1968 ou depois. Só o goleiro Eliseo Petrocelli e o volante Franco Frassoldati também estavam antes disso no clube, ambos desde 1966. Argentino Geronazzo, técnico que chegara em 1968, armara o elenco, cujo esquema foi mantido pelo sucessor Federico Pizarro, treinador campeão.

O brasileiro Silva “Batuta”; a poética capa da El Gráfico sobre o título do ascendente Chacarita. Na anterior, a revista celebrou o 4-1 que o Independiente levou do Boca, eliminado em seguida

Aquele Metropolitano foi dividido em dois grupos, a separar rivalidades: no A, ficaram Boca, Independiente, San Lorenzo, Gimnasia LP, Rosario Central, Banfield e Colón. No B, os respectivos rivais River, Racing, Huracán, Estudiantes, Newell’s, Los Andes e Unión. Completavam o B Argentinos Jrs, Deportivo Morón, Quilmes e Platense. E completavam o A Lanús, Vélez, Atlanta e o Chacarita, única dupla rival junta. Após turno e returno e dois jogos intergrupos normalmente reservados aos clássicos, os dois primeiros de cada grupo fariam semifinais prosseguida de final em jogos únicos.

O Chacarita realmente reagiu bem: foi o segundo time que mais venceu, 13 vezes em 22 jogos, com destaque especial para um 3-0 no Lanús e duas vitórias magras em trincheiras fora de casa: 1-0 no Colón no Cementerio de Elefantes e no Boca em La Bombonera. No clássico com o Atlanta, empatou fora (com García Cambón marcando pela primeira vez no dérbi) e venceu por 1-0 em casa. Terminou com 30 pontos na segunda colocação do seu grupo, tendo de pegar o líder da outra chave: o Racing, ainda respirando o auge de 1967, quando venceu Libertadores e Intercontinental, havia sido justamente quem mais vencera até então, 14 vezes. E tinha o artilheiro do torneio, um brasileiro: Silva “Batuta”, ex-Flamengo e Vasco e que fora à Copa 1966.

Por ter melhor campanha, o Racing teria a vantagem do empate naquele jogo único na neutra Bombonera. Parecia que isso iria ocorrer mesmo. O jogo rumava no 0-0 até que, a quatro minutos do fim, o racinguista Rulli pôs a mão na bola a um metro da grande área em jogada de Recúpero. Marcos cobrou um virtual escanteio na cabeça do próprio Recúpero emendar no canto esquerdo do goleiro Cejas, futuro ídolo no Santos de Pelé. E no pouco tempo restante quase os tricolores marcam outro, com Marcos elevando a bola a Orife, que chutou e Cejas salvou com os pés. Chaca na final.

A outra semi foi nada menos que um Superclásico, mas foi bem menos emocionante. No estádio do Racing, um retranqueiro River jogaria pelo empate e se aferrou a manter essa vantagem enquanto o Boca, treinado justamente pelo ex-ídolo rival Alfredo Di Stéfano, não tinha ideias ofensivas apesar de melhores jogadores e de ter goleado por 4-1 o Independiente quatro dias antes. 90 minutos arrastados para trinta intermináveis de prorrogação ficaram no 0-0. O River se classificou, mas para a grande final ficaria marcado pela ausência de dois jogadores que passariam pelo Brasil nos anos 70.

Festejos da semifinal com o Racing, então o grande time argentino da década: gol da classificação a 4 minutos do fim

A mais sentida foi a agressividade de Carlos Chamaco Rodríguez, suspenso da decisão ao ser expulso no último minuto da prorrogação da semifinal. A outra foi a do substituto de Rodríguez para a decisão: o jovem Hugo Dreyer, também expulso. Ele passaria pelo futebol paranaense, jogando tanto no Coritiba como pelo Atlético e ainda no Colorado (clube que daria origem ao Paraná em 1989) e Londrina, brilhando sobretudo no Coxa. O River não era campeão desde 1957. O último baluarte dos bons tempos, o veteraníssimo goleiro Amadeo Carrizo, saíra no ano anterior.

O River começou a final desencontrado. Logo aos 3, Dreyer havia dado um passe errado. Aos 4, Gutiérrez cometeu falta violenta em Recúpero. O Chacarita, do seu lado, trabalhava tranquilamente a bola e abriu o placar já aos 12 minutos: escanteio de Marcos pela ponta-esquerda, cabeceio de Recúpero para baixo ao interior da pequena área, a bola encontra Neumann de costas para o goleiro oponente, Carballo. Cercado também por Miguel López, Guzmán, Ferreiro e Vieitez, Neumann gira e chuta de direita antes que Carballo chegasse. Só Ferreiro também reagiu, mas para reclamar de impedimento embora ele próprio fosse quem desse condição legal a Neumann, um homem de cintura e canelas grossas incomuns a um ponteiro.

No River, só Oscar Más dava alguma ameaça ao Chacarita, ganhando sempre de Gómez. Foi em jogada de Más que o Millo pôde empatar oito minutos depois: pela esquerda, cruzou à grande área. O goleiro Petrocelli resolveu não interceptar bola endereçada ao goleador Daniel Onega, já perseguido por Bargas. Onega não chegou a tempo, mas o colega Trebucq, que também acompanhava a jogada, consegue concluir livre com a canhota após seu marcador Frassoldati interromper o ímpeto por imaginar que Onega conseguiria. As possibilidades se equilibravam, mas o River se atrapalhava no último toque com a linha de impedimento bem sincronizada da defesa tricolor.

A situação do River piorou aos 30 minutos. Foi quando houve a expulsão de Dreyer por falta em Neumann. Segundo meios da época, o juiz Barreiro exagerou, pois era a primeira falta cometida por Dreyer, que ainda nem tinha amarelo, enquanto outras jogadas mais ríspidas na partida não foram punidas. E o Chacarita, que sempre conseguia encontrar alguém desmarcado, cresceu ainda mais com a vantagem numérica. E deixou o River incapaz de segurar o empate até o intervalo e na pausa rediscutir suas estratégias: na grande área, Marcos armou de bicicleta, López tentou afastar, mas Neumann buscou a bola e soltou um canhão de canhota, marcando abaixo do travessão seu segundo gol.

Cena da final contra o River: 4-1

Como o pior pode piorar mais ainda, mal começou o segundo tempo e o Chacarita ampliou: lançado em profundidade por Recúpero, Marcos correu de um lado a outro do campo, deixou López para trás, driblou um goleiro Carballo que saíra da área para tentar interromper a jogada, parou um pouco para ganhar mais ângulo. Sem temor: “não me apresso. Paro a bola e levanto a cabeça. Não tenho medo que me a roubem. Quase todos os gols que se perdem são pelo desespero em fazê-los”, declarara ainda antes.

Nisso, López conseguiu se recuperar e tampar a frente de Marcos. Só que López também abriu as pernas e entre elas o capitão funebrero tocou sutilmente, com mais precisão do que força. López caiu sentado para tentar bloquear, mas não impediu o gol mais bonito da tarde. “Gol de caneta”, que não freou o ímpeto tricolor por mais gols. Veio o quarto, com Recúpero lançando a bola à esquerda em cobrança de falta, Orife confundindo a defesa do River ao deixar a bola passar e antes que chegasse no riverplatense Ferreiro, o italiano Frassoldati se antecipa a ele, pega a bola e toca na saída de Carballo. E poderia ter vindo um quinto, com tentativa de Recúpero batendo na trave.

O Chacarita só havia vencido o River oito vezes desde o profissionalismo, em 1931. A última, em 1961. Nos doze jogos seguintes até o de 45 anos atrás, só marcou duas vezes e perdeu onze, empatando o outro. Terminou campeão e foi reconhecido pelo oponente, que atuou com correção mesmo goleado e cujo presidente foi aos vestiários do Chaca cumprimentar o capitão Marcos, que tinha uma revanche na vida (havia se operado de uma úlcera). Marcos também foi muito elogiado pelo maior artilheiro da história da Copa América, Norberto Tucho Méndez.

“Uma barbaridade. Aqui trabalham todos, fiquem de olho. Aqui não há figurinhas. Se buscam, se juntam, toque e toque… e ganas de fazer gols. Me fez lembrar do Estudiantes. Cuidado que este pode ser outro Estudiantes amanhã. Muito bem Marcos, esse tem a batuta, é quem reparte o baralho, mamita querida!”. O Chacarita não chegou a ser um novo Estudiantes, cujo jogo tático e destrutivo não lembrava o hábil dos tricolores, mas seguiu forte por um tempo: lutou pelos títulos por alguns anos e em 1971 derrotou o Bayern Munique de Beckenbauer, Breitner, Müller e outros por 2-0 no Troféu Joan Gamper. Já o River teria que esperar até 1975 para, após dezoito anos, voltar a ser campeão…

Festejos da final com o River: Bargas e Abel Pérez comemoram o título, já com camisas trocadas. O capitão Marcos festeja Neumann, autor de dois gols

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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