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Argentinos de destaque no Peñarol

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Hohberg, o argentino mais importante do clube, também treinou o Uruguai na Copa 70, por quarenta anos a última em que a Celeste ficou entre os 4 primeiros; e Martinuccio, vice na Libertadores 2011

Há exatamente cem anos, um certo Central Uruguay Railway Cricket Club simplificava em assembleia seu nome para Peñarol. Era a formalização do jeito que o time, já bastante vitorioso, era mais conhecido. O primeiro jogo com o novo nome foi justamente na Argentina, três dias depois. Falaremos hoje sobre os hermanos de destaque neste gigante mundial, que no país vizinho inspirou o Argentino Peñarol (time cordobês da 4ª divisão), as cores do Olimpo de Bahía Blanca (da elite) e o Peñarol de Mar del Plata, potência do basquete que ironicamente se veste de azul e branco, dentre outros.

O CURCC foi criado em 1891 por empregados de uma empresa ferroviária britânica. Já na sua primeira partida, uma de críquete contra o Montevideo Cricket, foi referido como “Peñarol” pelo jornal anglófono Montevideo Times, por ser de Villa Peñarol, bairro ao extremo norte da capital uruguaia (e seus torcedores, como peñarolites). O futebol passou a ser praticado em 1892 e seus numerosos títulos nele no campeonato uruguaio, criado em 1900, atraíram não-empregados da empresa a virarem sócios do clube. Com o tempo, estes passaram a querer igualdade de direitos. Paralelamente, alguns diretores da ferrovia não queriam mais o clube instalado nela. Desavenças nesses sentidos marcaram o ano de 1913.

Envolvidos nos desentendimentos, muitos jogadores terminaram suspensos e um único titular, o goleiro Leonard Crossley, esteve no último jogo do CURCC, justo um clássico com o Nacional (2-2) em 13 de dezembro. Foi o primeiro campeonato que o clube encerrou abaixo do segundo lugar – no de 1908, onde ficara em 7º, ele e o arquirrival saíram da disputa antes do fim, descontentes com constantes alterações de resultados nos tribunais. Um dos que saíram na mudança foi o artilheiro do time, Carlos Scarone, responsável por um apelido bem mais característico que peñarolites justamente ao ir à Argentina.

Irmão mais velho do cracaço Héctor Scarone (primeiro importado do futebol sul-americano pelo Barcelona e campeão da Copa 1930), Carlos era filho de um italiano que amava o Peñarol. Mas aceitou ir ao Boca em 1914 – foi o primeiro reforço internacional badalado no futebol argentino. Justificou ao pai que “ficar no Peñarol para quê? Pa’ mangiare merda?”. Mangiare, “comer” em italiano e pronunciado mandjáre, logo virou manya (no espanhol, o Y tem som de “dj”), inicialmente um insulto que acabou adotado pelo alvo. Carlos Scarone não vingou no Boca e logo estava no Nacional, onde brilhou com o irmão.

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Lauri, que marcou nos 4-0 sobre o Nacional no título de 1937; Laferrara, goleador do time em 1943; Bovio, que esteve no desafogo de 1944 e depois no Palmeiras e São Paulo

A “estreia” do Peñarol com esse nome, ainda com Carlos, foi amistoso contra o campeão argentino de 1913: o Racing, que vivia sua melhor época – emendaria outras 6 taças seguidas àquela, ainda um recorde na Argentina (clique aqui) e venceu por 2-0, dois gols de Marcovecchio. Escalações: Desiderio, Rímolo, Savio, Harley e Varela, Pérez, Castilla, Piendibene, Zibechi e Scarone contra Muttoni, Reyes, Ochoa, Pepe, Olázar e Betúlar, Viazzi, Canavery (uruguaio), Marcovecchio, Hospital e Perinetti.

Presente naquele jogo, o aurinegro Piendibene seria eleito nos anos 20 pela principal revista argentina, a El Gráfico, como o maior jogador da época: era o grande astro de uma seleção uruguaia que, de freguesa da Argentina, passara a dominadora. Naqueles tempos, nasceu uma amizade com o River, convidado para a inauguração do estádio aurinegro de Pocitos (onde ocorreu o primeiro gol das Copas do Mundo), ao amistoso dos 50 anos do clube e contra quem Schiaffino jogou pela última vez pelo time. Em retribuição, o Peñarol foi o convidado para inaugurar o Monumental de Núñez e o estádio anterior do River na fina zona norte portenha (clique aqui e aqui) e à despedida de Francescoli.

O primeiro argentino a brilhar no Peñarol o fez nos anos 30, na nascente era profissional: Horacio Tellechea, artilheiro do campeonato de 1937, quando o clube foi pela primeira vez tri seguido. A taça veio em um 4-0 com dois gols dele no Nacional, até então invicto. Outro gol foi do ponta titular, Miguel Ángel Lauri, ex-jogador das seleções argentina e francesa e grande ídolo do Estudiantes. O Peñarol ainda conseguiria o primeiro tetra do futebol uruguaio um ano depois, tendo entre os reservas Raimundo Orsi, na época o segundo maior artilheiro da história do Independiente e um dos argentinos campeões pela Itália na Copa 1934. O argentino titular era o centroavante Sebastián Guzmán.

O Nacional, embalado pelo maior artilheiro do país (o argentino Atilio García: clique aqui), responderia em seguida com o primeiro penta. Os argentinos viviam uma geração de ouro e o Peñarol trouxe astros, sem êxito: Luis Rongo, um dos poucos a ter média de gols superior à de Di Stéfano no River, logo pediu rescisão e foi brilhar no Fluminense; José María Minella, outro ídolo do River, com o estádio de sua Mar del Plata natal usado na Copa 1978 levando seu nome; e Ángel Laferrara, goleador do Estudiantes. A taça voltou em 1944, com o meia Guido Baztarrica, depois no Fluminense e Atlético, o centroavante Elmo Bovio, depois no São Paulo e Palmeiras, e o ponta Ernesto Vidal.

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Vidal, ponta titular do Uruguai na Copa 1950; Romay e Montaño, goleadores nos anos 50

Destes, Vidal foi o mais duradouro. A reconquista veio em um 3-2 no Nacional, que abrira 2-0 com Atilio García. Vidal fez o da virada. Seria o dono da posição até ir com Ghiggia à Itália em 1953. El Patrullero, na verdade, era italiano, mas criado na Argentina. Chegara do Rosario Central, de quem em 1948 o Peñarol trouxe Juan Hohberg. O ataque Ghiggia-Hohberg-Míguez-Schiaffino-Vidal seria apelidado de “Esquadrilha da Morte”, com 3,5 gols por jogo no campeonato de 1949, ano com só 1 derrota em 32 jogos e com três adversários abandonando o jogo antes do fim, dentre eles o Nacional.

No Clásico de la Fuga, Vidal marcou um dos gols no 2-0, com os rivais Gambetta e Walter Gómez agredindo o árbitro e sendo expulsos – Gómez receberia longa suspensão que o privou da Copa 1950 e o fez ir ao River, onde seria ídolo. Para evitar uma goleada contra La Máquina de 1949, o Nacional não voltou para o segundo tempo. A seleção se apressou em querer todo o ataque do Peñarol e conseguiu a tempo a naturalização de Vidal para a Copa. Ele só não foi titular justamente no jogo contra o Brasil, com uma lesão deixando sua vaga para o obscuro Rubén Morán. Sete jogadores aurinegros estavam entre os titulares, com direito ao goleiro reserva Roque Máspoli ser o titular da Celeste.

Hohberg não teve a naturalização a tempo, mas seguiu brilhando: de 1950 a 1953, foi o artilheiro do clube por quatro anos seguidos, e do campeonato em 1951 e 1953, ano em que marcou dois na maior goleada do Peñarol sobre o rival, um 5-0. Ele pôde defender o Uruguai na Copa 1954, notabilizando-se por marcar os dois gols do empate contra a mágica Hungria (que vencia por 2-0 até os últimos 15 minutos na semifinal), desmaiar de emoção após o segundo e acertar a trave na prorrogação. Em jogo tido dos mais dramáticos das Copas, Kocsis acertou duas certeiras cabeçadas para decretar o 4-2.

Naquele 1954, o artilheiro do campeonato foi outro argentino carbonero, o recém-chegado Juan Romay, grande goleador no Lanús e Independiente. Estava desde 1951, mas só conseguiu firmar-se ali, após a saída de Schiaffino. Ele e Hohberg passaram a compor a dupla de meias ofensivos. Em 1956, chegou o centroavante Elio Montaño, ex-Huracán. Foi o artilheiro do time em 1957 e 1958, ano em que saiu. Quem passou a ser o novo centroavante foi justamente El Verdugo Hohberg.

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Linazza, primeiro argentino campeão da Libertadores; Onega e Castronovo, dupla ofensiva em 1971, ano em que Castronovo foi o artilheiro da Libertadores pelo Peñarol – por ironia, o campeão foi o Nacional

Hohberg, curiosamente, quase havia terminado a carreira naquele 1958: primeiramente, por ir a Portugal negociar com Sporting Lisboa. Segundo, porque, não concretizado o negócio, quase sofreu um acidente de avião resumido a um pouso de emergência nas águas de Angra dos Reis. Terceiro, porque isso lhe fez parar de jogar, mas um abaixo-assinado e uma coleta pública de dinheiro da torcida o demoveu da ideia. A volta deu certo: terminou artilheiro do time com 23 gols e o Peñarol, campeão após três vices que seriam respondidos a partir dali com o primeiro pentacampeonato aurinegro.

Mais que os títulos caseiros, o Peñarol abriu os anos 60 dominando a Libertadores. Foi do manya os dois primeiros argentinos campeões do torneio: o próprio Hohberg, que se despediu naquele mesmo 1960, e o meia ofensivo Carlos Linazza, que naquele ano chegara desacreditado do futebol do Peru a pedido de um ex-técnico seu por lá, Roberto Scarone (sem parentesco com Carlos e Héctor). Superou as desconfianças cedo, da melhor forma: campeão uruguaio em final contra o Nacional válida pelo torneio de 1959, motivo pelo qual o rival a princípio tentara impugna-lo ao jogo, sem êxito.

Depois deles, poucos argentinos tiveram sucesso parecido. Vale citar Miguel Reznik, que alternou-se no ataque com José Sasía e Alberto Spencer (maior artilheiro da história da Libertadores) entre 1963-65. Néstor Errea, goleiro do Boca vice para o Santos de Pelé na Libertadores 1963, chegou em 1967 após vencer pelo Colón o próprio Peñarol naquele ano, em um 3-2 onde Reznik fez um dos gols colonistas, uma das vitórias que consagraram o estádio rubro-negro como “Cementerio de los Elefantes”. Em 1969, Ermindo Onega, um dos maiores ídolos do River, chegou e venceu a Recopa Intercontinental.

Onega fez dupla ofensiva com o ex-Rosario Central Raúl Castronovo em 1971. Foi o ano em que o Nacional, embalado pelo artilheiro argentino Luis Artime (clique aqui), conseguiu sua primeira Libertadores e Intercontinental e também o título nacional, mas houve anedota pró-manya: Onega e Castronovo abriram 2-0 em novo Clásico de la Fuga, pois os rivais Anchetta (ídolo no Grêmio), Maneiro, Montero Castillo (pai de Paolo Montero) e Mujica foram expulsos, este após simular lesão justamente para receber o vermelho e obrigar o árbitro a encerrar o jogo pelo número insuficiente de jogadores. O técnico tricolor, Washington Etchamendy, ainda agrediu o treinador aurinegro Roque Máspoli.

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Quevedo, figura carimbada dos anos 70; Matosas, da última Libertadores que o clube venceu; e Capria comemorando seu gol de falta na final do Clausura 2008, mas a taça ficaria com o Danubio

Em 1972, o ex-Lanús Daniel Quevedo foi o artilheiro anual do time com 44 gols, mas notabilizou-se mais por municiar o supergoleador Fernando Morena, seis vezes seguidas artilheiro do Uruguaião e segundo maior artilheiro da Libertadores. Entre 1976-78, o clube teve Daniel Brailovsky, que se notabilizou mais por defender as seleções de Uruguai, Argentina e Israel. Em 1986, foi promovido dos juniores o meia Gustavo Matosas. Nascido em Buenos Aires, era filho de Roberto Matosas, uruguaio ídolo do River nos anos 60. Foi criado na terra do pai, defendendo a Celeste, mas a mãe era argentina.

Matosas, que jogaria no São Paulo e no Goiás e hoje treina o León (adversário flamenguista na Libertadores atual), esteve no último título carbonero na Libertadores, em 1987, ainda que uma lesão o deixou jogar só a primeira das três finais. Mas se eternizou naquele mesmo ano pelo Clásico de 8 contra 11: os rivais empatavam em 1-1 com o Nacional tendo três homens a mais nos últimos 15 minutos, quando sofreu o gol da derrota. Matosas foi um dos oito. Passou sem sucesso como técnico em 2008. Outros treinadores argentinos foram Hohberg (1971), José Etchegoyen, Jorge Kistenmacher (ambos em 1980; Etchegoyen treinara o Colón naqueles 3-2) e até César Menotti (1990-91).

Nos anos 90 e 2000, as caras argentinas mais conhecidas no Peñarol foram os atacantes José Percudani, autor do gol do último título do Independiente na Intercontinental, em 1984, e Claudio Biaggio, artilheiro do San Lorenzo que em 1995 quebrou seca de 21 anos na elite; o meia Rubén Capria, maestro dos bons momentos que o Racing conseguiu ter nos anos 90; o goleiro Pablo Cavallero, titular da Argentina na Copa 2002; e o volante Santiago Solari, ex-Real Madrid. Mas quem foi mais longe foi o atacante Alejandro Martinuccio, do elenco que recolocou o Peñarol na final da Libertadores, em 2011.

Ex-Nueva Chicago, Martinuccio fez dois gols importantes na campanha: o primeiro da virada por 2-1 sobre o favorito (e detentor da taça) Internacional em pleno Beira-Rio, após um 1-1 no Centenário nas oitavas; e, nas quartas, um providencial no último minuto nos 2-0 sobre a Universidad Católica em Montevidéu – no Chile, os aurinegros arrancaram um 2-1. Conseguiu até pôr o ídolo Tony Pacheco no banco, mas os louvores eram efêmeros: não era tão admirado pela torcida assim. Mas após as finais (que poderiam ter sido diferentes se Neymar, dez minutos antes de abrir o placar, não recebesse um justo vermelho após violenta falta no joelho de González) conseguiu credenciar-se para jogar no Brasil.

Hoje, o goleiro Lerda e os atacantes Mauro Fernández e Toledo (ex-Atlético-PR) são os argentinos manyas. Abaixo, outros Especiais com o maior clube sul-americano do século XX segundo a IFFHS e que já enriqueceu a Argentina com ídolos como Severino Varela, Sergio Martínez, Antonio Alzamendi, Luis Cubilla, Rubén da Silva, Nelson Gutiérrez, Gabriel Cedrés, Roberto Matosas, Julio Jiménez, Luis Garisto e Rubén Paz. Clique aqui para ver Especial nesse estilo sobre o também gigante Nacional.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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