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Imitem: pela taça da Sul-Americana, Lanús foi parabenizado pelo arquirrival

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Antes de ser dominado pela violência, o futebol argentino tinha as rivalidades restritas ao gramado. Tido como esporte de cavalheiros nos seus primórdios, a fineza quase aristocrática fora mantida na popularização do esporte pela Argentina, mas vinha se perdendo nas últimas décadas. Abrimos o ano, no dia da confraternização universal, com uma feliz exceção.

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Confraternização em Estudiantes x Gimnasia, hoje feroz

Naquela década de 10 do século XX, episódios de jogadores pedindo ao árbitro que apitasse faltas que haviam cometido eram comuns. O Independiente chegou até a abdicar do título argentino de 1912 porque seu último adversário, sem chances de taça, usou reservas e foi goleado – o Rojo terminou a competição igualado em pontos com o Porteño mas melhor nos critérios de desempate. Mas fez questão de que um jogo-extra fosse travado entre eles. O Porteño acabou vencendo.

Mesmo nas inflamáveis rivalidades internacionais, em tempos em que os jogos eram muito encarados como eventos cívicos, esse espírito seguia.

Por exemplo, contra o Uruguai, nos anos 20, o zagueiro Pedro Omar relatou ao juiz “senhor, acabo de cometer uma falta que você não assinalou, faça o favor de cobrá-la”. Nos anos 30, contra o Brasil, Pedro “Arico” Suárez errou intencionalmente a cobrança de um pênalti porque vira que ele não existira.

Em 1909, José Morroni, do River, pediu que o árbitro anulasse um gol irregular do colega Elías Fernández contra o Estudiantes de Buenos Aires. Contamos a respeito de ambos os episódios em especiais recentes: clique aqui aqui. River e Boca, antes de representarem os pobres contra os ricos (estereótipo aliás que há muito tempo perdeu sentido), já eram rivais por serem ambos humildes vizinhos no bairro de La Boca, de onde o River saiu em 1923 para a fina zona norte portenha. Quando eram vizinhos, compartilharam vários jogadores. Pedro Moltedo foi além de ser o primeiro vira-casaca: ele chegou até a participar dos primeiros jogos oficiais de cada um.

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Newell’s e Central nos anos 40. O brasileiro Paulinho Valentim, maior artilheiro do Boca contra o River pelo campeonato argentino, e sua “vítima” Amadeo Carrizo, o mitológico goleiro do rival; Boca com Pelé

Natalio Perinetti, grande ídolo do Racing nos anos 10-20, pregou sobre o Clásico de Avellaneda que “deve lutar-se para que a tranquilidade não se altere no estádio, já que se Racing e Independiente são adversários no field, mantêm fora do mesmo uma cordial amizade que não deve quebrar-se”.

Rosario Central e Newell’s Old Boys fazem a rivalidade mais ferrenha do país, a ponto de não terem um vira-casaca há 30 anos, desde o goleiro Juan Carlos Delménico (que também jogou por Estudiantes e Gimnasia) em 1984. Até clássicos religiosos como Celtic-Rangers, políticos como Lazio-Roma ou cinematogáficos como Millwall-West Ham já tiveram “traidores” desde então, assim como os também ferozes dérbis de Praga, Istambul e Belgrado. Mas, nos anos 20-30, era comum jogadores auriazuis e rubronegros posarem juntos para fotos.

Ainda havia algo disso nos anos 60. Torcedores do Racing, em nome da Argentina, teriam torcido para o Independiente nas finais da Libertadores e Intercontinental jogadas pelo rival, primeiro argentino campeão continental. Aliás, três dos quatro títulos seguidos (ainda um recorde) do Rojo na Libertadores entre 1972-75 vieram com treinadores que haviam sido ídolos no rival como jogadores, Humberto Maschio e, duas vezes, Pedro Dellacha. Sobre isso, Maschio afirmou o seguinte:

“Sempre gozo os do Independiente. Lhes digo: vocês foram campeões com Dellacha e comigo, dois ídolos do Racing, e também os fizeram campeões Cap e Brindisi, dois que jogaram no Racing. O mesmo que Pastoriza, um dos grandes ídolos do Rojo. ‘Graças ao Racing, vocês foram campeões várias vezes’, os digo. Os jubilados do Independiente não gostavam de mim, havia algo de folclore, e gritavam para mim um pouco nos treinos. O torcedor do Racing, igual, me perdoa. Antes, era outro espírito, outra coisa”.

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Racing aplaudido pelo River no jogo seguinte ao título mundial em 1967. No meio, homenageado pelo arquirrival Independiente no primeiro clássico após esse título

Héctor Veira, desconhecido no Brasil embora tenha jogado no Corinthians, foi eleito em 2008, no centenário do San Lorenzo, o maior ídolo do time do Papa, onde jogara nos anos 60 e 70. Ele, curiosamente, fora criado em Parque Patricios, bairro do rival, o Huracán, jogou nele também e teria chegado a afirmar-se como torcedor huracanense. Ano passado, esclareceu sobre:

“Nos juntávamos para ver Huracán e San Lorenzo quando jogavam em casa, um domingo cada um, porque não havia grana para viajar. Na infância, não estávamos tão definidos. Depois joguei nos dois, mas o amor que agarrei ao San Lorenzo não se compara com nada. Antes, era diferente. Eu metia o gol do San Lorenzo no clássico (Veira fez cinco ao todo) e à noite ia jogar bilhar na sede do Huracán. Na mesma noite do jogo! E não acontecia nada”.

Em 1968, o Vélez estava perto de ser campeão argentino pela primeira vez. Tinha o artilheiro do torneio, Omar Wehbe, que pensou em não atuar no jogo decisivo por dores no joelho. Seu colega Iselín Santos Ovejero retrucou que “vais jogar sim ou sim. Vou te levar ao médico do Ferro e ele vai te solucionar o problema”. Se referia ao Ferro Carril Oeste, rival tradicional velezano. Wehbe foi lá, jogou sob infiltrações e marcou três gols na partida: clique aqui.

Sobre o Lanús, seu rival original é o Talleres de Remedios de Escalada, que tinha alguma tradição até os anos 30 (Ángel Bossio, goleiro titular na Copa de 1930, era dele), mas está ausente da elite desde 1938. O Granate era amigo do Banfield, de cidade distante a 4 km de Lanús e que tinha no também sumido Los Andes o seu rival. Pelo desnível dos rivais, Lanús e Banfield passaram a focar suas rixas um no outro, a partir dos anos 80. A ponto do encontro passar a se tratado como El Clásico del Sur – os dois estão situados no sul da Grande Buenos Aires.

Por isso, causou surpresa quando o vice-presidente do Taladro, time humilhado por estar na segundona (ainda que seja o atual líder dela nesta temporada 2013-14) enquanto o Grana era pela segunda vez campeão continental, apareceu de surpresa em reunião da comissão diretiva do “co-irmão” na semana passada. E com uma placa de felicitações aos rivais, entregue pelo banfileño sob aplausos de pé gerais lanusenses. Uma grandeza infelizmente ainda mais rara que um título para a modesta dupla. Que mais exemplos como esse apareçam.

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San Lorenzo dando volta olímpica em 1968 sob os aplausos, ao fundo, do vice Estudiantes – que até hoje tem má fama; Rendo e Veira, campeões naquele San Lorenzo, posam no Huracán em 1970

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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