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40 anos da “Seleção Fantasma”

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Ao contrário do “Fantasma de la B”, esses aí não estavam brincando, e sim protestando

Se hoje em dia o “fantasma de La B” é o mais célebre do gênero no futebol argentino (veja aqui), há 40 anos “fantasma” se referia à uma seleção B da Argentina. Há exatas quadro décadas, promovendo a estreia nada glamourosa de algumas estrelas, ocorreu seu uso oficial: ganhar da Bolívia em La Paz.

Por que ganhar da Bolívia era tão importante? A Argentina simplesmente não se classificara à Copa de 1970 (veja), até hoje a única em que a Albiceleste esteve de fora por ser eliminada nas eliminatórias: as ausências nas Copas de 1938 à de 1954 se deveram por desistência de participar mesmo. A partida seria válida pelas eliminatórias à Copa de 1974 e uma segunda eliminação seguida certamente não faria bem ao futebol nacional, especialmente no país que receberia o torneio em cinco anos.

O técnico era o antigo craque Omar Sívori, grande ídolo de River e Juventus e ex-jogador das seleções argentina e italiana. Sívori era mais ambicioso do que tarimbado: aposentado havia só três anos, cumpria sua primeira experiência como técnico. Em meio aos desmandos ainda mais comuns da AFA na época, El Cabezón prometeu levar a Argentina à Copa e só.

Só em 1998 é que as eliminatórias da Conmebol passaram a ser disputadas entre todos os membros da confederação (na verdade, em 2002, pois o Brasil, campeão de 1994, já estava classificado e não jogou). Antes, as seleções eram divididas em grupos. Em 1974, o argentino continha ainda Bolívia e Paraguai.

Nas eliminatórias anteriores, os bolivianos também estiveram no grupo hermano e venceram em casa por 3-1. O revés faria a diferença adiante. No último jogo, a Argentina ficou obrigada a vencer o Peru, que conseguiu um 2-2 em plena Bombonera e acabou indo ao México. Sívori não queria dar espaço para novas falhas, mesmo em La Paz.

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A preparação foi demais para Merlo (deprimido à direita) e Juan José López, que voltaram

Para tanto, uma seleção B foi formada especialmente para se aclimatar à altitude. A paranoia fez com que a preparação começasse já em 1 de julho, a quase três meses da partida. Nesse período, a seleção “principal” fazia uma excursão pela Europa e o Huracán, depois de muito tempo, maravilhava o futebol nacional, com chances concretas de ser campeão após 45 anos (o título foi assegurado a uma semana do jogo contra a Bolívia: veja aqui). Assim, a “outra” seleção acabou sofrendo da indiferença do público.

Só que a indiferença estendeu-se também à própria AFA e Sívori. Quem teve de coordenar os “esquecidos” foi o ajudante do técnico, Miguel Ignomiriello, com quem não se entendia muito. Os jogadores começaram a preparação na fronteira com a Bolívia, na província de Jujuy, extremo norte argentino, na cidade de Tilcara, cerca de 3 mil metros do nível do mar. A promessa é de que jogariam quatro amistosos por lá e depois outros quatro nas alturas do Peru, em Cuzco, até pegarem a Bolívia.

Mas a programação não deu ritmo aos jogadores (alguns amistosos não foram cumpridos), abandonados pela AFA, que não os remunerou como combinado; eles mesmos é que tiveram de arranjar alguns jogos contra equipes e combinados locais em troca de dinheiro para se manterem. Em um deles, ainda em Jujuy, foram vaiados após um magro 0-0. “Passamos realmente mal (…). Terminamos fazendo seis ou sete em troca de dinheiro. Assim comprávamos as coisas em um supermercado e alguém fazia a comida. Voltei com 7 ou 8 quilos a menos”, escreveu Mario Kempes em sua autobiografia. Então uma revelação do Instituto de Córdoba, assim ele recebeu sua primeira chance na seleção.

Outros dos mais célebres jogadores do país também entraram naquelas condições na Albiceleste: Ubaldo Fillol e Rubén Galván foram outros novatos ali que, como Kempes, seriam campeões mundiais em 1978. Ricardo Bochini e Marcelo Trobbiani seriam em 1986. Bochini ainda tinha um ano de carreira e só passaria a ser ídolo no Independiente dali a uns meses, ao marcar o gol do primeiro título do clube na Intercontinental; já Trobbiani sequer havia estreado no Boca: foi o primeiro caso de um jogador a atuar antes pela seleção argentina do que na carreira clubística profissional.

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Jogadores treinando entre os cactos da fronteira com a Bolívia; e alguns da delegação: Fillol aparece à esquerda. Ele acabaria não jogando contra a Bolívia

Também estavam lá Aldo Poy, já consagrado no Rosario Central, e Rubén Glaria, no San Lorenzo. Duas promessas do River, Reinaldo Merlo (quem mais jogou pelo clube) e Juan José López, não aguentaram. Merlo afirmaria que “fomos a Tilcara e a tristeza me agoniava. Em outro dia, estivemos treinando e quando fomos nos banhar, não tínhamos água quente. (…) Chamávamos os dirigentes e não vinha ninguém. (…) Queríamos sair e o professor Cancela não podia, logicamente, nos dar permissão. Não sabíamos quando viajávamos, onde íamos, quanto tempo estaríamos fora”.

A solidão da experiência fez a dupla de volantes pedir para sair, em estresse diagnosticado pelo médico da delegação como “alternância emotiva, afetado psicologicamente pela prolongada concentração em um âmbito geográfico onde não se adequa a suas características”. Fillol, futuro colega deles no River (estava no Racing), passaria por desgosto diferente: esteve em todo o período só para acabar não jogando  – só estrearia já em 1974, em plena Copa. Uma semana antes da partida, enquanto o Huracán era campeão, a seleção só empatou com o outro oponente da chave, o Paraguai, ainda que em Assunção.

Sívori então resolveu pôr contra a Bolívia alguns mais experientes que já usara. Em vez de Fillol, o goleiro seria Carnevali. Bargas, Telch e Ayala foram outros escalados que já vinham jogando. A “seleção A” havia goleado a Bolívia por 4-0 em casa na abertura das eliminatórias. Bargas (Nantes), Carnevali (Las Palmas) e Ayala (Atlético de Madrid), por sinal, eram nessa ordem os primeiros jogadores que a seleção usou do futebol europeu. Ainda assim, há 40 anos houveram nove estreias de uma vez na Albiceleste, uma das cifras mais altas de debutantes nela. Eram todos os demais.

A comunicação complicada com a abandonada região do norte argentino também fez a imprensa não dar notícias daquela seleção B, até a revista semanal Goles publicar uma foto tirada já em La Paz por um jornal boliviano, Hoy Deportivo. A ideia foi do diretor deste, Miguel Tapia, e a foto foi tirada por Lucio Torres, com os jogadores cobertos por máscaras brancas. Daí surgiu a expressão Selección ou Equipo Fantasma. Mesmo assim, só posteriormente, com depoimentos dos jogadores, é que a situação passada por eles foi mais conhecida.

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A seleção uniformizada. Pode-se ver Bochini: segundo agachado; e o herói Fornari com o bigodudo Poy (primo do ídolo são-paulino) e Kempes. Foi o único jogo oficial dele pela seleção

Pouco se sabe da partida apitada há 40 anos pelo brasileiro Arnaldo Cézar Coelho, exceto alguns relatos. Kempes teria perdido uma boa chance no início, e os bolivianos também, após bola mal recuada de Bargas para Carnevali. Aos 18 minutos, o gol: Glaria passou a bola a Poy e este abriu para Ayala, que cruzou à área. O anônimo Oscar Fornari (de um decadente Vélez), de cabeça, completou para as redes do estádio Hernando Siles. Foi o único gol de Fornari pela seleção. No segundo tempo, entraram Trobbiani e Bochini, que, como Kempes, jogaram ali pela primeira vez oficialmente pela Argentina.

O gol bastou. Tranquila, a seleção “principal” venceu no dia 8 de outubro o Paraguai por 3-1 em casa e se classificou. Já da “seleção fantasma”, poucos tiveram reconhecimento imediato. Fornari não jogou outra vez pela Argentina, assim como Tagliani, seu colega no Vélez, e Cortés, do Atlanta (ele ainda é o último jogador que a seleção chamou deste clube). Só Glaria, Kempes, Poy e Fillol iriam à Copa do Mundo de 1974. A ideia seria reutilizada na vez seguinte em que a Argentina precisou voltar à Bolívia pelas eliminatórias, ainda que mais de vinte anos depois, já naquelas para a Copa de 1998, ainda que de uma forma não tão radical: uma semana em Jujuy. A Argentina estava só em 3º, com a Bolívia na cola em 4º.

Em 1997, Daniel Passarella mesclou seus titulares com outros nem tanto: Sorín, Hernán Díaz, Cagna, Marcelo Delgado, Gorosito e Julio Cruz se prepararam para a altitude com certa antecedência. Não deu certo: perderam por 1-2 (um dos gols adversários foi de Fernando Ochoaizpur, argentino de nascimento; o árbitro também foi brasileiro, Sidrack Marinho) e perto do fim Cruz, agredido por um membro da comissão boliviana no olho direito, sairia com um corte do lado esquerdo do rosto, polêmica nunca esclarecida que, para alguns, seria similar à do goleiro chileno Roberto Rojas contra o Brasil em 1989…

BOLÍVIA: Conrado Jiménez, Luis Iriondo, Walter Costa Rojas (Olivera 25/2º), Hugo Pérez, Miguel Antelo, Juan Fernández, Freddy Vargas, Eduardo Ángulo, Mario Meza, Raúl Morales (Jorge Llado 20/2º) e Nicolás Linares. T: Freddy Valda. ARGENTINA: Daniel Carnevali, Rubén Glaria, Ángel Bargas, Daniel Tagliani, Osvaldo Cortés, Roberto Telch (Marcelo Trobbiani 21/2º), Rubén Galván, Aldo Poy, Oscar Fornari, Rubén Ayala e Mario Kempes (Ricardo Bochini 19/2º). T: Omar Sívori. Árbitro: Arnaldo Cézar Coelho (BRA). Gol: Fornari (18/1º)

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O gol de Fornari e os argentinos saindo triunfantes do Hernando Siles. Vale lembrar que Messi já perdeu de 1-6 lá…

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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